• Nenhum resultado encontrado

Outras visões sobre os transtornos globais do desenvolvimento: duas críticas ao conceito

2 OS PARADIGMAS DA EDUCAÇÃO ESPECIAL E OS TRANSTORNOS GLOBAIS DO

3.3 As investigações psicopatológicas quantitativas: o surgimento da categoria dos transtornos

3.3.4 Outras visões sobre os transtornos globais do desenvolvimento: duas críticas ao conceito

A abordagem de Dumas (2011) aos transtornos globais do desenvolvimento alinha-se à corrente de investigação de cunho neuropsicológico em torno do autismo salientada por outros autores e que faz referências ao cérebro humano como fonte dos distúrbios psíquicos ora apresentados, inclusive aqueles que dizem respeito ao desenvolvimento. Contudo, apesar de realizar uma leitura equivalente à destes autores, verifica-se em Dumas (2011) um posicionamento crítico que não se observa na produção dos outros, uma vez que eles apresentam a preocupação em fornecer dados descritivos sobre os transtornos globais do desenvolvimento e sobre as entidades clínicas que os compõem, a partir da contingência do conceito de espectro ou contínuo do autismo.

A primeira crítica estabelecida por Dumas (2011) refere-se ao reconhecimento de que a noção de transtornos invasivos do desenvolvimento e, portanto, de transtornos globais do desenvolvimento é vaga, pois, em sua avaliação, os limites diagnósticos estabelecidos entre cada entidade clínica “[...] são imprecisos” (DUMAS, 2011, p. 133).

Esta imprecisão, colocada a partir da definição do conceito, transfere-se para a ordem do diagnóstico e termina salientada pelos consultores técnicos da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação a respeito das dificuldades em diagnosticar e manejar, por exemplo, com a inclusão de alunos com síndrome de Heller. Contudo, ao invés de voltar sua análise para a própria característica do conceito de transtorno mental a que se vincula a categoria, considerado instável até mesmo pelos autores dos códigos classificatórios (APA, 2002; OMS, 2003), o autor atribui esta imprecisão à ausência de consolidação nos critérios de validação científica para a síndrome de Asperger e o transtorno desintegrativo da infância / síndrome de Heller, bem como para a síndrome de Rett.

A nosso ver, colocando a questão sob estes termos, Dumas (2011) perde a oportunidade de aprofundá-la e de estabelecer uma conexão com outro questionamento

levantado por ele mesmo a respeito da categoria, o qual nós consideramos ser bastante pertinente. Trata-se da observação do autor em torno da existência de uma dicotomia e de uma fragmentação entre o que ele considera serem danos neurológicos e psicológicos presentes na conceituação da categoria dos transtornos globais do desenvolvimento. Em vista do que é definido por outros autores, não se trata aqui de negar uma dimensão em vista da outra. Entretanto, ao contrário dos demais, Dumas afirma que é necessário estabelecer maior integração entre estas noções – neurológica e psicológica, a bem de se compreender melhor a categoria. De fato, não se trata de negar as dificuldades e os quadros orgânicos que determinam algumas das patologias apresentadas nos transtornos globais do desenvolvimento. Algumas patologias têm, sim, uma sobredeterminação orgânica, tal como ocorre em alguns quadros de autismo ocasionado por síndrome do X-frágil ou nos quadros de síndrome de Heller ou de síndrome de Rett. Contudo, parece-nos que reservar de forma generalizada a toda a categoria apenas uma explicação orgânica de fato imprime ao campo certa inconsistência teórica, tal como é salientado pelo autor, além de promover uma visão restrita em relação a estes indivíduos. Que visão seria esta?

Em suas pontuações, Dumas (2011) remete-se à observação de que a maioria dos critérios utilizados pelo DSM-IV-TR para definir, por exemplo, o autismo, refere-se à criança como alguém incapaz, em atraso, ou em déficit em relação a alguma função essencial do desenvolvimento. Continuando suas observações, o autor pontua que, na definição dos transtornos invasivos do desenvolvimento, observada no DSM-IV-TR e, portanto, na definição dos transtornos globais do desenvolvimento, ainda há a predominância de uma eleição pelo que ele considera, juntamente com Bullinger (2001 apud DUMAS, 2011, p.133), ser “o lado negativo”. De acordo com o autor,

Sabe-se muito mais sobre o que as crianças com transtornos não conseguem do que sobre o que elas fazem realmente, seja da maneira daquelas sem dificuldade, seja de maneira diferente [...] Mesmo que aumentasse a confiabilidade de um diagnóstico, sua utilidade é menor quando é necessário compreender justamente a forma como essas crianças se comportam a fim de, com discernimento, vir em sua ajuda. (DUMAS, 2011, p.133)

A nosso ver, de todas as observações e críticas estabelecidas por Dumas (2011), a observação transcrita acima é a mais pontual e pertinente. Salienta um posicionamento um tanto quanto mais crítico em relação aos autores que se guiam por uma classificação descritiva dos transtornos, revelando uma realidade que permanece intocada na literatura produzida a partir das investigações psicopatológicas quantitativas, donde se conclui que, para ele, as dificuldades localizadas estão no cerne mesmo da definição conceitual da categoria.

Desta forma, acreditamos que a psicanalista Tendlarz (1997), mesmo que por uma vertente epistemológica oposta a Dumas e por outros caminhos, realiza questionamentos de valor bastante aproximado aos deste autor. Em sua obra, dedicada a discutir o sofrimento mental infantil tomando a gênese da psicose infantil e do autismo como modelos paradigmáticos, a autora afirma que a dificuldade atual em relação à abordagem destas duas dimensões psicopatológicas da clínica psiquiátrica infantil reside nas classificações feitas pelos códigos classificatórios, em que o

[...] imbricamento do autismo e as perturbações autísticas comportamentais vão no sentido de apagar a especificidade da estrutura psicótica, para homogeneizar o tratamento, na busca de comportamentos adaptativos eficazes para o desenvolvimento social. (TENDLARZ, 1997, p. 16)

O que fica destacado nas afirmativas feitas por Tendlarz (1997) a respeito dos transtornos globais do desenvolvimento é uma crítica sobre a prevalência que o autismo ganha na categoria dos transtornos globais do desenvolvimento. Esta prevalência tende a promover um rebaixamento das outras entidades clínicas aos mesmos parâmetros etiológicos, diagnósticos e de tratamento, tendendo ao apagamento da particularidade de cada entidade patológica e de cada sujeito identificado a partir da categoria. Tal posicionamento pode explicar melhor inclusive o que Dumas (2011) explicita como sendo a inconsistência conceitual da categoria psiquiátrica em questão, no que se refere aos critérios de validação epidemiológica de suas entidades clínicas. Explicado a partir de uma etiologia deficitária e sobreposto às outras entidades, o autismo infantil precoce ganha peso sobre todas as demais entidades clínicas, o que poderíamos chamar de uma teoria majoritária do déficit - orgânico, cognitivo, de linguagem e relacional.

Assim, a partir das indicações de Tendlarz (1997) e também de Pimenta (2003), bem como das indicações feitas a respeito do autismo ser entendido atualmente sob um índice deficitário, não nos parece precipitado indicar que, nas definições teóricas do conceito de transtornos globais do desenvolvimento, o que se busca é a homogeneização das particularidades de cada sujeito na classificação patológica. O que se subtrai nesta dimensão categórica, em qualquer uma das entidades clínicas que a compõem, é a dimensão subjetiva da criança com suas invenções e particularidades. Diante de um referencial deficitário a que o sujeito fica reduzido, o que de fato vemos emergir é o indivíduo reconhecido a partir de suas dificuldades e daquilo que lhe falta, assim como também nos indica Dumas (2011). A forma como estas crianças são ditas em diversos espaços sociais, dentre eles a escola, coloca-nos na direção de pensar que a entrada desse discurso classificatório homogeneizante na escola regular não se faz sem consequências para os processos de inclusão escolar.

Uma vez que, no capítulo anterior desta dissertação, já identificamos com Rahme (2010) que há uma tendência da política de Educação Inclusiva brasileira a responder à incompletude de sua proposta com um ideal homogeneizante da lógica classificatória das nomeações, isto nos faz interrogar quais são as repercussões, na escola regular, da utilização do conceito de transtornos globais do desenvolvimento. Para que sejam melhor compreendidos os processos de inclusão dos alunos com transtornos globais do desenvolvimento e as razões para as dificuldades encontradas pelos professores nesse percurso, abordaremos os efeitos deste conceito a partir de três estudos de casos, realizados em uma escola da rede municipal de ensino de Belo Horizonte. Para tanto, abordaremos as repercussões do conceito de transtornos globais do desenvolvimento no campo teórico da Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva, bem como nos processos de inclusão dos alunos identificados a partir da categoria em questão nesta dissertação.

4 REPERCUSSÕES DO CONCEITO DE TRANSTORNOS GLOBAIS DO