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CAPÍTULO II – DISCURSO, FÉ, MEDIAÇÃO E FORMAÇÃO DE IDENTIDADE

2.1 MIMESE: MANUTENÇÃO E FORMAÇÃO DE IDENTIDADES

2.1.1 Ritos e Diáspora

O Rito reforça a identidade e a fé, relembra a memória coletiva de uma comunidade, sendo motivo de orgulho e originalidade da comunidade:

Com certeza. O Rito é diferente, as orações são diferentes, e temos alguma coisa excepcional, que nenhuma outra tem: as palavras de consagração rezamos sempre em língua siro-aramaica, que era língua de Jesus Cristo mesmo.66

Essa foi a resposta de MN quando perguntado acerca da diferença entre sua Igreja e a Igreja Católica Latina. Ambas estão em comunhão, mas mantêm certas peculiaridades, que são reforçadas no Rito. MN relembra com orgulho que sua Igreja é excepcional, pois o as palavras de consagração são rezadas em siro-aramaico67, a língua do próprio Jesus. MN marca a distinção entre sua Igreja e a Igreja Latina e relaciona sua identidade Maronita com sua fé. Fé e identidade são inseparáveis e necessariamente têm de ser mantidas e guardadas para que os Maronitas continuem Maronitas.

Assim, a Língua Litúrgica, a língua do Rito, é importante para essa manutenção. Este item do estudo deve focar especificamente esse aspecto linguístico que perpassa todo o tema do Rito e a Diáspora. A Língua Litúrgica seria uma espécie de núcleo do Rito na Divina Liturgia e o domínio dela é essencial ao membro do clero. O lugar metafórico da Língua Litúrgica original dessas Igrejas é o lado voltado para o altar do Iconostasis, juntamente com os outros elementos necessários à fé cristã oriental.

66 Depoimento de membro do clero da Igreja Católica Maronita da cidade de São Paulo, em entrevista concedida ao autor em 3/2/2010.

67 Língua semita falada na região do Levante antes da chegada do Islã. PARRY, Ken (et. al.). The Blackwell

Observa-se que essa relação permeia a totalidade das Igrejas Orientais presentes na cidade de São Paulo, ou seja, não é privilégio do grupo Ortodoxo. As Igrejas Católicas Orientais também têm esses elementos como preocupação no horizonte de seus membros clericais.

Este capítulo dará ênfase às relações de mimese, às problemáticas e aos projetos futuros de todas as Igrejas Orientais paulistanas. A exceção ocorrerá no próximo item, em que será abordada a relação entre as Igrejas pela perspectiva dos membros do clero. Nesse caso, o destaque será dado somente às Igrejas Ortodoxas, pois o próximo capítulo, dedicado exclusivamente às Igrejas Católicas Orientais, tratará da relação entre estas e a demais Igreja Orientais. Essa divisão se deve ao fato de que todas as relações das Igrejas Católicas Orientais com quaisquer outros grupos religiosos são permeadas pelo peso da Igreja Católica Latina, instituição a que, em última instância, elas pertencem.

Retomando a questão da mimese na metrópole, GO resume bem o que seria essa relação fundamental entre essas Igrejas e suas respectivas diásporas:

Mas vieram e um grande segmento esteve aqui em São Paulo e sempre onde tem uma comunidade, de qualquer povo, eles se unem, é culturalmente para manter a língua, manter as tradições, manter os cânticos, manter também a comida, alimentação, porque eu acho que quando termina o cardápio, terminou um povo. O Rito também é importantíssimo, porque o rito, em qualquer igreja, é expressão também de uma fé, tem uma força grandiosa o rito. Então sempre todas as colônias, elas sempre construíram um templo e no templo desenvolvem tudo.68

Figura 7 - Igreja Ortodoxa Grega no bairro do Brás.69

GO relembra elementos essenciais dessa mimese, da reprodução da cultura e da fé grega na metrópole. A língua, os cânticos e, inclusive, a comida típica aparecem como recursos aglutinadores. Relembrar o cardápio, segundo GO, seria uma forma de refazer a experiência da comunidade, ao passo que esquecê-lo seria anular as referências do grupo. No entanto, mais uma vez, é o Rito que tem destaque como elemento fundamental dentro das Igrejas Orientais.

Durante o Rito na Divina Liturgia existe a figura do coro. O coro é formado basicamente por membros da comunidade que cantam durante toda a celebração:

E todos os religiosos têm obrigação de aprender essa língua, Grabar, Armênio Clássico e todos os cânticos da Igreja... E outra coisa também, a Igreja Armênia pratica sua missa com um coral. Sem coral não se pode fazer a cerimônia da missa. Então todos os domingos praticam, celebram a missa cantada em Grabar, em Armênio Clássico. E o Rito como um Rito Oriental, como um Rito próprio Armênio, com cultura armênia, é bastante, digamos assim, dá motivo de inspiração ao ouvinte que está presente na missa, e nós temos muitos testemunhos quando realizamos casamentos, batizados, mesmo enterros, além das missas dominicais [...].70

O coro é indispensável para a Divina Liturgia. A língua utilizada, no caso, é o Armênio Clássico (Grabar), a Língua Litúrgica da Igreja Armênia. AO destaca o fato de que o membro do clero, o religioso, tem obrigação de aprender essa língua. No entanto, o coro, de certa maneira, também conhece a Língua Litúrgica, ou seja, o momento da Divina Liturgia também é um momento em que os féis colaboram em conjunto para a preservação da cultura da comunidade.

Como guardião dessa identidade, AO afirma com orgulho o impacto que essa sua identidade causa nos “brasileiros”: “[...] todos os brasileiros que assistem essas cerimônias admiravelmente expressam as suas admirações e parabenizam a nós.” 71 Quando destaca isso em seu depoimento, ele estaria orgulhosamente sugerindo que seu papel dentro de sua Igreja é cumprido. Ele e sua comunidade são parabenizados por indivíduos que não pertencem a ela (os “brasileiros”), pela manutenção de sua cultura e de sua fé.

70 Depoimento de membro do clero da Igreja Apostólica Armênia da cidade de São Paulo, em entrevista concedida ao autor em 8/2/2010.

No final desse trecho do depoimento, AO retoma o fato de o coro ser um elemento importante na metáfora da Divina Liturgia, como fator de manutenção cultural promovido de forma coletiva pela comunidade:

E para um armênio, para cada armênio, é um motivo de orgulho manter essa tradição que até hoje a nossa comunidade... Apesar que não entendem nada em armênio, eles exigem para nós manter essa tradição sempre, para manter a alma.72

Mesmo que os fiéis não entendam o armênio clássico, eles ainda exigem a tradição para manter a alma, ou seja, muitos fiéis compartilham com o membro do clero a manutenção dessa fé e identidade, mesmo frente à contingência de não falarem mais armênio.

A contingência impera sobre o Rito e causa situações problemáticas para muitas Igrejas. Entre as várias Igrejas Orientais na cidade há a Igreja Russa Católica. Como já mencionado, essa Igreja é a menor de todas as encontradas na cidade e não possui um pároco próprio, pois o último faleceu em 2004. Outras Igrejas Orientais auxiliam a Igreja Russa Católica, no entanto, RC lamenta:

A única orientação que se tinha era do padre na missa, e o padre que morreu, padre João, ele, com três palavrinhas, o sermão dele, a Homilia não ia mais que dez minutos. E ele com aquela vozinha ele tinha dois ou três pontos que ele insistia, e que formava as pessoas. O que não acontece se a cultura não é a russa.73

72 Depoimento de membro do clero da Igreja Apostólica Armênia da cidade de São Paulo, em entrevista concedida ao autor em 8/2/2010.

Se a cultura não for russa, dificilmente o poder dessa fé católica oriental chagará aos fiéis em plenitude. RC fala de como a simplicidade do falecido padre João, aliada a essa

cultura russa, formava as pessoas.

No entanto, recentemente, a Igreja Russa Católica conseguiu o auxílio da Igreja Ortodoxa Ucraniana, e os membros do clero desta passaram a ajudar na celebração da Divina Liturgia naquela. UO comenta:

[...] foi essa a única oportunidade em que a gente esteve lá, mas fui muito bem-recebido, gostaram muito da minha celebração, minha não, não é o padre que celebra, é o padre juntamente com sua comunidade, mas fizemos uma celebração assim, como disseram algumas senhoras, que há tempos não tinha uma celebração realmente eslava, no Rito como deve ser. 74

UO reitera o fato de que a celebração é realizada em conjunto com os fiéis, indicando o papel da Divina Liturgia em unir a comunidade, os dois lados do Iconostasis na Igreja.

UO também relembra o comentário que algumas senhoras fizeram a respeito da celebração realizada pelo pároco ortodoxo ucraniano na Igreja Russa Católica. Elas sugerem de forma saudosista que há muito tempo não havia uma celebração realmente eslava. Como RC já havia notado, a relação entre fé cristã e cultura russa havia se perdido com a morte do pároco de sua Igreja. Com a chegada do clero ucraniano ortodoxo, que possui também um Rito Bizantino-Eslavônico75, essa relação pôde ser retomada, e a comunidade teve um Rito

74 Depoimento de membro do clero da Igreja Ortodoxa Ucraniana do município de São Caetano do Sul, em entrevista concedida ao autor em 18/4/2010.

75 O Rito Bizantino-Eslavônico é a base de todos os Ritos das Igrejas Orientais eslavas. Esse Rito, de certa forma, une essas Igrejas numa só tradição. A elaboração desse Rito deve-se aos esforços das missões de São Cirilo e São Metódio, sacerdotes gregos que, no século IX, evangelizaram os tchecos, macedônicos e búlgaros. Para facilitar o processo de evangelização, Cirilo e Metódio desenvolveram o alfabeto cirílico, adaptando o

como deve ser. Os fiéis russos católicos puderam, de certa maneira, reestruturar a relação

entre a fé e identidade cultural.

O poder da contingência obriga os membros do clero a reelaborar os Ritos. As Igrejas Orientais paulistanas não são entidades sem história, elas estão inseridas numa trama de relações e vivências em transformação constante. Assim, é natural que o Rito, elemento necessário para a preservação da comunidade, que promove a mimese de uma memória coletiva na metrópole, passe por modificações devido à sua situação paulistana.

Um elemento de reelaboração do Rito é o uso do português, a língua da contingência, na Divina Liturgia: “As celebrações vão ter que ser só em português, agora a gente ainda faz meio a meio, um pouco ucraniano um pouco português [...].”76 Esse aspecto pode ser percebido em todos os depoimentos dos membros do clero: “Os ofícios são celebrados em português [...]”77. Isso aponta para o futuro desses grupos: “E aqui, por exemplo, no Cambuci, tem uma comunidade, vamos dizer, de língua portuguesa, Igreja Ortodoxa Grega de língua portuguesa.”78

Os membros do clero pensam o uso da língua portuguesa na Divina Liturgia como o elemento que reuniria a comunidade nessa nova, mas necessária, maneira de mimetizar os antigos tempos. A mimese na metrópole ainda será realizada, cultura e fé armênia, russa, ucraniana, grega etc. ainda serão relembradas. No entanto, isso será feito com o uso do português, unindo necessidade e contingência, num meio-termo preciso.

como o caso de russos e ucranianos. WARE, Timoty. The Orthodox Church. Londres: Penguim Books, 1997. p.73-74.

76 Depoimento de membro do clero da Igreja Ortodoxa Ucraniana do município de São Caetano do Sul, em entrevista concedida ao autor em 18/4/2010.

77 Depoimento de membro da Igreja Ortodoxa Russa no Exílio da cidade de São Paulo, em entrevista concedida ao autor em 24/2/2010.

78 Depoimento de membro do clero da Igreja Ortodoxa Grega da cidade de São Paulo, em entrevista concedida ao autor em 17/8/2011.

Além da mimese no Ritual, essas Igrejas compartilham outra função: tentar reproduzir a relação entre elas. Essas comunidades são marcadas pela sua fé cristã oriental, um aspecto em comum entre elas. Assim sendo, o vínculo entre elas deve ser destacado. Em seus locais de origem, essas comunidades e Igrejas mantêm relações com maior ou menor grau de cooperação. Na diáspora paulistana elas tentariam reproduzir essas relações como forma de mimese.