• Nenhum resultado encontrado

A RELAÇÃO DA POESIA DA LEGIÃO URBANA COM TRAÇOS DENTRO DO ROMANTISMO

No documento ANAIS – Mostra Científica 2016 (páginas 91-99)

Antes de tudo, é preciso expor que a condição de letra de música também é poema, também é Literatura. Como bem disse Aguiar:

Entretanto, mesmo separado da música, o poema continuou preservando traços daquela antiga união. (...) Se a separação de poetas e músicos dividiu a história de um gênero e outro, a poesia não abandonou de vez a música tanto quanto a música não abandonou de vez a poesia. (AGUIAR, 1999, p. 10)

Para poder relacionar a produção poética da Legião urbana com o que caracterizava o perfil literário romântico, é necessário entender como estavam calcados os alicerces deste movimento. A temática de liberdade, exposta a todo instante no Romantismo, ganhava corpo no movimento de jovens brasilienses e se transformava em poesia, música, atitude e movimento.

Portanto, o Romantismo brasileiro foi inicialmente (e continuou sendo em parte até o fim) sobretudo nacionalismo. E nacionalismo foi antes de mais nada escrever sobre coisas locais. Daí a importância da narrativa ficcional em prosa, maneira mais acessível e atual de apresentar a realidade, oferecendo ao leitor maior dose de verossimilhança e, com isso, aproximando o texto da sua experiência pessoal. (CANDIDO, p. 39-40)

O que Renato Russo mais fez foi aplicar a realidade das suas experiências aos textos que escrevia. Sejam essas realidades subjetivas, intrínsecas à sua personalidade e sua existência interior, sejam essas realidades objetivas, provenientes da sua relação com Brasília, poder público, situação do país. A sua obra trata diretamente a ordem cultural no Brasil, suas relações políticas, sociais e individuais. Squeff e Wisnik (2004, p.

10) afirmaram que “Não é possível detectar aspectos de determinadas épocas no nível do seu ‘sentir1, se não pela arte e mais precisamente pela música”.

Temos um exemplo dessa liberdade subjetiva, no disco A Tempestade, na canção ‘Soul parsifal’, onde Renato declara sua liberdade de escolha e o domínio sobre os caminhos de seu coração:

“Ninguém vai me dizer o que sentir Meu coração está desperto É sereno nosso amor e santo este lugar Dos tempos de tristeza tive o tanto que era bom

Eu tive o teu veneno E o sopro leve do luar.”

(...)

Fazendo menção direta ao indianismo nacionalista, apregoado na Primeira Geração romântica, mas com a crítica direta ao que teria sido o bem mais precioso desta terra, Renato Russo apresenta uma canção que leva o leitor à reflexão sobre a perda da ingenuidade e a capacidade do ‘branco invasor’ de enganar e acabar com o sentimentalismo:

“Quem me dera Ao menos uma vez Ter de volta todo o ouro

Que entreguei a quem Conseguiu me convencer Que era prova de amizade Se alguém levasse embora Até o que eu não tinha”

(...)

Ou ainda:

(...)

“Nos deram espelhos E vimos um mundo doente Tentei chorar e não consegui”.

(Índios, Dois, 1986)

Dentro dos padrões temáticos da Primeira Geração romântica, Renato apresentou a visão de que cada um pertence a uma tribo, a um agrupamento com suas relações sociais, seus valores, sua história.

(...)

“Ah, se eu soubesse lhe dizer qual é a sua tribo Também saberia qual é a minha”

(...)

A crença no sentimento nacionalista e a vontade de tudo dar certo no país:

(...)

‘O Brasil é o país do Futuro”

(...)

(1965 – Duas tribos, As quatro estações, 1989)

A segunda geração, com a liberdade da escrita voltada ao sentimentalismo exacerbado, à morte, depressão, suicídio e culto ao ego, tem lugar certo na poesia de Renato Russo. Não raro, o poeta lançou mão de temas como a solidão:

(...)

“Digam o que disserem O mal do século é a solidão

Cada um de nós imerso em sua própria arrogância Esperando por um pouco de afeição”

(...)

(Esperando por mim, A Tempestade, 1996)

A morte na juventude:

“É tão estranho Os bons morrem jovens”

(...)

“É tão estranho Os bons morrem antes”

E lembro de você e

de tanta gente que se foi cedo demais E cedo demais,

eu aprendi a ter tudo que sempre quis (...)

(Love in the afternoon, A Tempestade, 1996)

O suicídio patente na canção ‘Pais e filhos’ retoma o tema ultrarromântico:

“Ela se jogou da janela do quinto andar Nada é fácil de entender”

(Pais e filhos, As quatro estações, 1989)

A depressão foi tema recorrente no disco A Tempestade. Fica evidente a relação da doença do cantor, que morreu em decorrência da, com uma profunda depressão. Essa é uma verdadeira demonstração de aplicação da realidade subjetiva do autor (já mencionada neste artigo) nas suas poesias. Um bom exemplo disso é a canção “A via

láctea”, que aborda o ponto de vista do eu-lírico com base em um estado completo de depressão e isolamento do mundo:

“Quando tudo está perdido Sempre existe um caminho Quando tudo está perdido Sempre existe uma luz...

Mas não me diga isso...

Hoje a tristeza não é passageira Hoje fiquei com febre a tarde inteira

E quando chegar a noite Cada estrela Parecerá uma lágrima...

Queria ser como os outros E rir das desgraças da vida Ou fingir estar sempre bem Ver a leveza das coisas com humor...

Mas não me diga isso...

É só hoje e isso passa Só me deixe aqui quieto

Isso passa

Amanhã é um outro dia, não é?...

Eu nem sei porque me sinto assim Vem de repente um anjo triste perto de mim...

E essa febre que não passa E meu sorriso sem graça

Não me dê atenção

Mas obrigado por pensar em mim...

Quando tudo está perdido Sempre existe uma luz Quando tudo está perdido Sempre existe um caminho...

Quando tudo está perdido Eu me sinto tão sozinho Quando tudo está perdido Não quero mais ser quem eu sou...

Mas não me diga isso Não me dê atenção E obrigado por pensar em mim...”

(A via láctea, A Tempestade, 1996)

Ainda na Segunda Geração, um outro exemplo da melancolia e entrega á tristeza e ao fim das coisas:

“Sei que faço isso para esquecer Eu deixo a onda me acertar E o vento vai levando tudo embora”

(Vento no litoral, V, 1991)

Já entrando na influência da Terceira Geração, as canções ‘Fábrica’, ‘Faroeste caboclo’ e Que país é este’, por exemplo, muito bem retratam, dentro do plano condoreiro de temática romântica, a luta nacionalista por direitos iguais:

“Nosso dia vai chegar, Teremos nossa vez, Não é pedir demais

Quero justiça Quero trabalhar em paz, Não é muito o que lhe peço

Quero trabalho honesto Em vez de escravidão”.

(Fábrica, Dois, 1986)

Trazem à tona a gritante desigualdade social vigente em um país de contrastes sociais gritantes:

(...)

“E o povo declarava que João de Santo Cristo Era santo porque sabia morrer

E a alta burguesia da cidade

Não acreditou na história que eles viram na TV E João não conseguiu o que queria Quando veio pra Brasília, com o diabo ter

Ele queria era falar pro presidente Pra ajudar toda essa gente que só faz sofrer”

(Faroeste Caboclo, Que país é este, 1987)

Denunciam os desmandos e a corrupção que assolam a nação desde muito tempo:

“Nas favelas, no Senado Sujeira pra todo lado Ninguém respeita a Constituição Mas todos acreditam no futuro da nação

Que país é esse?”

(...)

(Que país é este, Que país é este, 1987)

A crítica social continua em várias outras canções, presente, praticamente em toda a discografia da banda Legião Urbana. Já no primeiro disco, canções como “O reggae”, “Geração coca-cola”, “A dança” e “Baader-Meinhof Blues” são verdadeiras porta-vozes do protesto social, do desmascarar das instituições, da denúncia contra a corrupção e as mazelas sociais. A saber:

“Ninguém me perguntou se eu estava pronto E eu fiquei completamente tonto

Procurando descobrir a verdade No meio das mentiras da cidade Tentava ver o que existia de errado Quantas crianças Deus já tinha matado.

Beberam meu sangue e não me deixam viver Têm o meu destino pronto e não me deixam escolher

Vem falar de liberdade pra depois me prender Pedem identidade pra depois me bater

Tiram todas minhas armas Como posso me defender?”

(...)

(O reggae, Legião Urbana, 1995)

Ou ainda:

“Quando nascemos fomos programados A receber o que vocês nos empurraram Com os enlatados dos USA, de 9 às 6.

Desde pequenos nós comemos lixo Comercial e industrial Mas agora chegou nossa vez

Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês”

(Geração Coca-cola, Legião Urbana, 1985)

Mais:

“Não sei o que é direito, só vejo preconceito E a sua roupa nova é só uma roupa nova”

(...)

(A dança, Legião Urbana, 1985)

E mais:

“A violência é tão fascinante E nossas vidas são tão normais E você passa de noite e sempre vê

Apartamentos acessos Tudo parece ser tão real Mas você viu esse filme também.

(...)

Essa justiça desafinada É tão humana e tão errada Nós assistimos televisão também

Qual é a diferença?

Não estatize meus sentimentos Pra seu governo, O meu estado é independente”

(Baader-Meinhof Blues, Legião Urbana, 1995)

Outros discos, a exemplo de ‘Dois’, ‘O descobrimento do Brasil’ e ‘As quatro estações’, também apresentam o protesto social como temática das canções.

Evidentemente, há de se considerar que a formação musical da Legião é derivada diretamente do movimento punk rock, surgido na Inglaterra e Estados Unidos. Bandas como Sex Pistols, The Clash, Ramones serviram de inspiração nas canções e no

você mesmo’ (Do it yourself) caía como uma luva na mente de jovens de classe média, entediados com a sociologia de uma cidade ‘morta’ para os jovens, sedentos de adrenalina e ação, movidos por uma extraordinária paixão pela liberdade de expressão.

Nada mais romântico do que esse desejo de expressão e liberdade.

Assim como o Romantismo se difundiu e tornou-se popular, o movimento do rock nacional, adquiriu cores próprias e se consolidou no mercado como cultura e como produto comercial. As emissoras de rádio e TV diluíam diariamente as canções da geração 80, ocupando um espaço até então dominado por música estrangeira, abrindo o caminho para que artistas brasileiros pudessem galgar caminhos de sucesso e reconhecimento. Bandas como Titãs, Paralamas do Sucesso, Barão Vermelho, Kid Abelha, Plebe Rude, Capital Inicial, RPM, dentre tantas outras, atingiram níveis altíssimos de popularidade. Estava fincada a bandeira do rock brasileiro e de seus representantes legítimos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo procurou apresentar, como seu objetivo geral, a relação direta entre os aspectos inerentes da poesia romântica brasileira e a produção literária da banda de rock nacional Legião Urbana. Essa relações buscou fazer o entrelaçamento temático da poesia das três gerações poéticas registradas no país, no século XIX, a saber:

Nacionalista, Ultrarromântica e Condoreira, com os escritos de Renato Russo na banda de rock nacional. É claro que, por ser um artigo, há limitações de aprofundamento em assuntos e até mesmo difusão de uma maior bibliografia e apresentação de conteúdo relativo ao tema abordado.

Todavia é certo que foi possível delimitar o tema levantado e realizar as devidas comparações, o que abre um precedente importante para que outras pesquisas sobre o tema sejam realizadas. Afinal o tema é amplo, notório e tem material suficiente para promover mais pesquisas de cunho científico trazendo à tona a marca personal de uma da maiores expressões da música brasileira, que é a banda Legião Urbana. Não raro, gerações que vieram pós-fim do grupo conhecem, e muito, a discografia, a história e, no Brasil inteiro, interagem em uma verdadeira consonância de pensamento acerca da importância da Legião para a sua geração e às outras que vieram depois.

Há de se ressaltar que aqui foram apresentados apenas traços da presença das gerações românticas brasileiras na vasta obra da Legião. Conforme já afirmado, é

necessário que outros estudos, mais aprofundados, não só delimitem uma maior natureza de pesquisa, bem como ensejem, de fato, outros temas que aproveitem a riqueza poética que a banda deixou como legado a todos os que pesquisa, que gostam de música e que admiram atitudes inovadoras e inteligentes, como as que podem ser percebidas na trajetória da Legião Urbana. O que irá, com certeza, contribuir e muito para o aprofundamento científico, sobretudo nas áreas de Sociologia, Filosofia, Música, Linguística e Literatura.

REFERÊNCIAS

AGUIAR, Joaquim. A poesia da canção. São Paulo: Scipione. 1993.

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 2’ Edição: São Paulo: Cultrix 2006.

CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. 9ª Edição. Belo Horizonte:

Itatiaia, 2000.

____________________. Iniciação à Literatura Brasileira. São Paulo: Humanitas/FFLCH, 1999.

____________________. O Romantismo no Brasil. São Paulo : Humanitas/FFLCH, 2002.

____________________. Na Sala de Aula: caderno de análise literário. São Paulo: Ática, 2008.

LYRA, Pedro. Conceito de Poesia. São Paulo: Ática, 1986.

MAZIÈRE, Francine. A análise do discurso: história de prática. Tradução Marcos Marcíonilo. São Paulo: Parábola Editorial 2007.

MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. 12 Ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1974.

SOUZA, Roberto Acízelo Quelha de. Teoria da Literatura. 10ª ed. São Paulo: Ática, 2007.

SQUEFF, Enio; e WISNIK, José Miguel. Música: o nacional e o popular na cultura brasileira. 2ª edição. Brasiliense: São Paulo, 2004.

No documento ANAIS – Mostra Científica 2016 (páginas 91-99)