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Papel mediador dos lugares onde se cresce nas futuras formas de gestão e vivências

Capitulo IV Sexualidade e saúde sexual na voz da pessoa idosa

2. Influências na gestão e vivências da sexualidade pela pessoa idosa

2.3. Papel mediador dos lugares onde se cresce nas futuras formas de gestão e vivências

Ora, se o género resulta do “entendimento dado às definições culturais de masculinidade e

feminilidade como construções historicamente emergentes e estruturalmente dinâmicas, através das quais os indivíduos interpretam, comprometem e geram ativamente comportamentos e relações quotidianas” (Ribeiro, 2012, p. 234) e constitui uma das

componentes da sexualidade, a história individual e comunitária influenciam as formas como a pessoa idosa gerem e vivem a sua sexualidade.

Neste sentido, esta secção é composta pelas descrições dos/as idosos/as acerca dos contextos, família e relacionamentos com os pares e de como estes propiciaram/limitaram diálogos sobre sexualidade e a gestão e vivência da sexualidade, ao longo do seu crescimento, e a influência que tal poderá ter nas atuais experiências de sexualidade.

2.3.1. Papel de mediação da família nos conhecimentos, gestão e vivências de sexualidade durante o crescimento

Percebemos ao longo dos discursos que, nas mulheres idosas, os diálogos sobre sexualidade pareciam seguir uma orientação especifica: a manutenção da virgindade até ao casamento, tal é sugerido, por exemplo, pela descrição de M5.

(…) mais tarde a minha mãe comecei aa rapazes que me procuravam e ela “(…) não te deixes tocar olha porque é pecado” (…) portanto eu casei-me virgem (…) (M5, 77 anos)

Como para a mulher portuguesa, do estado novo, casar virgem era condição necessária,

“[p]erdendo a virgindade antes do casamento, a mulher perdia também as suas qualidades de esposa e mãe” (Aboim, 2013, p. 44), os diálogos sobre sexualidade para com as mulheres não

pretendiam informar, mas antes coagir as mulheres a viverem a sua sexualidade de acordo com os costumes da época, amedrontando-as com a ideia de pecado, de castigo.

Por seu lado, pela voz dos homens idosos, durante o seu crescimento, os diálogos sobre sexualidade com os progenitores, na generalidade não existiam.

[Pais] Eram muito preconceituosos. Havia muito preconceito na altura e ninguém falava nada (…) há cinquenta anos atrás era muito diferente daquilo que é hoje. Não tem nada haver, há cinquenta anos não se falava era proibido (H4, 65 anos)

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Tal divergência da preocupação com a sexualidade dos/as filhos/as, de acordo com o género destes, é reforçada, no discurso de H1, sobre a atitude diferenciada do progenitor.

(…) tínhamos um horário para entrar em casa à meia noite (…) Eramos livres a partir dos dezassete anos a vida sexual começou a desenvolver (…) As raparigas namoravam à porta de casa não iam para lado nenhum, não é? Os rapazes iam à vida deles e as raparigas se queriam ir para um cinema ou qualquer coisa à noite (…) depois das onze, ia com um irmão (…) era assim o meu falecido pai (…) Os rapazes iam a vida deles tinham dezassete dezoito anos e iam passear uns com os outros para cantar o fado para o monte, como a gente ia, e meter umas caveiras em cima dos muros a pegar com as moças quando vinham a passar (…) (H1, 80 anos)

O homem não carecia de advertências em relação à sua sexualidade, aliás era até socialmente expectável que fosse o agente principal do ato sexual “[t]al missão implicava um treino de

competências, prévio ao casamento” (Freire, 2013, p. 57).

Já a mulher não, deveria manter-se casta até ao casamento: o homem como nos diz Silva, (2001) devia vigiar a mulher se queria preservar a sua honra, especialmente no meio rural, o prestigio da família, principalmente a honra do patriarca e filhos, era colocada em perigo pela sexualidade e fertilidade da mulher, que a podiam encaminhar para comportamentos impróprios como as relações extraconjugais e por consequência filhos ilegítimos. Contudo, “os vigilantes” da virgindade feminina não eram em exclusivo os homens, nos meios pequenos, rurais, tornava-se difícil para a mulher contornar as normas sociais de castidade, pois não era apenas a figura masculina que vigiava a sexualidade feminina, namorar à porta como nos fala H1, permitia que também a vizinhança vigiasse o ato público de namoro na soleira da porta, de forma a que tudo corresse em conformidade com os bons costumes (Aboim, 2013).

Além de uma “proteção” dos costumes os discursos inibidores da sexualidade feminina, as advertências, que a mãe de M5 lhe faz, têm como propósito a proteção da própria honra, bem como a da família, posta em causa se uma filha engravidasse consequência de uma relação fora do matrimónio.

2.3.2. Repercussões das ações mediadoras da família na gestão e vivências da sexualidade

No discurso de duas mulheres podemos perceber a influência, dos diálogos familiares sobre sexualidade, nas formas de gestão e vivências desta última, a título de exemplo, M5, refere como a educação familiar condicionou o contacto íntimo com o companheiro.

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(…) o meu marido queixava-se que eu era um bocadinho fria, foi da maneira que fui habituada (M5, 77 anos)

(…) talvez da educação que eu levei, eu não preciso, o sexo nunca me fez falta (M5, 77 anos)

Em contrapartida, M1, que dá-nos a conhecer um retrato diferente no qual diálogos sobre sexualidade, na família parecem contribuir para uma maior disponibilidade em falar sobre a mesma na fase adulta.

(…) na minha casa falava-se pouco [sobre sexualidade], mas o meu pai era uma pessoa extremamente aberta nesse sentido e era capaz de falar com naturalidade de algumas coisas que na altura era raro falar, falar de raparigas de minissaia (…) de aspetos apelativos da sexualidade (…) sem preconceitos (…) porque (…) com dezoito anos já vivia no porto (…) quando regressou à aldeia de certa maneira já ia um bocadinho mais aberto (…) E se calhar isso também nos veio a facilitar a nós filhas esta tranquilidade em falar de sexo e em falar da vida, sexo faz parte da vida (…) Eu acho que tem realmente a ver com a família onde eu cresci. (M1, 61 anos)

A família surge como lugar permeável aos contextos sociais, perpetuando valores, nomeadamente os relativos à sexualidade, que transmitem às gerações mais jovens, da comunidade pertencente ou de outras, que os assimilam e que se refletem nas suas atitudes futuras sobre a sexualidade, podendo contribuir para a manutenção dos valores ou alteração dos mesmos: “[o] êxodo rural (…) a diluição das fronteiras rural-urbano, o impacto dos meios de

comunicação social e as mudanças de mentalidade permitiram também alterações nos comportamentos e modos relacionamento entre homens e mulheres” (Silva, 2001, p. 23), como

o pai de M1, que trouxe da cidade discursos integrantes da sexualidade na vida, que transmitiu aos/às filhos/as, induzindo alterações na aldeia, na figura dos/as filhos/as que identificam-se como ser sexual e agora dialogam sobre sexualidade, contribuindo para a quebra da dinâmica em “torno do binómio cultural honra vergonha que se tem refletido nos padrões de

socialização de rapazes e raparigas e implicado a domesticação feminina” (p. 13).

2.3.3. Os pares enquanto informadores sobre sexualidade

Como nos diz Aboim (2013), até à década de 60 conversas sobre sexualidade eram consideradas pecado, em particular para as mulheres, os homens tinham maior permissividade para conversarem entre si sobre sexualidade e iniciarem a experiência sexual, antes do casamento, sem recriminações morais, permitindo-lhes ter mais conhecimento sobre a sexualidade. Seria então expectável que os homens conversassem entre si sobre sexualidade, contrariamente às

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mulheres, contudo são as mulheres idosas que mais relatos têm de informação partilha com os pares, durante o crescimento, sobre sexualidade, assim como M3 e M4.

(…) eu cresci aa num ambiente da aldeia a onde nunca na vida se falava de sexualidade aquilo que se sabia eramos nós as miúdas que conversávamos umas com as outras (...) (M3, 65 anos)

(…) eu tinha muitas (…) vizinhas mais velhas do que eu (…) E com qualquer problema eu falava com essas vizinhas (…) elas explicavam-me e eu ia crescendo à maneira daquilo que as minhas colegas me explicavam (…) (M4, 64 anos)

Talvez as mulheres sentissem maior necessidade de conversarem entre si sobre sexualidade, pois para elas esta era envolta em secretismo e proibição, só experienciada após o casamento (recordemos os discursos da progenitora de M5), enquanto que os homens, como eram idealizados na sociedade portuguesa do estado novo, enquanto experientes no ato sexual, percecionassem que partilhar com os pares, dúvidas sobre sexualidade poderia desconstruir a imagem de virilidade que lhes era associada à partida.

Não deixa de ser curioso, o outro lugar a que M6 nos transporta, onde os diálogos sobre sexualidade também surgem: a escola, onde os agentes são as religiosas.

(…) na minha altura quando (…) estudei (…) há cinquenta anos, mas mesmo nós alunas do colégio, e falava-se (…) as superioras também falavam (…) eu era de uma família simples, mas (…) as minhas colegas que eram muito instruídas vinham de famílias com (…) cultura (…) eu acho que até lucrei com elas (…) (M6, 70 anos)

Parecendo desajustar-se com uma sociedade, a portuguesa, onde os primeiros projetos de lei sobre educação escolar têm lugar em 1982 (Aboim, 2013) e onde a instituição igreja fomentava a segregação “por sexos, na igreja (homens à frente, mulheres atrás), nas procissões” (Silva, 2001, p. 12), porém, o conteúdo dos diálogos não é revelado, não se sabe se não foram, igualmente, instrumento de proibição da sexualidade feminina.

2.3.4. Síntese

Sobre os discursos e ações familiares em torno da sexualidade, que acompanharam o crescimento das pessoas idosas entrevistadas, percebemos que visavam ao controlo da sexualidade feminina, orientados em torno do pecado do sexo não vinculado ao casamento e da vigilância da virgindade da jovem, enquanto que sobre a masculina nem se expressavam ou agiam, afinal o homem jovem devia ter liberdade para se tornar sexualmente experiente. Talvez por sentirem a sua sexualidade ou a dos seus pares controlada é que são as mulheres que se expressam sobre a influência que os discursos familiares, em torno da sexualidade tiveram,

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nas suas experiências da mesma, contrastando, de acordo com a sua natureza, entre o posterior desinteresse pela atividade sexual e a disponibilidade para o diálogo sobre a sexualidade. Também o papel dos pares, enquanto informadores sobre a sexualidade, é apenas descrito pela voz das mulheres, possivelmente e de novo consequência do secretismo e proibição que circundavam a sua sexualidade e por lhes ser vedada a experiência sexual extraconjugal. A família parecia assumir a função de reguladora da sexualidade, imprimindo-lhe as considerações da época, pelo intuito de conservar a própria honra: “[c]ondição imprescindível

para obter prestígio social é manter intacta a honra familiar, associada, por um lado, ao sentimento de vergonha e pudor sexuais da mulher e, por outro, à força física, à potência sexual, à coragem e, se necessário, à capacidade de retaliação masculina face ao ‘transgressor’ para recuperar a honra e a ‘dignidade’” (Silva, 2001, p. 3).

Porém, e por alteração de contextos, o êxodo rural, poderia ser também um agente transformador quer para a família quer para o próprio contexto.

2.4. Perspetivas dos/as idosos/as sobre as vivências da sexualidade pelas juventudes