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O PODER DE TRANSIGIR CONFERIDO À ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO

CAPÍTULO I – REFERENCIAL TEÓRICO

1.5. O PODER DE TRANSIGIR CONFERIDO À ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO

Em instância judicial, a Advocacia-Geral da União, conforme art. 131 da Constituição, é a instituição que representa a União, cabendo ao Advogado-Geral, nos termos do art. 4°, inciso VI da Lei Complementar n° 73, de 10 de fevereiro de 1993, “desistir, transigir, acordar e firmar compromisso nas ações de interesse da União, nos termos da legislação vigente.” A lei n° 9.469, de 10 de julho de 1997, com as alterações incluídas pela Lei n° 11.941, de 2009, regulamentou o inciso VI, autorizando a realização de transação em processos judiciais nos seguintes termos:

Art. 1 O Advogado-Geral da União, diretamente ou mediante delegação, e os dirigentes máximos das empresas públicas federais poderão autorizar a realização de acordos ou transações, em juízo, para terminar o litígio, nas causas de valor até R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais).

§ 1 Quando a causa envolver valores superiores ao limite fixado neste artigo, o acordo ou a transação, sob pena de nulidade, dependerá de prévia e expressa autorização do Advogado-Geral da União e do Ministro de Estado ou do titular da Secretaria da Presidência da República a cuja área de competência estiver afeto o assunto, ou ainda do Presidente da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, do Tribunal de Contas da União, de Tribunal ou Conselho, ou do Procurador-Geral da República, no caso de interesse dos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário, ou do Ministério Público da União, excluídas as empresas públicas federais não dependentes, que necessitarão apenas de prévia e expressa autorização de seu dirigente máximo.

Art. 1°-A. O Advogado-Geral da União poderá dispensar a inscrição de crédito, autorizar o não ajuizamento de ações e a não-interposição de recursos, assim como o requerimento de extinção das ações em curso ou de desistência dos respectivos recursos judiciais, para cobrança de créditos da União e das autarquias e fundações públicas federais, observados os critérios de custos de administração e cobrança Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica à Dívida Ativa da União e aos processos em que a União seja autora, ré, assistente ou opoente cuja representação judicial seja atribuída à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

A partir das competências atribuídas aos representantes da União nas normas específicas, fica clara a autorização legal da transação tributária no curso de processos judiciais.

48SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RESP. 514.351-PR-2003-Disponível em:

<http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=RESUMO&livre=(('RESP'.clap.+ou+'RE SP'.clas.)+e+%40num%3D'514351')+ou+('RESP'+adj+'514351'.suce.)&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=1>. Acesso em: 13 mar. 2011.

O Supremo Tribunal Federal há muito vem se pronunciando sobre formas alternativas de solução de controvérisas envolvendo entes de direito público. Existem casos clássicos citados por vários doutrinadores, entre eles a decisão da ministra Ellen Gracie no RE 253.885/MG, de 04 de junho de 2002, cujo Reclamante era o Município de Santa Rita do Sapucaí:

EMENTA: Poder Público. Transação. Validade. Em regra, os bens e o interesse público são indisponíveis, porque pertencem à coletividade. É, por isso, o Administrador, mero gestor da coisa pública, não tem disponibilidade sobre os interesses confiados à sua guarda e realização. Todavia, há casos em que o princípio da indisponibilidade do interesse público deve ser atenuado, mormente quando se tem em vista que a solução adotada pela Administração é a que melhor atenderá à ultimação deste interesse. Assim, tendo o acórdão recorrido concluído pela não onerosidade do acordo celebrado, decidir de forma diversa implicaria o reexame da matéria fático-probatória, o que é vedado nesta instância recursal (Súm. 279/STF). Recurso extraordinário não conhecido.

No relatório, explica a Ministra a questão aduzida em face daquele Tribunal:

Trata-se de recurso extraordinário, alíinea a, interposto pelo Município de Santa Rita do Sapucaí, contra acórdão do Tribunal estadual que manteve sentença homologatória de transação celebrada entre a municipalidade e as recorridas, servidoras públicas municipais.

Alega, o recorrente, ofensa ao art. 37 da Constituição, dentre outros dispositivos constitucionais não prequestionados. Aduz, para tanto, que o princípio da legalidade, aplicado à Administração, explicita a subordinação da atividade administrativa à lei, e, portanto, não havendo lei a autorizar a transação, tal não poderia ter sido celebrada, ainda mais porque o Poder Público é mero executor do interesse público, que é fixado em lei, não podendo dele dispor.

Prossegue então ao voto, o qual pela riqueza de conteúdo cabe aqui transcrever na íntegra:

Não assiste razão ao recorrente.

Em regra, os bens e o interesse são indisponíveis, porque pertencem à coletividade. È, por isso, o Administrador, mero gestor da coisa pública não tendo disponibilidade sobre interesses confiados à sua guarda e realização. Todavia, há casos em que o princípio da indisponibilidade do interesse público deve ser atenuado, mormente quando se tem em vista que a solução adotada pela Administração é a que melhor atenderá à ultimação deste interesse.

Neste sentido, esta Corte, ao julgar o Agravo de Instrumento n° 52.181, Rel. Min. Bilac Pinto, RTJ 68/382, considerou plenamente válida a possibilidade de transação, ao concluir pela legalidade do Juízo Arbitral, inclusive nas causas contra a Fazenda.

Por outro lado, o acórdão recorrido, para concluir pela validade da transação firmada entre a Municipalidade e as recorridas, considerou que, no caso, o

acordo serviu a uma mais rápida e efetiva consecução do interesse público, não havendo, assim, que se falar em ofensa ao art. 37 da Constituição federal. O referido aresto está assim fundamentado:

“(...) Quanto à necessidade de autorização legislativa para formulação da transação, expressa no pensamento, sempre respeitado, de Hely Lopes Meirelles – fls. 602-TJ – tornar-se-á ela necessária apenas quando e se

‘tais atos importarem renúncia de direitos, alienação de bens ou assunção de obrigações extraordinárias para o Município. ’

‘O acordo celebrado não é oneroso e nem gera gravame patrimonial ao município, sendo despicienda autorização legislativa para tanto. Não é o caso de comprometimento de bens, afetação de verbas, criação de cargo novo ou inusitado aumento de despesas. É mero ressarcimento decorrente de sua responsabilidade administrativa. É pagamento de salário, pois, com caráter alimentar, reconhecido como indevidamente retido. Fls. 648-TJ.

Merecem o necessário destaque, também, coadjuvando o posicionamento do MP de segundo grau, estas observações extraídas das contra-razões das autoras:

‘O acordo celebrado pelas partes, quase três (3) anos depois do início da ação, nada mais fez do que antecipar a justiça. (Grifo nosso).

Ao reconhecer a procedência da ação, o Município-requerido apenas tentou minimizar os desastrosos efeitos ocasionados às autoras, ora apeladas, pela perseguição política impingida pela Administração anterior.’

E, concluindo:

‘O acordo celebrado entre as autoras e o requerido evitou que o Município suportasse os ônus da sucumbência, o que lhe acarretaria verdadeiro prejuízo’,

E – acrescentamos nós – os acréscimos naturais que adviriam da atualização dos valores retidos.

Finalmente, a transação firmada entre as partes, tendo como motivo dominante e predominante o reconhecimento do pedido das autoras, envolve, em substância, a aplicação do velho princípio da autotutela estatal, tão bem analisado por Hely Lopes Meirelles, verbis: ‘A anulação dos atos administrativos pela própria administração constitui a forma normal de invalidação de atividade ilegítima do poder Público. É uma justiça interna, exercida pelas autoridades administrativas em defesa da instituição e legalidade de seus atos.

A jurisprudência citada pela Ministra Ellen Gracie refere-se ao famoso “caso Lage”, julgado em 1973, cujo relator foi o então Ministro Bilac Pinto em Agravo de Intrumento – AI 52.181/GB–Guanabara. Tratava-se de interessantíssima lide na qual os espólios de Henrique Lage e de Renaud Lage ajuizaram ação contra a União para receber indenização estabelecida por juízo arbitral no ano de 1955. Tratava-se de indenização em face da incorporação ao patrimônio nacional dos bens e direitos das empresas da chamada Organização Lage e do espólio Henrique Lage, conforme constou do Decreto-lei n°4.648, de 2 de setembro de 1942. O motivo alegado foi o estado de guerra e o interesse da defesa nacional que poderia ser atendido com as entidades componentes da Organização Lage. No entanto, verifica-se no

próprio acórdão que o fundamento legal elegido não guardava conexão com os fundamentos de fato, que foi a solicitação dos proprietários dos bens para evitar a falência da organização à época, questão apenas histórica que demonstra que o caso se iniciou com acordo entre as partes, governo e proprietários. Pois bem, considernado este duplo interesse entre Governo e proprietários da organização Lage, tentou-se fixar o valor da indenização dos bens que passaram ao patrimônio público sem êxito. Foi sugerida a instauração de um juízo arbitral para definir a indenização dos bens incorporados pela União. Tratou disso o Decreto-lei n° 9.521, de 27 de julho de 1946. Constou ainda que a sentença do juízo arbitral constituiria decisão final e definitiva, não passível de recurso, independente de homologação. Em 21 de janeiro de 1948, o juízo arbitral proferiu a sentença. Os trâmites legislativos para aprovação dos decretos relativos à questão seguiam até que o Governo, com base em parecer do Procurador-Geral da Fazenda, Dr. Haroldo Renato Ascoli que sustentava a inconstitucionalidade do Juízo Arbitral, enviou ao Congresso a Mensagem n° 463 de 24 de novembro de 1952, encerrando todos os trâmites relativos à questão entre a Oraganização Lage e a União. A questão foi parar no Judiciário.

Na decisão do Ministro Bilac Pinto ele analisa a possibilidade de haver solução de controvérisa em juízo arbitral, em lides que envolvam entes de direito público, decidindo pela constitucionalidade da decisão arbitral proferida no caso:

Juízo arbitral – Na tradição de nosso direito, o juízo arbitral sempre foi admitido e consagrado até mesmo nas causas contra a Fazenda. Pensar de modo contrário é restrigir a autonomia contratual do Estado, que, como toda pessoa sui juris pode prevenir o litígio pela via do pacto de compromisso, salvo nas relações em que age como Poder Público, por insuscetíveis de transação.

Natureza consensual do pacto de compromisso – O pacto de compromisso, sendo de natureza puramente consensual, não constitui foro privilegiado nem tribunal de exceção, ainda que regulado por lei específica.

Não tem, ao nosso ver e permissa vênia do autorizado mas isolado pronunciamento de Lúis Machado Guimarães, qualquer procedência a argüida inconstitucionalidade do Juízo Arbitral. Na Carta de 1937, então vigente ao tempo da expedição do increpado Decreto-lei n° 9.621, não existia qualquer disposição que vedasse, de modo expresso, ou mesmo implícito, a instituição de um juízo arbitral nos moldes estabelecidos pelo referido diploma e cuja decisão fosse irrecorrpivel e exeqüível independentemente do “execuatur” judicial, pela sua homologação. Igualmente, a Constituição vigente não contém qualquer disposição que vede a criação desse instituto, tradicional no direito brasileiro, desde as antigas ordenações. Já o Código Civil o consagra nos seus arts. 1027 e seguintes. Castro Nunes, em notável parecer junto às fls. 145 (doc. N° 12), refutou, cabalmente, todas as objeções levantadas contra a sua irrecusável constitucionalidade. Ao tempo do Império, assinala o parecer, muitas controvérsias levantaram-se contra a possibilidade de extensão do instituto, então disciplinado pelo Decreto 3.900, de 26.7.1867, às causas

da Fazenda Nacional, prevalecendo, no sentido afirmativo, os autorizados pronunciamentos, dentre outros, de LAFAYETE, VISCONDE DE OURO PRETO e do CONSELHEIRO SILVA COSTA. E acrescenta não ser possível a interdição do Juízo Arbitral, mesmo nas causas contra a Fazenda, o que importaria numa restrição à autonomia contratual do Estado que, como toda pessoa sui júris, pode prevenir o litígio pela via transacional, não se lhe podendo recusar esse direito, pelo menos na sua relação de natureza contratual privada, que só estas podem comportar solução pela via arbitral, dela excluídas aquelas em que o Estado age com Poder Público que não podem ser objeto de transação. A hipótese para a qual se instituiu o Juízo Arbitral pelo decreto-lei n° 9.521 entra na primeira categoria.

Em outro caso julgado em 17 de outubro de 1975, o mesmo Relator, Ministro Bilac Pinto, negou a possibilidade de transação em matéria de direito público, conforme ementa relativa ao RE 79.102/BA, por não haver previsão legal para conferir este poder ao Órgão Público envolvido na lide:

FUNCIONALISMO(BA). EQUIPARAÇÃO DE PROVENTOS. PROIBIÇÃO. DIREITO ANTERIORMENTE RECONHECIDO, ATRAVÉS DE TRANSAÇÃO REALIZADA EM MANDADO DE SEGURANCA, QUE NÃO SE ESTENDE AO NOVO PEDIDO DE SEGURANCA. LIMITES OBJETIVOS DA COISA JULGADA MATERIAL. - TRANSAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE, POR SE TRATAR DE RELAÇÃO DE DIREITO PÚBLICO. AUSÊNCIA DE NORMA VÁLIDA DE COMPETÊNCIA. - RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO CONHECIDO.

Sem razão evidentemente os impetrantes.

A coisa julgada emergente do acórdão homologatório da transação em que se escudam os impetrantes não tem, nem jamais poderá ter, dada a sua condição de ato de interpretação restritiva segundo a letra expressa da lei, a dilatada e perpétua eficácia que lhe querem atribuir.

Como ensina Paula Batista, a coisa julgada é restrita à parte dispositiva do julgamento e aos pontos aí decididos e fielmente compreendidos em relação aos seus motivos objetivos (Compêndio Teoria e Prática do Processo, 5ª edição, 1935, p.105, nota 1).

A transação celebrada entre representantes do Estado e funcionário público, acerca de direitos decorrentes da situação estatutária e legal deste último, não é regulada pelos princípios do direito civil, mas pelos do direito público.

Sua validade, extensão e eficácia somente poderão ser apreciadas à luz de regras fixadas pelo direito público.

Distinção fundamental entre o direito civil e o de direito público diz respeito ao conceito de capacidade do direito civil, a que corresponde o de competência do direito público ( M. Valine – “Précis de Droit Administratif” – Ed. Mont –Chrestien – 1969, pág. 329, nº 613)

[...]

Relativamente à competência do agente do Estado para realizar contratos de transação, é necessário que se estabeleça preliminarmente a distinção entre a atividade do direito público do Estado, strictu senso, e sua atividade de direito privado, em sentido amplo. Na espécie, o que importa caracterizar é a questão da competência do agente do Estado para transigir em matéria de direito público estrito.

Se o agente do Estado pudesse transigir, sem autorização legal, sobre vencimentos de funcionários, aposentadoria e seus proventos, contagem de tempo e serviço, férias, licenças, crédito de impostos ou taxas (C.T.n., art. 171 e parágrafo único), aplicação de sanção disciplinar a servidores civis e militares, concessão de naturalização, expulsão de estrangeiros e em várias outras matérias reguladas pelo direito público, estaria destruído o sistema legal em que se assenta a estrutura jurídica do Estado.

Para impedir esses e outros desvios dos representantes do Estado, é que o direito público formulou esta regra fundamental: “os agentes do Estado somente podem praticar atos para os quais estejam autorizados por norma legal válida”.

[...]

Massimo Sevoro Giannini informa que a jurisprudência italiana considera que o ente público pode chegar à transação somente em matéria patrimonial, não, porém, em matéria que afete a “potesta publica” do ente.

Como fundamento dessa tese, aquela jurisprudência coloca o princípio da irrenunciabilidade da “´potesta publica”. Conquanto esse autor não aceita a fundamentação acolhida pelos tribunais, chega à mesma conclusão quando afirma que se a administração age com autoridade , a transação não é possível. A “administração-autoridade” atua mediante atos e não mediante negócios (Massimo Severo Giannini – Diritto Administrativo, Ed. Ginffré – 1970 – 1º vol. Págs 783/4).

Em parecer formulado sobre hipótese análoga, o prof. José Frederico Marques põe em relevo que, salvo nos casos em que há permissão legal, os órgãos representativos do poder público não têm o direito ou o poder de transigir, renunciar ou entrar em composição com outros sujeitos, desde que se trate de relações de direito público, trazendo em apoio de sua afirmativa a lição dos administrativistas:

[...]

Conforme é dado verificar dos ensinamentos transcritos, o poder de renunciar, na área do Direito Público, mais do que limitado em lei, nesta deve estar pré-fixado, de modo expresso.

O poder de transigir ou de renunciar não se configura se a lei não o prevê. Não se cuida de proibição legal para que inexista o poder de renunciar ou transigir, e sim, de provisão legal para que haja o direito ou poder de renunciar ou transigir.

Ora, no caso em exame, norma legal alguma confere ao Governador do Estado da Bahia, o direito de transigir em juízo, para renunciar ao direito público subjetivo de obter ao Supremo Tribunal Federal, uma decisão definitiva sobre relação jurídica de natureza pública, fundada em preceitos da Constituição e de atos do Presidente da República no exercício dos poderes que lhe conferiu a Revolução, através dos diplomas que a institucionalizaram.

Não importa o que disponha o Código Civil, a respeito da “transação”, pois, segundo vem estatuído nesse código, art. 1ª, nele se regulam apenas “os direitos e obrigações de ordem privada”.

Assim sendo, as relações jurídico-públicas refogem da esfera normativa do Código Civil, salvo quando este a elas se refira de modo expresso e inequívoco, e assim mesmo se abranger situações jurídicas pertinentes à regulamentação legislativa de competência da União.

A lição do ilustre Minitro acima reproduzida, em que pese as mudanças no ordenamento júrído desde então, são pertinentes à discussão que ocorre, nos últimos tempos, relativa à transação no Direito Público.

1.6. PRINCÍPIOS DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO E A TRANSAÇÃO