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CAPITULO III: ESPAÇO E INTERATIVIDA DE EM ASSASSIN’S CREED

1. Os espaços lúdico-narrativos

No capítulo anterior demonstrarmos como a historiografia é operacionalizada na composição da narrativa lúdica em Assassin’s Creed III em sua dimensão temporal, isso é,

através da interação do jogador com uma sequência de acontecimentos dispostos que desenrolavam o enredo do jogo. Para esta seção do trabalho vamos discutir a grande especificidade destes jogos eletrônicos: como a História é representada não só temporalmente em forma de uma narrativa contada, mas também espacialmente, ou seja, sujeita à performance de um jogador que explora o cenário que a reconstitui virtualmente.

As possibilidades de interação do jogador com o espaço são questão principal no desenvolvimento e promoção de qualquer jogo. Elas compõem fator essencial das estruturas de regras de jogo, se articulam com os gêneros lúdicos (discutidos no Capítulo 1) e são sempre um conjunto escolhas decidido previamente pelos programadores, que determinam as ações possíveis dentro do mundo do jogo201.

O principal aspecto que diferencia os games de outras formas e linguagens de representação são os espaços navegáveis, ambientes virtuais que permitem que o jogador percorra um delimitado espaço e interaja de formas diferentes, de acordo com a proposta da interface. No caso da franquia como um todo, são os espaços históricos possíveis de serem explorados que são seu aspecto mais importante e configuram como o diferencial atrativo em relação a outros games202. Enquanto a narrativa principal certamente orienta a exploração e é

201 Alguns autores apontam que o controle total escapa à mão dos produtores, na medida em que os jogadores

exploram bugs (defeitos na programação) e utilizam-se de mods (alterações e adições feitas por outros jogadores) ou hacks (modificações feitas no próprio software, que permitem acessar seções ou realizar ações não programadas). Apesar de isso ser potencialmente(parcialmente?) verdadeiro, devemos pontuar que essas “transgressões” ainda são realizadas em um espaço pré-programado. Entretanto, não aprofundaremos nesta discussão por uma questão de recorte e deixamos aqui claro que nos atemos ao game não modificado. Para abordagens específicas a questão da História e essas alterações ver APPERLEY, T. Modding the Historians’s Code: Historical Verisimilitude and the Counterfactual Imagination. In: KAPPELL, Mathew Wilhelm; ELLIOT, Andrew B.R. (orgs). Playing with the Past. Digital Games and the Simulation of History. New York: Bloomsbury, 2013. Ver também: CRABTREE, Gareth. Modding as Digital Reenactment: A case study of the Battlefield Series KAPPELL, Mathew Wilhelm; ELLIOT, Andrew B.R. (orgs). Playing with the Past. Digital

Games and the Simulation of History. New York: Bloomsbury, 2013. Por fim: BAILEY, Wm. R. Hacks, Mods,

Easter Eggs and Fossils: Intentionality and Digitalism in the Video Game. In: WHALEN; Zach. TAYLOR, Laurie N. (orgs) Playing the Past. History and Nostalgia in Video Games. Nashville: Vanderbilt University Press, 2008.

um segmento significativo da interação, dos esforços, da ligação emocional e da quantidade de horas desprendidas pelo jogador, veremos que é possível afirmar que há um predomínio da ambiência e do cenário sobre a experiência do tempo.

Os espaços virtuais são processados, isto é, eles dependem de algoritimos e regras matemáticas que seguem certos modelos prévios ao qual são modelados. Obviamente, a maioria dos jogadores não compreendem ou observam esses códigos, mas sim do jogo mediado pela dimensão audiovisual. Portanto, A criação destes “mundos” de regras é uma forma de simulação que segue um modelo preconcebido e o jogador depende de uma apresentação “legível” e uma funcionalidade que lhe faça sentido. Salen e Zimmerman compreendem o jogar como o movimento livre dentro de uma estrutura rígida203.

A apresentação audiovisual é a condição essencial para a criação de espaços dos games. Esses espaços combinam elementos da arquitetura e do cinema e dependem de um plano mediador (a tela da TV, de um monitor ou de outro aparelho) para tornar acessível ao jogador. Essas formas de apresentação e o próprio espaço não são neutros, seja o trabalho de câmera, a edição, o som, cada um adiciona uma espécie de “filtro narrativo” ao ambiente do jogo. Uma vez que essa apresentação é dinâmica e muitas vezes interativa, esse filtro não é nem simples ou estático, e de certa forma, provém uma forma de estruturação. A focalização é uma das formas de guiar o jogador por essa interface.204

A representação sobre a sociedade deve ser decodificada através da análise da narrativa e das articulações entre a representação audiovisual da trama, personagens e espaços e o conjunto de regras que determinam os objetivos do jogo. Também é necessário refletir sobre as leis da física aplicadas e sua funcionalidade interativa, isto é, o que é possível ou desejado que o jogador faça e como isto é estruturado dentro da coerência interna do ambiente virtual pré- determinado.

O estudioso de novas mídias, Henry Jenkins, propõe que os game designers não simplesmente contam uma história, mas desenham mundos e esculpem espaços – e devem ser, portanto, compreendidos como “arquitetos narrativos”, produtores de um “ambiente contador-

qualidade de sua imagem e da riqueza de detalhes.

203 ZIMMERMAN, Eric; SALEN, Katie. Rules of Play: Game Design Fundamentals. Cambridge: MIT Press,

2003

204 NITSCHE, Michael. Video Game Spaces. Image, Play, and Structure in 3D Worlds. Massachussets: MIT

de-histórias” (environmental storytelling) dotados de uma “história espacial”205. Essa seria uma

das particularidade dos games: contar histórias, transmitir narrativas e representações de formas distintas a de outras linguagens. Por vivermos em uma indústria cada vez mais transmidiática, cada game existe em diálogo com os outros games da série e de outras produtoras, concebendo uma experiência lúdico-narrativa através da manipulação de detalhes do ambiente. A organização da trama se dá pelo design da geografia do mundo imaginário, pensando que obstáculos criem desafios e possibilidades para o avanço do protagonista em direção à resolução do objetivo.

Esta interatividade, pensada como as possíveis ações, decisões e protagonismos do jogador dentro dos videogames, é central à construção de sua linguagem e se articula a um discurso mais amplo dentro do mundo social. Dessa forma, o pressuposto teórico fundamental dessa interatividade é a ação excepcional e individual dentro de um sistema meritocrático que recompensa o agente por seus esforços e legitima sua performance diante do seu “trabalho duro”. Ao ultrapassarmos a análise da interação com a narrativa principal, podemos perceber diversas instâncias que qualificam os esforços do jogador por sua dedicação, o premiando com novas “quests”, itens, equipamentos, uniformes para seu Assassino, além de “troféus” que permitem sua exposição social dentro da comunidade de jogadores. O mérito do gamer, portanto, estabelece-se na concretização da sua liberdade em consumir conquistas que rendem um maior e mais qualitativo acesso ao mundo dentro do jogo, e a possibilidade de conquista de um status de vangloria pessoal e dentro da rede de jogadores.

Nesse sentido, um dos trabalhos fundamentais para a compreensão dos espaços tridimensionais nos Videogames é o livro de Michel Nitsche, que irá acompanhar a reflexão teórica deste capítulo. Nitsche propõe a ideia de espaços virtuais como “narrativas evocativas”: narrativas construídas a partir da disposição dos elementos do cenário do jogo que criam compreensão a partir do sentido das ações entre jogador. O jogador, então, trança conexões, cria um contexto narrativo e preenche as lacunas através de sua imaginação e criatividade. Essa narrativa evocativa encorajaria os jogadores a projetar sentido nos eventos, objetos e espaços nos mundos jogáveis. Seu objetivo não é contar uma história linear, mas prover meios evocativos para o interator compreender os espaços virtuais, além dos eventos dentro deles, criando contexto e significância para que o espaço e a experiência tenham mais sentido. Nos

205 JENKINS Henry, Game Design as Narrative Architecture. In: WARDRIP-FRUIN, N.; HARRINGAN, P. First Person. Cambridge: MIT Press, 2004.

espaços dos games, qualquer rota específica que o jogador use para navegar através do espaço é uma negociação com a estrutura e as regras codificados no ambiente.206

O autor de um filme ou livro tem um alto controle sobre o quando e o se o espectador recebe certas informações, mas um game designer só pode controlar em certo nível o processo narrativo distribuindo informações pelo espaço navegável. À dimensão temporal das narrativas e à descrição textual/visual dos espaços, temos uma dimensão propriamente espacial da narrativa, onde as representações e o contar-histórias se dá pelo espaço representado e pelo comportamento de objetos simulados dentro dele. Dentro de uma estrutura narrativa de exploração aberta, pedaços essenciais da narrativa devem ser distribuídos em um grande número de locais e artefatos. Assim, na intersecção entre cenas fílmicas e espaço navegável, o jogador pode observar e interagir com elementos de cenário (que incluem objetos, edifícios e pessoas) que reagem às ações e têm comportamento próprio. Dessa forma, as escolhas do design e da organização dos espaços dos games também têm consequências narratológicas. Pode-se aumentar a sensação de imersão no game world ou comunicar uma perspectiva nova na história alterando detalhes pré-estabelecidos.

A jornada do jogador não ocorre apenas em um ambiente visual, mas também sonoro. De forma conjunta, o som guia os jogadores a entender os eventos do game e a construir uma compreensão significante da ação. Não há uma “posição natural” do escutar em um espaço virtual, e assim como a câmera, o som “narra” o espaço ao jogador e implica a posição de um ouvinte além do plano mediatizado. Os efeitos sonoros podem construir, personalizar e caracterizar o espaço virtual e os objetos e criar um “sentido de lugar”. Além disso, também são o link entre as ações do avatar-jogador e sua conexão com o espaço virtual, junto com o vibrador do controlador (se houver). O barulho das multidões indica um grande número de pessoas nas ruas, o silêncio povoado por barulhos da mata fechada, a sensação de solitude na

wilderness, o som da água corrente ou das ondas, todos constituem e remetem ao espaços

representados e invocam a “imersão” em um espaço sem uma história narrada, e, desse modo, diferentes espaços “discursam” diferentes sons e constroem a aura de verossimilhança.

Analogamente ao que se sucede com o cinema, Assassin’s Creed III usa a trilha sonora

especialmente composta e produzida para dar suporte e ênfase ao ambiente e elementos evocativos do cenário, delimitando a ação dramática. As vozes pré-gravadas preenchem os

206 NITSCHE, Michael. Video Game Spaces. Image, Play, and Structure in 3D Worlds. Massachussets: MIT Press,

espaços históricos e se tornam tanto uma parte significativa dos cenários como do comportamento expressivo do avatar, junto com suas animações, expressões faciais e movimentos no espaço. Os gemidos e gritos enquanto escala, cai e ataca são imediatos à inserção de comandos pelo jogador e reforçam a ideia da relação entre o que ele está efetuando no controle e ação propriamente dita em tela.

A combinação destes elementos constroem, então, um “ambiente sonoro” ao serem combinados e dispostos tanto em tela quanto fora dela, criando uma esfera do “audível” que expande a experiência proposta ao jogador a um mundo que é maior do que suas ações individuais, e paradoxalmente, só existem diante delas. Assim, tanto os aspectos visuais quanto os sonoros se a articularam na construção deste espaço virtual navegável que possui múltiplas dimensões narrativas. A narrativa emerge das opções interativas disponíveis; da forma à qual o espaço é representado; dos pequenos núcleos que chamamos de quests. O espaço virtual é permeado de elementos evocativos como um espaço fictício contextualizado.207