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de professores de escrita: Que género? Que mundos? Que desafios?

2. Os escritos da formação/ a formação pelos escritos

A escrita implica o sujeito na sua totalidade e relação com a alteridade e, nesta medida, é um contributo poderoso para aprender (a aprender) e para tomar consciência do que sabe e do que não sabe.

Claro que a opção pela escrita na formação não é independente das modalidades e dos valores que atribuímos ao processo formativo e, por isso, defender os escritos neste contexto significa, antes de mais, advogar a necessidade de formar profissionais reflexivos, capazes de questionarem o seu próprio agir e capazes de analisarem criticamente as suas (e as de outros) experiências didácticas.

Subentende-se, assim, que a modalidade formativa em que intervínhamos não pretendia transmitir conhecimentos e técnicas de (ensino da) escrita, mas antes propor aos professores o desenvolvimento de projectos motivantes, que os envolvessem em experimentações e análises em contexto real, conducentes a processos de apropriação e de autoconstrução profissional, assentes, como é evidente, num paradigma reflexivo (Vanhulle, 2000: 524). Ora, vários estudos têm apontado o portefólio como sendo, justamente, um instrumento capaz de conduzir a um posicionamento reflexivo; no nosso caso, por razões adicionais, porquanto põe as pessoas em situação de escrita, de reflexão sobre essa escrita e sobre o ensino dessa competência. Fica, portanto, evidente que os escritos assumem papéis diferentes conforme as lógicas de formação em que se inscrevem. Na nossa lógica, a escrita não serve para reproduzir conhecimento; está, antes, associada a uma construção única, de cada sujeito, possibilitada por uma implicação pessoal e originando reconceptualização de acções didácticas. Obviamente que, assim sendo, estes processos formativos deveriam ser capazes de desestabilizar concepções, crenças e saberes mais ou menos enraizados para serem susceptíveis de criar novos marcos interpretativos mais profundos e incisivos (Cambra, Fons, Palou, & Civera, 2008: 46), antes de mais por pôr em acção um percurso escritural coerente com o modelo didáctico de escrita que a própria formação advogou.

Neste sentido, estamos a admitir que não há uma formação linear através de modos transmissivos, mas que a construção do conhecimento é passível de ser feita essencialmente pela elaboração e acompanhamento crítico de dispositivos didácticos mais do que pelo conhecimento passivo dos moldes em que esses dispositivos podem

ser gerados e geridos. Assim, escrever impõe-se como prática de reflexividade, atendendo a que o acto de escrever não serve, apenas, para registar o que já se sabe, mas, sobretudo, para ajudar a construir conhecimento novo, “coming to a

new persective”, atingindo “a new stage of thinking” (Bazerman, 2009: 279). Este

fenómeno de “cognitive refiguration” (idem, 2009: 280) está ligado, como é óbvio, a muito do que, por vezes intuitivamente, se tem dito sobre “escrever para aprender”, mas tem a ver, sobretudo, com o facto de (a aprendizagem e a produção de) os géneros de texto se constituírem em verdadeiras “tools of cognition” (Bazerman, 2009: 283). Para perceber esta asserção, é preciso considerar que a investigação tem evidenciado que não é, simplesmente, por escrever seja o que for que o sujeito (também adulto) “aprende e se desenvolve” (no senda do que preconiza Vygotsky (2005)), nem é, apenas, por realizar determinadas tarefas consideradas memory-focused writing – tomada de notas, sínteses… (apesar de estarem associadas a melhores resultados em exames focados na avaliação do domínio de conteúdos disciplinares). Diferentes tarefas escritas, em diferentes situações, profissões, actividades sociais, pressupõem diferentes informações, enfoques e um desenvolvimento numa matéria ou num procedimento específico. Ou seja, canalizando para o nosso interesse – géneros de texto em contexto de formação para o ensino da escrita –, nem todos os escritos se traduzem na mesma postura de reflexividade: portefólios, diários de aprendizagem, autobiografias/histórias de vida, reflexões… Embora pretendam todos conduzir a um desenvolvimento profissional, não o farão da mesma maneira, pois exigem inscrições dos sujeitos e dos temas de formas diferentes, em temporalidades diferentes e com finalidades diferentes. Daqui podemos inferir o seguinte: não se aprende, em contexto de ensino formal, a escrever de forma una, mas por géneros específicos de texto; tal como em contexto de formação: a selecção dos géneros a praticar está inequivocamente associada às suas especificidades e às possibilidades de aprendizagem e de desenvolvimento que encerram, na medida em que se coadunam mais ou menos com as finalidades da formação, já que “learning through writing [is] a matter of task and genre choice

under appropriate conditions” (Bazerman, 2009: 281); no nosso caso, um “género

reflexivo”, cujos contornos estamos a procurar perceber, pode despoletar condições ideais de aprendizagem e de desenvolvimento do que nesta formação está em causa.

Acreditamos, pois, que, independentemente de afirmarmos que a “passagem à escrita” (Calame-Gippet et al., 2000) constitui um verdadeiro desafio, no quadro da formação contínua de professores, é mais produtivo centrarmo-nos num género de escrita em prática – neste caso, um “género académico reflexivo”, a reflexão livre.

Consequentemente, a questão que se coloca é como garantir que os escritos que propomos aos formandos são susceptíveis de criar este efeito de mudança e, consequentemente, de desenvolvimento profissional. Por exemplo, podemos questionar-nos se os tópicos que fornecemos aos formandos, em torno dos quais é

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desejável que escrevam, são suficientes para os textos se tornarem lugar de reflexão e de produção de conhecimento; além disso, não podemos esquecer o poder da instrução de escrita na selecção, por parte de quem escreve, dos tópicos e do processo de produção. Na realidade, nem só de conteúdos vivem os géneros, mas também de um estilo e estrutura composicional próprios com que é preciso familiarizar-se (o princípio de reflexividade e de auto-construção também aqui se aplica, não se tratando de, declarativamente, “ensinar a escrever determinado género”, mas de o mesmo ser discutido e re(co)-construído em comunidade).

Assim, as evidências que recolhemos sobre a forma como cada um entendeu o que era escrever uma reflexão livre poderão dar pistas que ajudem a definir este género reflexivo, para ilustrar modos de leitura possíveis e ângulos de análise para, em contextos de formação, explorarmos mais as suas potencialidades.

3. O “mundo” das reflexões livres