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CAPÍTULO I OS VIDEOGAMES NA HISTÓRIA E A HISTÓRIA NOS VIDEOGAMES

7. O processo de narrativização dos games

No momento em que foi produzido o primeiro Assassin’s Creed, as discussões entre ludologistas e narratologistas no campo acadêmico já existiam há alguns anos, inauguradas sobretudo pelo debate que o periódico online Game Studies estabelece com autores que defendem o potencial narrativo dos jogos122. Os autores deste periódico travam uma batalha

conceitual em defesa da prioridade lúdica dos jogos, que estaria se perdendo frente a “colonização” tanto dos estudos sobre narrativa quanto dos próprios jogos estarem cada vez mais articulando a narrativa e a jogabilidade. Autores como Espen Aarseth, Gonzalo Frasca, Jesper Jull e Markku Eskelinen se auto-intitulam “ludologistas” ao afirmar que a narrativa não é uma exigência intrínseca aos games. De fato, é observável com a proliferação de jogos de produtoras independentes e de baixo orçamento nesta década, que a “história” de um jogo pode ser absolutamente deixada de lado em primazia da jogabilidade.

Para além da suposta narrativização dos jogos, Eric Zimmerman, por sua vez, considera que não é possível pensar videogames nos modelos teóricos da narração clássica e propõe que os jogos eletrônicos sejam compreendidos como dotados de uma espécie de narratividade própria diferente de outras mídias, com objetivos e caminhos distintos. A especificidade da estrutura lúdica dos ludologistas é apropriada e concebida como detentora de um novo modo de experenciar o mundo123.

Intelectuais, arte e Vídeo-Cultura na Argentina. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997. Trad. Sérgio Alcides. 122 GAME STUDIES. Disponível em: <http://www.gamestudies.com>. Acesso em: 15 ago. 2012.

O que nos interessa é salientar o caminho pelo qual hegemonicamente a indústria de games caminhou nas últimas décadas: o caminho da narrativização e tridimensionalização do espaço lúdico e virtual dos jogos eletrônicos. Em debate com os “ludologistas”, Marie-Laure Ryan descreve um processo de "narrativização" dos videogames, onde suas estruturas de regras são imediatamente inseridas em um contexto narrativo ou intermediadas por interrupções que contam uma história, através de diálogos ou cenas construídas a partir de uma lógica hegemonicamente cinematográfica124.

Cada jogo eletrônico possui uma forma muito particular de estruturar sua narrativa. Há pouca padronização mesmo na estruturação de seus arcos narrativos, apesar de quanto mais se aproximam da lógica cinematográfica, mais se aproximam da estrutura narrativa clássica. Embora grande número de gêneros e jogos tenha feito parte desse processo, passando a incluir “modo história” ou “campanha” e representações mais estilizadas com componentes narrativos, são os Jogos de Performance que passam a ser os principais propulsores e portadores do elemento narrativo em suas regras e jogabilidade.

Este processo de narrativização levam estes games sobretudo a se basear na descrição feita de Joseph Campbell sobre a jornada do herói e o monomito125. O jogador controla um

único avatar ou um grupo de avatares e os conduz através de uma "jornada" que constitui-se em "fases", “níveis” ou "episódios" e tem um propósito final (mesmo que seja continuar infinitamente "passando de fase"), dentro de uma estrutura ludológica e narrativa, a ser alcançado. Esta forma que centraliza em torno do objetivo final conduz dentro das regras do jogo o que o jogador deve fazer: derrotar todos os inimigos, infiltrar-se em um castelo, assassinar alguém, fugir de um navio, etc.

As unidades regulares sem história descritas por Sarlo eventualmente foram substituídas pelas quests, um termo que em acordo com Jônatas Oliveira poderia ser traduzido como "busca", "jornada" ou "missão", mas que passam a ter um significado dentro dos games bem mais preciso, pois passam a ser "dispositivos narrativos", ou então "pequenas cápsulas

In: WARDRIP-FRUIN, N.; HARRINGAN, P. First Person. Cambridge: MIT Press, 2004. pp. 154-163.

124 RYAN, M. From Narrative Games to Playable Stories: Toward a Poetics of Interactive Narrative. StoryWorlds: A Journal of Narrative Studies. v. 1, n. 1. 2009. pp. 43-59.

125 Não compactuamos com a descrição e análise que Campbell faz sobre o caráter universal da jornada do heróis,

mas parece-nos inegável que sua estrutura narrativa é norteadora dentro da estrutura narrativa ocidental e tomada como inspiração ou “modo de fazer” por grande parte dos produtores de jogos eletrônicos. CAMPBEL, J. O herói

narrativas" que contém desafios e postulam objetivos ao jogador126. Estas “unidades narrativas”

estabelecem um começo, meio e fim para as ações do jogador e se incorporam a narrativa mais ampla, conduzindo episodicamente o processo.

Para deixarmos estas mudanças nas transformações dos Jogos de Performance mais claras, trabalharemos com alguns exemplos dos jogos de “Plataforma” e “Ação”, o primeiro grupo listado em nossa categorização. Outros gêneros dos Jogos de Performance como os RPG’s e os Point and Click, portadores desde o princípio de uma narrativa mais importante e articulada às suas exigências formais, vão também ganhando mais diálogos e recursos audiovisuais cada vez mais sofisticados em dependência do desenvolvimento tecnológico e capacidade de armazenamento das mídias. A colonização da narrativa avança no decorrer dos anos em quase todos os gêneros.

No cenário descrito por Sarlo sobre os “videogames clássicos”, em jogos como Pac-

Man ou Donkey Kong, cada fase - nível de jogo - é similar ao anterior, muito embora com um

maior nível de dificuldade. O cenário é estático (Fig. 1.11), não há transições de tela e câmera e funciona na estritamente na lógica do “infinito periódico”, isto é, um ciclo sem narrativa, cujo objetivo é o jogador tentar derrotar a máquina que propõe cada vez maiores desafios, sendo impossível chegar a um fim definitivo: mesmo que o jogador seja excepcionalmente habilidoso em Pac-Man (e estamos falando de poucos indivíduos no mundo), ao encerrar o último nível, o game retorna a seu início.

126 OLIVEIRA, Jônatas Kerr de. Videogames e a narrativa seriada: Quest como ferramenta para a construção de mundos. Dissertação (Mestrado em Imagem e Som) - Universidade Federal de São Carlos (UFscar), 2010. p.

Figura 1.11: “Fase” de Pac-Man

Fonte: https://atariage.com/screenshot_page.html?SoftwareLabelID=2754

Alguns anos adiante e o padrão da indústria começa a tomar forma nos exemplares Super

Mario Bros. (Nintendo, 1986) e Sonic the Hedgehog (Sega, 1991), cujas fases são trajetos

lineares/ramificados bidimensionais. Os temas já ganham um número maior de significantes:

Mario deve passar por diversas regiões de um reino mágico para salvar a princesa do vilão, Sonic por diversas regiões de um mundo que está sendo conquistado e poluído por um cientista

maligno. Ambos apresentam personagens com objetivos e cenários - florestas, oceanos, desertos - que devem ser ultrapassados para chegar a um fim. Cada fase é um período, mas não mais infinito, o jogador pode enfim, derrotar os desafios apresentados pela máquina e ser recompensado não só com a própria satisfação pessoal e o reconhecimento dos pares, como o próprio game oferece uma recompensa simbólica e narrativa que o conclui: o final, o encerramento do jogo e os créditos.

Esse modelo de “fases” se estabelece e continua como o principal topos estruturante dos jogos eletrônicos até os dias atuais dentro dessa família de Jogos de Performance. O que não implica ausência de transformações como indica a adoção da tridimensionalização do espaço virtual, tornada hegemônica pelas grandes produtoras, supostamente atendendo às exigências do público por gráficos esteticamente mais bonitos e se aproximando das representações

audiovisuais típicas do cinema. Colocado diante de cenários muito próximo de suas origens tradicionais, cada jogo tenta sanar o problema técnico da transição do aspecto lúdico de um ambiente bidimensional para um tridimensional respondendo ao desafio com narrativas cada vez mais articuladas.

Nas figuras abaixo, podemos evidenciar brevemente como em Super Mario Bros. (1989) o avatar move-se para a direita ou esquerda e a câmera o acompanha transitando a tela, até o “final da fase”, onde se encerra o período e pode iniciar um novo; enquanto em Super Mario

Galaxy (2007), após ser apresentado a uma cena fílmica, o avatar é controlado em múltiplas

direções e deve seguir o caminho, cuja câmera e símbolos indicam em direção do castelo ao fundo. Os jogos bidimensionais e com “gráficos” desenhados ou em pixels continuam a existir, mas passam a ser preferidos por produtoras independentes por seu menor custo de produção ou por um resgate retrô do início da indústria dos games.

Figura 1.12: Fase 1-1 de Super Mario Bros.

Figura 1.13: Super Mario Galaxy – seção inicial da narrativa

Fonte: http://middleofnowheregaming.com/

Gradativamente as séries e novos jogos começam a ceder às exigências de um mercado que pede gráficos cada vez melhores - ainda que isso não altere em nada o aspecto lúdico, sendo quase uma exigência estética - e histórias mais elaboradas e conectadas com a jogabilidade127.

Esse processo não é, entretanto, um continuum linear, pois é cheio de descontinuidades: um conjunto de outros games e muitos gêneros já nascem com narrativa, jogabilidade e fases mais articuladas, enquanto alguns poucos mantiveram-se distantes dessa intensificação da narrativa. É no momento de intensa "narrativização" e superprodução dos jogos que encontramos a série

Assassin's Creed, como talvez, um dos grandes exemplos a discutir os projetos e as

representações construídas por essa indústria.

127 Definitivamente uma das mudanças mais radicais e exemplares é a do personagem Sonic, que passa a partir de

Sonic Adventure (Sega, 1998) a ser mais esbelto, de olhos verdes e com uma personalidade mais rebelde, afeita à velocidade, aventura, adrenalina e emoção. Em Sonic Unleashed (Sega, 2008), o ouriço contrai uma maldição e se torna uma espécie de "lobisouriço" para justificar variabilidades na jogabilidade; em Sonic Knight (Sega, 2009) possui uma espada e a narrativa é um pastiche de outras histórias, e assim por diante. Mesmo o mais conservador Super Mario (cuja adaptação tridimensional foi mais bem recebida) transita de um hub estéril narrativamente que serve de transporte para as fases periódicas para Super Mario Sunshine (Nintendo, 2002) e Super Mario Galaxy (Nintendo, 2007) com histórias cada vez mais articuladas a sua passagem pelos diferentes níveis.

8. Entre a História e para a História: Assassin’s Creed e as outras particularidades