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Quando nos referimos às produções da cidade africana [Luanda, capital de Angola] surge em primeiro plano a questão da oralidade, já que aí a forma de acumular e transmitir os conhecimentos sobre sua história e os ensinamentos do cotidiano realizam-se a partir da oralidade, tendo espaço fundamental a memória e o papel dos mais velhos. Quanto à forma de comunicação desse conhecimento, a partir de fórmulas rituais ou não, também é imprescindível a fala, que o atualiza e produz no ouvinte um aprendizado sobre si e sua comunidade. (MACÊDO, 2008).

O termo oratura surge como alternativa à expressão literatura oral por apresentar-se mais apropriada ao objetivo proposto: designação de um conjunto de formas verbais orais, artísticas ou não. Ao contrário, literatura oral traz em sua

composição uma palavra central originariamente relacionada à escrita conjugada a outra que, em nível secundário, aponta para a oralidade. (MORAES, s/d).

Segundo Ana Mafalda Leite, a oratura angolana se divide em três momentos: o 1º momento tende para seguir uma norma mais ou menos padronizada ou “oralizar” a língua portuguesa, segundo registros bastante diversificados entre si, há o acréscimo de vocábulos africanos, mantendo o padrão escrito da literatura portuguesa, como Pepetela. O 2º momento consiste na hibridização, cria-se uma expressividade apropriada da linguagem africana e altera a questão sintática, como Luandino Vieira e Mia Couto. E 3º momento, menos frequente, abrange o contato com a ruralidade, logo é mais utilizada pelos bilíngues, criando uma intercessão linguística por frases em diferentes línguas, alternando ou imprimindo ritmos diversificados, como Francisco Fonseca Santos. (MACÊDO, 2008)

ANÁLISES LITERÁRIAS

A nação de Angola era originalmente ágrafa, não detinha da escrita, embora praticava uma literatura oral sob diversas modalidades, desde as estórias que pendem para o maravilhoso, as estórias verídicas ou tidas como tal com valor moral e lúdico, os feitos dos povos tidos como segredos passados de geração em geração e revelados em partes aos estranhos, os provérbios, as poesias e as músicas. (SANTILLI, 1985).

Na perspectiva da literatura oral africana, analisaremos o conto Os viajantes e o monstro, da antologia Histórias africanas (2014), recontadas por Ana Maria Machado e ilustradas por Laurent Cardon, a respeito da narrativa, a contadora explica a origem, “Sei que a história do monstro e dos viajantes é contada pelos Quiocos, de Angola, e está incluída num livro que comprei em Luanda quando estive por lá, ainda durante a guerra da independência.” (p. 11). A análise literária será sob quatro vertentes: o enredo, o foco narrativo, as personagens e o espaço.

Vale ressaltar, “a ilustração é parte constituinte das publicações endereçadas às crianças.” (ZILBERMAN, 2014, p. 167), assim Laurent Cardon com sua maestria na arte de ilustrar compõe dezesseis ilustrações para o livro, com traços definidos, cores vibrantes e significações pertinentes, favorecendo a leitura infantil.

a) Análise do enredo:

Segundo Mesquista (1994, p. 7), “Contar e ouvir histórias são atividades das mais antigas do homem. Pessoas de todas as condições sócio -culturais têm o prazer de ouvir e de contar histórias.” E na arte milenar da contação de histórias, os africanos são especialistas, veja no conto analisado, “Lá em Angola, os Quiocos são famosos por serem um povo muito contador de histórias.” (MACHADO, 2014, p. 32).

O enredo é “a apresentação/representação de situações, de personagens nelas envolvidos e as sucessivas transformações que vão ocorrendo entre elas, criando-se novas situações, até que se chega à final – desfecho do enredo.” (MESQUITA, 1994, p. 7).

Em Os viajantes e o monstro, o enredo gira em torno do rapaz que ganhou uma arma de fogo e dos seus amigos, o sonhador, o ladrão, o construtor de barcos e o co lador de coisas quebradas, cujos começam a conviver e passar por situações resolvidas com o auxílio de suas aptidões (sonhar, roubar, construir barcos e colar coisas quebradas), como serem presos pelo soba, a soltura, a busca pela filha do soba, o encontro e rapto dela da escravidão do monstro, a fuga e luta contra o monstro, a chegada ao sobado e desistência do monstro em capturá-los, a premiação do soba aos rapazes, doação do sobado e casamento da princesa com o rapaz da arma, os demais companheiros tornaram-se ajudantes do novo soba e casaram com moças da aldeia, e o antigo soba foi descansar e aproveitar a vida. A narrativa é estruturada pelo princípio lógico da casualidade e pela lógica temporal, sendo marcada pelos flashbacks de sonhos do sonhador.

Conforme Mesquita (1994, p. 9), “A narrativa mítica é fortemente cerrada. Cada evento possui uma significação e se articula logicamente com os demais.” No último parágrafo do conto, um mito dos povos Quiocos é explicitado, (...) “nessas coisas de sobado – garantem os Quiocos – pode ser sempre muito útil ter a ajuda de um sonhador, um ladrão, um construtor de barcos e um colador de coisas quebradas.” (MACHADO, 2014, p. 41). O real e o imaginário dialogam na narrativa estudada, que “Será sempre expressão de uma intimidade fantasiada entre verdade e mentira, entre o real vivido e o real possível.” (MESQUITA, 1994, p. 14), o real vivido compreende as personalidades e suas características, já o real possível abarca algumas das ações delas, culminado -as para o desenrolar textual, o enredo.

O confronto das forças antagônicas, dentro da narrativa, gera outras situações, esse processo dá-se o nome de núcleo conflitivo ou dramático, sendo responsável pelas

ações das personagens. (MESQUITA, 1994). Em Os viajantes e o monstro, o núcleo conflitivo realiza-se após o sonho ser contado pelo sonhador, desde o encontro com os futuros amigos e as situações vividas. Como a narrativa volta-se para os acontecimentos exteriores, o tempo é cronológico, com presença dos flashbacks dos so nhos do sonhador.

Vale lembrar que o conto pertence a tradição oral, e que na sua coleta e transcrição mantêm traços de diálogo entre o texto e o leitor, como “Esta é uma das histórias que eles contam.” (MACHADO, 2014, p. 32).

b) Análise do foco narrativo:

De acordo com Leite (2001, p 86), “o NARRADOR é um, entre os vários elementos com os quais se articula, orgânica e especificamente, na composição das obras singulares.” E para efeito de análise será utilizada a tipologia proposta por Norman Friedman, que busca responder às questões propostas: quem conta?, que posição ou ângulo ocupa o narrador?, que canais de informações o narrador usa?, e que distância entre narrador e leitor?.

Em Os viajantes e o monstro, o narrador é autor onisciente intruso, esse narrador tem a liberdade de narrar à vontade, como “também narrar da periferia dos acontecimentos, ou do centro deles, ou ainda limitar-se e narrar como se estivesse de fora, ou de frente, podendo, ainda mudar e adotar sucessivamente várias posições.”

(LEITE, 2001, p. 27), exemplificamos com “Nós podemos não saber o que é um soba. Mas os Quiocos sabem muito bem que se trata de um chefe de aldeia, muito importante e com muitos poderes, uma espécie de rei. Pode mandar em todo mundo. E manda, não tenham dúvida disso.” (MACHADO, 2014, p. 34).

c) Análise das personagens:

Sob a perspectiva de classificação de Forster das personagens, analisemos as do conto em planas ou redondas. Os viajantes e a filha do soba são classificados como personagens planas, por serem construídos ao redor de uma única ideia ou qualidade e imunes à transformação no transcorrer da narrativa. Já o monstro e o soba são classificados como personagens redondas, definidos pela sua complexidade e personalidade multifacetada, aproximando-se da realidade humana. (BRAIT, 2000).

Os viajantes são tidos como personagens protagonistas, por ganharem o primeiro plano na narrativa, o soba e sua filha são adjuvantes ou coadjuvantes, por estarem ao lado dos protagonistas, e o monstro como antagonista, por ser o opositor dos protagonistas. (BRAIT, 2000). Ainda segunda Brait (2000, p. 48), existe a “personagem com função decorativa, mas nem por isso dispensável, seria aquela considerada inútil à ação, aquela que não tem nenhuma significação particular, a que inexiste do ponto de vista psicológico.”, no conto, as escravas do monstro e as esposas dos viajantes configuram-se com às personagens decorativas.

d) Análise do espaço:

Conforme Dimas (1987, p. 5), “o espaço pode alcançar estatuto tão importante quanto os outros componentes da literatura”, apesar da escassa bibliografia sobre a temática.

Por ambientação, entenderíamos o conjunto de processos conhecidos ou possíveis, destinados a provocar, na narrativa, a noção de um determinado ambiente, para a aferição do espaço, levamos a nossa experiência de mundo;

para ajuizar sobre a ambientação, onde transparecem os recursos expressivos do autor, impõe-se um certo conhecimento da arte narrativa. (LINS apud DIMAS, 1987, p. 20).

Em Os viajantes e o monstro os ambientes são: a savana africana, (...) “e saiu andando pela savana para ver” (...) (MACHADO, 2014, p. 32), a aldeia do soba, (...) “de um chefe de aldeia,” (...) (MACHADO, 2014, p. 34), e a aldeia do monstro, (...) “numa aldeia não muito longe daqui.” (MACHADO, 2014, p. 37), são os espaços principais, tidos como explícitos e possuidor de dados de realidade. E a ambientação pode ser exemplificada por “Deu mais uns gritos e berrou umas ordens. Logo apareceram guerreiros armados de tudo quanto foi lado. E assim o soba prendeu os viajantes. Mandou amarrar todos e espancá-los. E trancá-los numa cabana.” (MACHADO, 2014, p. 35), assim temos uma visão da aldeia do soba, sendo protegida por diversos guerreiros armados e obedientes ao superior, bem como o local destinado aos malfeitores.

BREVES CONSIDERAÇÕES

Angola, um dos cinco países africanos de língua portuguesa, inicialmente ágrafa, e que viveu o período de “quase não literatura” devido à escassa produção literária. E, que apenas no início do século XX, com a instalação da imprensa, a produção angolana começou a desenvolver. Os movimentos sócio-culturais, as revistas e o jornalismo contribuíram decisivamente para a construção da angolanidade, desde seus manifestos e produções literoartísticas. Também no transcorrer da história angolana um fato identitário é a tradição oral passada de geração em geração, através da oratura, como conjunto de formas verbais orais, mantendo viva a memória e os saberes ancestrais.

O conto Os viajantes e o monstro, coletado por Ana Maria Machado, e ilustrado por Laurent Cardon, cujos formaram uma parceria notável na produção de Histórias africanas (2014). Trata da saga de cinco amigos viajantes pela savana e por aldeias em busca da realização de sonhos. Remonta às situações do cotidiano angolano, porém com um brilho do maravilhoso e do fantástico, percorrendo assim, o imaginário do leitor. A narração prende o leitor de forma envolvente pela riqueza de detalhes e pelo ar de mistério circundante na narrativa.

REFERÊNCIAS

BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Editora Ática, 2000. (Série Princípios)

DIMAS, Antônio. Espaço e romance. 2. ed. São Paulo: Editora ática, 1987. (Série Princípios)

FONSECA, Maria Nazareth Soares; MOREIRA Terezinha Taborda. Panorama das literaturas africanas de língua portuguesa. Disponível em: <http://pucminas.br/

imagedb/mestrado_doutorado/publicacoes/PUA_ARQ_ARQUI20121019162329.pdf>.

Acesso em: 28 ago. 2016.

LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo (ou A polêmica em torno da ilusão). 10.

ed. São Paulo: Editora Ática, 2001. (Série Princípios)

MESQUITA, Samira Nahid de. O enredo. 3. ed. São Paulo: Editora Ática, 1994. (Série Princípios)

MACÊDO, Tania. Luanda, cidade e literatura. São Paulo: UNESP; Luanda: Nzila, 2008.

MACHADO, Ana Maria (Recontadas por). Histórias africanas. Ilustrações de Laurent Cardon. 1. ed. São Paulo: FTD, 2014.

MORAES, Fabiano. Oratura: pela valorização da oralidade. Disponível em:

<http://www.

culturainfancia.com.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&catid=100 :artigos-e-teses&id=891:oratura-pela-valorizacao-da-oralidade&Itemid=56>. Acesso em: 09 out. 2016.

SANTILLI, Maria Aparecida. Estórias africanas: história e antologia. São Paulo: Editora Ática, 1985. (Série Fundamentos)

SANTOS, Donizeth Aparecido. O período de “quase não literatura” em Angola. 2006.

Disponível em:

<http://www.unigran.br/interletras/ed_anteriores/n4/arquivos/v4/donizeth_

O_PERIODO.pdf>. Acesso em: 08 out. 2016.

SILVA, Priscila Cardoso de Oliveira; FÉLIX, José Carlos. As marcas da criação poética no conto oral. In: GOMES, Carlos Magno (Org.). Crítica cultural e estudos literários.

São Cristovão: Editora UFS, 2016.

ZILBERMAN, Regina. Como e por que ler a literatura infantil brasileira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.

CULTURA E ESCOLA EM UM SÓ PROCESSO

No documento ANAIS – Mostra Científica 2016 (páginas 118-125)