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PARTE I – De igreja de Santa Maria da Praça a Catedral

4. A Sé entre os finais de Quinhentos e a primeira metade de Seiscentos

4.4. Outras intervenções

As notícias de arquivo acusam o revestimento de capelas laterais com azulejos (com o suporte financeiro dos seus administradores e de confrarias) no período compreendido entre o dia de São João Baptista de 1629 e o mesmo dia do ano seguinte, a saber, as capelas de Gil Eanes Pereira (actual Capela de São José) (fig. 50), das Chagas, de São Crispim (actual Capela de Nossa Senhora da Conceição) (fig. 78) e de São Nicolau (actual Capela das Almas) (fig. 63).183 A do Santíssimo Sacramento, como já verificámos, foi forrada com um silhar de azulejos em 1619 (fig. 119), com o patrocínio da sua padroeira. Em data incerta, mas seguramente neste tempo, foram também revestidas com peças de cerâmica as Capelas de Santo António (fig. 95), de Nossa Senhora da Soledade (fig. 126), de Nossa Senhora das Candeias (fig. 132) e o baptistério (fig. 43). É admissível que os restantes altares laterais tenham sido igualmente decorados com azulejaria, para manterem a correspondência decorativa com os outros altares.

As paredes das naves laterais receberam também um silhar de azulejos, que, na actualidade, ainda se mantém em parte. Foi colocado no tempo de D. António de Matos de Noronha, segundo uns autores, ou de D. Sebastião de Matos de Noronha, segundo outros.184 Dissemos que se mantém em parte, porque, na verdade, ele era mais desenvolvido, tendo sido reduzido para metade da sua altura por diligência de D. Baltazar de Faria Vilas Boas, no século XVIII.185

Quanto à retabulística de Quinhentos e do século XVII, nada resta nas capelas laterais também em virtude das transformações barrocas. Sabe-se, todavia, através da visitação de 1578, que o bispo de então ordenou ao administrador da Capela de Santo António, Gonçalo Fernandes, que mandasse pintar o retábulo “ao pintor que nos agrade e com as figuras que nós mandarmos”.186 Em 1609, a capela colateral da banda do Evangelho, dedicada a Nossa Senhora das Candeias, já ostentava um retábulo.187 Segundo um testamento de 27 de Maio de 1639, Diogo Roiz Aires, que entretanto viria a falecer em 30 de Maio desse ano, quis que lhe fosse concedida para sepultura dos seus restos mortais a Capela de São Sebastião da Sé (não identificada), e caso isso viesse a

183 Cfr. ibidem, pp. 253-254 184

Cfr. ibidem, pp. 254-255.

185 Cfr. ANTT, Memórias paroquiais, Sé, Elvas, 1758, vol. 13, n.º (E) 14, p. 75.

186 Cfr. Artur Goulart de Melo BORGES, Igreja de Nossa Senhora da Assunção de Elvas (antiga Sé), op.

cit., p. 6.

acontecer dotaria a dita capela ”… competentemente assi de ratabulo, como de tudo o mais que fôr necessario para seu ornato e uso…”188 A 20 de Outubro de 1606, o ensamblador Manuel Nunes de Sousa recebeu 10.000 réis como pagamento inicial para a execução do retábulo da Capela de Nossa Senhora da Soledade (capela colateral da banda da Epístola).189 Porém, informações recentes de arquivo dizem-nos que a 24 de Maio de 1611 os mordomos da Confraria de Nossa Senhora da Soledade contrataram o escultor Belchior Nogueira, morador em Vila Viçosa, com a finalidade de este fazer um retábulo para a capela da respectiva confraria “…em que estar a imagem de Nosa Senhora da Soledad sita na Sancta Se desta cidade de Elvas…”,190 o qual devia seguir na “forma e cor” o retábulo da Capela de Jesus da igreja dos frades dominicanos dessa cidade (possivelmente executado pelo mesmo artista). O escultor obrigava-se a executar a peça

“… com as mulduras e mais obra toda em perporsão com […] comforme a obra digo

esculturas o quall retabolo sera todo de[…]ado e tomara toda a execução no dito Retabolo hum alvano com hũa enes no meio do painel grande e no banquo fara hũa porta com hum emcazamento pera por o sancto sudário…”191

Além disso, comprometia-se “…a fazer hum Cristo a Culuna de altura de seis palmos pera a prosição e o dara feito a tenpo que se posa encarnar pera ir este ano que vem na prosição…”192

Pelo retábulo - que devia estar pronto até ao São João de 1612 - e pela figura de Cristo, o escultor recebia 100.000 reais. Vale a pena dizer que o já nosso conhecido pintor João de Moura, responsável pela ornamentação da capela-mor da Sé em parceria com José de Escovar, se apresenta como uma das testemunhas do acto notarial, sendo nesta ocasião dado como morador em Elvas: estaria ainda a desempenhar algum trabalho na Sé?

188

Cfr. Eurico GAMA, À Sombra do Aqueduto, Roteiro Antigo de Elvas, Estudos Elvenses (III série), Elvas, 1972, p. 16.

189 Cfr. Artur Goulart de Melo BORGES, Igreja de Nossa Senhora da Assunção de Elvas (antiga Sé), op.

cit., p. 24.

190 ADPTG, Cartório Notarial de Elvas (1.º Of.º), Livro 8 de Notas de Sebastião Rodrigues, CNELV

06/001/0008, fl. 28. Documento inédito facultado pelo Prof. Dr. Vítor Serrão, a quem agradecemos a generosidade.

191 Ibidem, fl. 28-28v. 192

Por fim, o douramento do retábulo coube, em 1615, a André da Costa (que antes dourara o relógio da Catedral), ano em que este e a sua irmã Leonor entraram na irmandade “…sem darem a esmola costumada, em virtude do trabalho dele «no doirar do retabolo e doirar huma cruz para o altar».”193

A mando do bispo D. Sebastião de Matos de Noronha,194 foi efectuada nos anos 30 a ornamentação de brutesco das abóbadas das naves da Sé pelos pintores Lourenço Eanes e Mateus Carvalho (ambos moradores em Elvas) (figs 29-31), conforme atesta um pagamento lançado no Livro de receitas e despesas da Fábrica da Sé entre o dia de São João de 1633 e o mesmo dia de 1634.195 Como já foi referido, esta obra foi inicialmente outorgada a Domingos Vieira Serrão, em 1632, data em que o conhecido pintor tomarense se encontrava em Elvas, mas que a não terminou ou sequer iniciou por ter falecido pouco tempo depois da assinatura do contrato com o bispo. Por deliberação de D. Baltazar Vilas Boas, as pinturas foram cobertas no século seguinte196 (fig. 190) e só vieram a conhecer novamente a luz do dia nos anos 50 do século XX, na sequência dos restauros levados a efeito pela então DGEMN.197

Dos anos 30 de Seiscentos data, de igual modo, a varanda-tribuna de pedraria lançada sobre a galilé e cujo acesso se faz pelo coro alto, através de dois vãos

193 Artur Goulart de Melo BORGES, “Igreja de Nossa Senhora da Assunção de Elvas (antiga Sé)”, op.

cit., p. 24.

194 D. Sebastião de Matos de Noronha, quinto epíscope elvense, nasceu em Madrid em 1586 e em 1518

foi Inquisidor de Coimbra. A 14 de Julho de 1625, foi nomeado bispo de Elvas, após D. Lourenço de Távora ter resignado ao cargo, por motivo de doença. Foi consagrado a 7 de Junho de 1626 na igreja de São Martinho de Madrid, entrando em Elvas a 7 de Novembro seguinte. Em 1635, passou para a arquidiocese de Braga, vindo a falecer na Torre de São Julião da Barra, em 1641 ou 1642, depois de ter sido detido sob a acusação de ter movido uma conspiração contra o monarca D. João IV. (Cfr. António Gonçalves de NOVAIS, op. cit., fls. 15-16; “Noronha (D. Sebastião de Matos de)”, in Grande

Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. 18, Lisboa-Rio de Janeiro, Editorial Enciclopédia, s.d., pp.

898-899). Um manuscrito do século XVIII, redigido com base nos apontamentos do cónego elvense Aires Varela, contemporâneo do bispo, diz o seguinte sobre o prelado: “Acrecetou algumas capellas na sua Sé,

que não tinha. E toda a Igreja de azulejos, e tecto dourado, e o pavimento lageado, e mudou o orgão para o coro de cima aperfeiçoando-o. Fez muitas peças de prata, e ornamentos mui custosos. Depois ornou a Igreja, e freguesia do Salvador de caliçes cruses, e o mais do culto divino, e orgãos. E porque se entrava na Igreja deçendo por treze, ou quatorze degraos de graos, rebaixou a rua, e adro. E o mesmo fes na Igreja de S. Pedro. E assim ornou todas as freguesias de ornamentos assim de prata, como de seda.” (BNP, Reservados, Notiçias da Cidade de Elvas tiradas dos papeis, que escreveu pellos annos de 1654 O Doutor Ayres Varella, Conigo Magistral da mesma Cidade, que intitula theatro historico da fundação e antiguidade de Elvas etc., op. cit., p. 61).

195

Cfr. Mário Henriques CABEÇAS, “Obras e Remodelações na Sé Catedral de Elvas de 1599 a 1638”,

op. cit., p. 260.

196 Cfr. ANTT, Memórias paroquiais, Sé, Elvas, 1758, op. cit., p. 75. 197

Cfr. Mário Henriques CABEÇAS, “Obras e Remodelações na Sé Catedral de Elvas de 1599 a 1638”,

encimados por frontões triangulares interrompidos (fig. 8). Foi mandada executar pelo cabido em sede vacante entre o São João de 1637 e o São João de 1638.198

Luís Keil declara, fazendo uma citação mas sem indicar a fonte, que tal estrutura fora acrescentada ao edifício para que o cabido daí pudesse “…«presenciar as touradas e jogos na praça fronteira»”.199

Já noutra ocasião discordamos deste autor.200 É um facto de que na praça se realizavam touradas e outros divertimentos - ela tinha, aliás, sido aberta, entre outras razões, para esse fim. Mas a dignidade própria de uma Sé não se compadecia com arranjos dessa natureza, tendo em vista a assistência dos cónegos a touradas e a outro tipo de distracções.

Para um melhor entendimento do que dissemos é de lembrar que, na segunda metade do século XVI, houve várias tentativas da Santa Sé para impedir a prática do toureio, nomeadamente de Pio V, e que só por mediação de Filipe II de Espanha isso não veio a ocorrer (tal era a força da tradição na Península Ibérica), recomendando-se, todavia, ao clero que se abstivesse de assistir a esses eventos.201 As Constituições do Bispado de Elvas, impressas em 1635, pouco tempo antes da construção da varanda, vincavam de modo claro que nenhum clérigo “…de qualquer estado ou condição que seja…” entrasse em justas, torneios, jogos de canas, etc., nem andasse “…no corro aos touros, nem os mande correr, nem seja nisso participante, dando ajuda para se cõprarem, trazerem, ou correrem…”202

Acresce que, em 1579, o primeiro bispo de Elvas fizera um requerimento ao rei, rogando que na cidade e em outras localidades do bispado fosse suprimida a corrida de touros nos adros das igrejas, em virtude do incómodo que tal prática causava durante o desenrolar dos ofícios divinos, petição essa a que o monarca deu parecer favorável.203

Em suma, pelo exposto, tudo indica que a função da varanda-tribuna no alçado principal da Sé deverá ser encontrada, seguramente, em razões de ordem pastoral e litúrgica. Ela terá sido pensada e concretizada para servir de varanda das bênçãos aos fiéis aglomerados no exterior do edifício. Por outro lado, tanto o cabido como os

198

Cfr. ibidem, p. 261.

199 Luís KEIL, op. cit., p. 62.

200 Cfr. Mário Henriques CABEÇAS, “Obras e Remodelações na Sé Catedral de Elvas de 1599 a 1638”,

op. cit., pp. 261-262.

201 Cfr. “Tourada”, in Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. 32, Lisboa – Rio de Janeiro,

Editorial Enciclopédia, s.d., p. 337.

202 Primeiras Constitvções Sinodaes do Bispado d’Elvas, feitas e ordenadas pello Illustrissimo e

Reuer.mo Senhor Dom Sebastião de Matos de Noronha, Quinto Bispo d’Elvas e do Cons.º de sua Mag.de,Primeiras Constituções Sinodaes do Bispado D’Elvas, op. cit., fl. 70v.

prelados passariam a dispor de um lugar de onde pudessem presenciar os actos religiosos a acontecerem na praça. De facto, este tipo de estruturas com essa funcionalidade verifica-se em múltiplos edifícios religiosos, e nem é preciso recordar São Pedro do Vaticano ou a Basílica de Mafra. É certo, no entanto, que a varanda também servia para ocasiões mais profanas, a prova disso encontramo-la numa reunião de 2 de Setembro de 1760 em que a congregação capitular elvense deliberou

“…que nas festas publicas que se fizessem na praça desta cidade fossem admetidos na

varanda em que assiste o Reverendo Cabido os Reverendos quartenarios que nella tivessem lugar depois de todos os senhores capitulares acomodados e que dos senhores Reverendos quartenarios perferissem sempre os mais antigos e não havendo lugar para estes o não pertenderião em tempo algum, pois so lhe seria dado no cazo de o haver…”204

Ainda na primeira metade do século XVII, foi acrescentado ou concluído o campanário da Sé. Esta constatação deduz-se de um documento não datado mas que terá sido redigido pelo menos nas duas ou três primeiras décadas dessa centúria, em que o “Bispo, Cabido, e Clero da cidade d’Elvas” pedem ao monarca para que se

“…acabasse a torre dos sinos, que fiquo por allevantar a quantidade que demanda a

traça della o que affea e acanha muito o dito edificio por ficar sobre a porta principal, e na praça lugares em que se requere obra lustrosa, com o que fiqua a dita imperfeição muy notada de todos.”205

A conclusão da torre era um assunto premente para os elvenses, não só por razões funcionais e estéticas mas também porque configuraria o orgulho e a afirmação da ainda recente cidade episcopal:

“… hüa das principais do Reyno e tão populosa que em nobreza, riqueza, e edificios

poucas de Hespanha lhe fazem ventajem e mais frequentada dos Senhores Reys (excepta Lisboa) que todas as do Reyno como he notorio e de maior passagem de naturais e estrangeiros que há, ficando a vista dos Reynos de Castella defronte da cidade de Badajoz que tem hüa Igreja Cathedral muy riqua e authorizada….”206

204 ACP, Bispado de Elvas, Livro 10º dos Acordãos de 1742 e findou em 1767, fl. 168.

205 Cfr. Mário Henriques CABEÇAS, “Obras e Remodelações na Sé Catedral de Elvas de 1599 a 1638”,

op. cit., p. 264.