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CAPÍTULO II – DISCURSO, FÉ, MEDIAÇÃO E FORMAÇÃO DE IDENTIDADE

3.1 OS OUTROS CATÓLICOS

Essa relação com as Igrejas Ortodoxas faz com que as Igrejas Católicas Orientais sejam quase um duplo de suas coirmãs. Em outras palavras, as Igrejas Católicas Orientais reorganizaram suas tradições baseando-se nas Igrejas Ortodoxas a que pertenciam no passado. Portanto, não é coincidência que as comunidades imigrantes na cidade muitas vezes estejam associadas às duas Igrejas Orientais: uma Ortodoxa e uma Católica. Um exemplo irá tornar essas relações mais claras.

A Igreja Católica Ucraniana divide com a Igreja Ortodoxa Ucraniana os membros da diáspora ucraniana na cidade. A Igreja Católica Armênia divide com a Igreja Apostólica Armênia os membros da comunidade armênia. Assim sendo, essa proximidade criaria uma relação especial entre Igrejas de uma mesma comunidade. Além das Igrejas mencionadas, existe uma relação especial entre a Igreja Católica Maronita e a Igreja Ortodoxa Sirian, a Igreja Católica Melquita e a Igreja do Patriarcado Ortodoxo de Antioquia e entre a Igreja Ortodoxa Russa no Exílio e a Igreja Russa Católica. A Igreja Ortodoxa Grega e a Igreja Ortodoxa Copta não possuem irmãos católicos na cidade de São Paulo.

As influências dessas Igrejas nas suas comunidades variam, não há uma divisão igualitária entre fiéis ortodoxos e católicos. A Igreja Apostólica Armênia é muito mais influente na comunidade paulistana que sua irmã católica. Por outro lado, os católicos maronitas são muito mais numerosos do que os ortodoxos sirian na cidade e no país. Essas Igrejas Católicas Orientais têm uma organização própria que, muitas vezes, depende da hierarquia latina paulistana, mas o passado dessas comunidades e sua emigração para a metrópole as tornam próximas das Igrejas Ortodoxas.

A Igreja Católica Maronita está associada à comunidade árabe e intimamente relaciona à imigração libanesa. A associação entre o Líbano e a Igreja Maronita é antiga e está ancorada no mito de que os verdadeiros libaneses seriam membros dessa Igreja, os católicos orientais de tradição siro-aramaica, para muita contestação das demais comunidades culturais do Líbano.111

As origens da Igreja Maronita remontam ao século V, quando os seguidores de São Marun fundaram, com o Imperador Romano, o Mosteiro de Beit Marun na atual Síria:

Não foi por acaso que o imperador Marciano mandou construir o convento de São Marun um ano após o Concílio de Calcedônia. Constatando o poder de persuasão daqueles monges e sua influência crescente sobre o povo arameu da região, resolveu apoiá-los para receber em troca seu apoio nos domínios políticos e religiosos.112

Numa história oficial, os Maronitas estão, desde sua fundação, associados a uma união com as Igrejas Calcedonianas e, em última instância, também com a Igreja Católica Romana. Essa antiga relação com Roma é algo, como será visto mais adiante, de suma importância para a criação de uma tradição Maronita.

Essa associação com a Igreja Latina pode ser encontrada na organização da Igreja Católica Maronita na cidade de São Paulo. Ao contrário do que ocorre com muitas Igrejas Católicas Orientais na cidade, a Igreja Maronita está subordinada à Arquidiocese de São

111 MOOSA, Matti. The Maronites in History. Piscataway: Georgias Press, 2005. p.284.

Paulo113. Assim, ela estaria subordinada à hierarquia Católica Latina da cidade. A Igreja Católica Melquita também divide esse destino.

Figura 11 - Igreja Católica Maronita na Rua Tamandaré.114

Os Melquitas115 também estão ligados à imigração árabe na cidade, síria e libanesa. Por sua ligação profunda com o imperador bizantino, a Língua Litúrgica da Igreja Melquita era o grego, mas aos poucos o árabe foi tomando esse lugar116. Diferentemente da Igreja Maronita, que tem como Língua Litúrgica o siro-aramaico (língua mais falada no Levante

113 Depoimento de membro do clero da Igreja Católica Maronita da cidade de São Paulo, em entrevista concedida ao autor em 3/2/2010.

114 Autor: Felipe Beltran Katz. Data: 7/9/2011.

115 A palavra Melquita tem origem no siro-aramaico malik, que significa senhor, rei, imperador. No início do cristianismo, no Levante, os cristão calcedonianos eram chamados assim, pois professavam a mesma doutrina religiosa do imperador romano/bizantino. Com o passar dos séculos, esse nome foi associado exclusivamente aos membros da Igreja Católica Melquita. SHOFANY, Saba. The Melkites at the Vatican Concil II: Contribution of the Melkites Prelates to the Vatican Concil II. Bloomington: Authorhouse, 2005. p.3.

116 Depoimento de membro do clero da Igreja Católica Melquita da cidade de São Paulo, em entrevista concedida ao autor em 20/5/2010.

antes da chegada do Islã). Ambas as Igrejas sofreram com as convulsões da região que culminaram com a Guerra Civil libanesa nas décadas de 1970 e 1980. Problemas políticos e econômicos, além das perseguições a esses grupos, provocaram a emigração dessas populações:

O precário balanço de nações e religiões do Líbano foi testado durante o século XX. [...] Cerca de 670.000 Cristãos dispersaram-se pelo conflito comparados com 158.000 Mulçumanos; as consequências sociais e econômicas para todas as comunidades Cristãs foram imensas e levaram à uma generalizada emigração.117

Maronitas e Melquitas dividem esse passado, como Igrejas de origem árabe e como Católicas Orientais. Outra Igreja que sofreu com as convulsões do Oriente Médio foi a Igreja Católica Armênia, que, como sua coirmã Apostólica Armênia, assistiu ao Genocídio Armênio118.

Com relação à organização da Igreja Católica Armênia na cidade, cumpre notar que ela é independente da arquidiocese, pois é um Exarcado119:

Vindo a Igreja Armênia Católica na América Latina, em 1981 foi criado um Exarcado Apostólico para toda a América Latina. Exarcado na Teologia Oriental Eclesiástica significa uma diocese em formação e, para usar a terminologia oriental, uma eparquia em formação. Estende-se desde o México até a Argentina [...] na realidade nós temos

117O‟MAHONY, Antony. Syriac Christianaty in the Modern Middle East. In: ANGOLD, Michel (Org.). The

Cambridge History Of Christianity - Eastern Christanity. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

p.522.

118 Ver Capítulo 1.

119 O Exarcado é uma divisão eclesiástica do cristianismo oriental que possui origem nas divisões provinciais do Império Bizantino. Ela denomina uma eparquia (diocese oriental) em formação, sua autonomia é limitada e está submetida diretamente à autoridade máxima da Igreja. PARRY, Ken (et. al.). The Blackwell Dictonary of

seis países somente com comunidade armênia católica. O México, a Venezuela, o Brasil, o Uruguai, a Argentina e o Chile. A Argentina, em 1989, foi elevada à categoria de diocese, ou seja, de eparquia e [...] naturalmente eu tenho uma sede para cada país, tem uma catedral em São Paulo na Avenida Tiradentes, no bairro da Luz, tenho outra em Montevidéu para aquela comunidade e na Argentina em Buenos Aires.120

Esse Exarcado com sede em São Paulo está diretamente subordinado ao Papa de Roma. Pode-se perceber que a representação da Igreja Católica Armênia na cidade comanda as decisões das demais comunidades armênias católicas da América Latina, salvo a Argentina, que possui uma Eparquia121 própria. As Igrejas Católicas Eslavas também não estão subordinadas à arquidiocese latina da cidade.

A Igreja Católica Ucraniana em São Paulo, assim como a Igreja Ortodoxa Ucraniana de São Caetano do Sul, também é formada pelos grupos que imigraram após a Segunda Guerra Mundial:

As Igrejas que tem aqui em São Caetano e na Vila Bela na realidade, elas foram feitas com a ajuda mais da segunda imigração, que foi depois da Segunda Guerra Mundial. Começou a chegar em 49, mais ou menos, até 52, que veio a grande maioria.122

Tanto os grupos ucranianos ortodoxos como os católicos foram forçados a colaborar como força de trabalho para a Alemanha nazista123. Com o fim da guerra, temeram sofrer

120 Depoimento de membro do clero da Igreja Católica Armênia da cidade de São Paulo, em entrevista concedida ao autor em 9/3/2010.

121 Nome dado às dioceses no cristianismo oriental.

122 Depoimento de fiel da Igreja Católica Ucraniana da cidade de São Paulo, em entrevista concedida ao autor em 20/8/2011. O código de identificação desses entrevistados será F-UC.

represálias na União Soviética como desertores. Assim sendo, com a colaboração da Cruz Vermelha e das comunidades imigrantes do Canadá, conseguiram emigrar para países com comunidades ucranianas já estabelecidas (da Primeira Imigração), como o Brasil124. A Igreja Católica Ucraniana em São Paulo depende de sua sede brasileira localizada em Curitiba, que, por sua vez, é subordinada à arquidiocese latina daquela cidade.

O caso da Igreja Católica Russa é peculiar. Ela está intricadamente ligada à sua condição de paulistana, diferentemente das demais Igrejas Católicas Orientais na cidade, que muitas vezes estão associadas a uma trama de relações mundiais. O grupo de cristãos russos que compõem essa Igreja tem origem na cidade de Harbin, no norte da China. Esse grupo estabeleceu-se na cidade para evadir-se da perseguição religiosa ocorrida na Rússia logo após a Revolução de 1917:

E quando o Comunismo chegou bem perseguindo mesmo, tudo, inclusive os ortodoxos. Nós temos canonizados agora mais de 2 mil entre bispos, sacerdotes, padres com suas famílias, mulheres e filhos e leigos, simples leigos, que estavam engajados na ortodoxia. Então, mais de 2 mil mártires, fora os confessores que foram torturados, mas não chegaram a morrer. Muitos foram para Harbin, na China. Foi uma verdadeira cidade russa, Harbin. Depois tinha também... Na China e em vários lugares, várias cidades... Xangai tinha.125

Segundo RC, as revoltas socialistas na China após a Segunda Guerra Mundial fizeram com que padres latinos interviessem em favor dessa comunidade russa naquele país:

124 Depoimento de fiel da Igreja Católica Ucraniana da cidade de São Paulo, em entrevista concedida ao autor em 20/8/2011.

Quando o Comunismo chegou lá, aí havia padres relacionados com o Vaticano, aí que a globalização ajudou, porque um grupo foi encarregado de acompanhar russos. Creio eu, não propriamente para convertê-los ao catolicismo, mas para manter aquela cultura deles, a religião deles. Um deles era inglês; foi preso em Xangai, depois foi solto, veio parar aqui no Brasil. Trabalhou muito pelos russos. Não creio que ele tivesse intenção de dar coisas para os russos, para depois... Trabalho, atendimento, para depois trazer para a Igreja Católica. Isso está comprovado que não foi assim. Veio o primeiro, que foi reitor do famoso Colégio Russico, que preparava os padres que iam para a Rússia. Esse chama-se Felipe de Régis. Ele fundou uma igreja, um centro, em Buenos Aires e veio para o Brasil, outro centro. Tudo combinado com o governo brasileiro, governo argentino, diplomaticamente, para receber levas dessa população russa da China, que vinha para o Brasil e para Buenos Aires. E foi assim que começaram a chegar. Era Juscelino Kubistchek, dispensaram muitas exigências de imigração, que já havia na época, e vieram muitos.126

No depoimento de RC sobre a fundação de sua Igreja na cidade destacam-se alguns aspectos: o patrocínio oficial do governo brasileiro, que trouxe esse grupo para o país, durante o governo do presidente Juscelino Kubistchek, e principalmente a atuação da Igreja Católica e seu ramo latino no apoio a esses imigrantes. Percebe-se no depoimento um cuidado de RC em não apontar nenhum tipo de proselitismo da Igreja Católica na direção desses grupos russos, que eram na sua maioria ortodoxos.

No entanto, esses grupos russos vindos da China acabaram por associar-se, como será discutido mais adiante, a instituições criadas pela Igreja Católica no país. Isso, em última instância, criou na cidade uma Igreja Católica Oriental Russa, inexistente na própria Rússia. Esse tipo de projeto da Igreja Católica com as comunidades russas da China não ocorreu

126 Depoimento de membro do clero da Igreja Católica Russa da cidade de São Paulo, em entrevista concedida ao autor em 14/2/2010.

somente no Brasil, mas também em outros países como Estados Unidos e Austrália, para onde alguns membros da comunidade russa de São Paulo reemigraram127.

Figura 12 - Igreja Católica Russa ao lado do Museu Paulista.128

Um indício de que esse apoio às comunidades russas da China foi encarado como proselitismo está nas queixas e atitudes da Igreja Ortodoxa Russa no Exílio presente na cidade em relação à sua coirmã Católica Oriental, como se nota no depoimento de RC:

Não eram bem vistos pelos ortodoxos já existentes em São Paulo. “Vocês vão converter”, pois, olha, todos nós temos que nos converter,

127 Depoimento de membro do clero da Igreja Católica Russa da cidade de São Paulo, em entrevista concedida ao autor em 14/2/2010.

mas não assim, que você vai deixar sua religião para passar para essa. Não estamos nessa vontade.129

RC sugere a relação entre as Igrejas. A Igreja Ortodoxa Russa na cidade encara a atitude da Igreja Católica como proselitismo, a conversão de seus possíveis fiéis. Em contrapartida, RC afirma que não há proselitismo por parte da Igreja Católica. Mas, de fato, a comunidade russa vinda da China para a cidade de São Paulo, ou o pouco que restou dela, está firmemente associada à Igreja Católica Russa na cidade, e não à Igreja Ortodoxa Russa no Exílio. Isso é obra da influência da Igreja Católica no estabelecimento dessa comunidade específica na cidade.

Esse é um pequeno exemplo da relação entre as Igrejas Orientais presentes na cidade, principalmente a relação entre Igrejas que dividem uma mesma comunidade. Muitas vezes, ela é cordial, mas esbarra na luta pela própria afirmação dessas Igrejas e na fabricação de uma memória coletiva que por vezes é usada para justificar a união de determinado ramo com a Igreja Católica. Alguns desses conflitos serão evidenciados a seguir.