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O cenário que destaca a descentralização política na redemocratização brasileira enfatiza o poder local. O poder local se constituía em uma discussão central sobre a construção de formas de relacionamento entre Estado e sociedade, pois tais reformas estavam atreladas ao processo democrático. Vieira (2011) menciona que o conceito relaciona espaços decisórios mais próximos dos cidadãos, como municípios, o distrito e o bairro. Dowbor entende que a evidenciação do poder local se torna central para os países subdesenvolvidos, pois mantém relação com o desenvolvimento social:

o poder local está no centro do conjunto de transformações que envolvem a descentralização, a desburocratização e a participação, bem como as chamadas novas "tecnologias urbanas". No caso dos países subdesenvolvidos, a questão se reveste de particular importância na medida em que o reforço do poder local permite, ainda que não assegure criar equilíbrios mais democráticos frente ao poder absurdamente centralizado das elites. (DOWBOR, 2008, p. 4).

O poder local, nesse quadro, é a gestão municipal e isso é registrado na Constituição de 1988. Assim, a cooperação e a descentralização da gestão entre as esferas do governo são enfatizadas. Farenzena (2014) destaca que está vinculado à estrutura federativa e não resulta de opções políticas de um governo.

A discussão do conceito de poder local se vincula a uma base conceitual que tem relação com a discussão conceitual de governo local. Gohn destaca que são conceitos distintos, mas que se inter-relacionam. A autora enfatiza que no caso brasileiro o conceito reforça as políticas regionais:

No Brasil, vários estudos destacaram como ele penetra no interior do governo local e interfere nas políticas públicas locais, incluindo o poder econômico, político e social das famílias, assim como o poder carismático de lideres locais e regionais. (GOHN, 2007, p. 34).

O contexto histórico também reforça a sedimentação do uso de um determinado conceito. Dombrowski (2008, p. 271) menciona que “o „local‟ na política brasileira foi tido como lócus dos desmandos autoritários de mandatários das elites locais ou regionais”. A imagem generalizada do poder local, nessa concepção, configura-se com a corrupção e a gestão pública a favor de ditames de elites locais.

Dombrowski (2008) relata que essa construção conceitual dissemina nas décadas de 1920 e 1930 críticas às instâncias locais e repercute na valorização do processo de centralização política:

É necessário observar que essa construção foi responsável por difundir entre nós uma aversão extremada às instâncias locais de governo. Explica- se: praticamente toda reflexão política e social do Brasil das décadas de 1920 e 1930 fazia – como não podia deixar de ser – uma crítica profunda e rigorosa da descentralização republicana que abandonara o país ao apetite das oligarquias locais e regionais de base rural. (DOMBROWSKI, 2008, p. 271).

A noção histórica, para Santin (2008, p.323), vincula poder local “ao coronelismo, patrimonialismo e personalismo no exercício do poder político”. Essa visão reforça uma reação a favor da centralização do poder, que, na visão de Dombrowski, traduzia-se na Revolução de 1930:

Na prática a centralização no bojo da Revolução de 1930 significava esvaziar as instâncias locais de poder, transferindo-o para o governo central, ao mesmo tempo em que se procurava “blindar” (para usar um neologismo da moda) o governo central contra as pressões locais ou localistas. (DOMBROWSKI, 2008, p. 271).

Esse quadro associa a gestão centralizada à modernidade, relacionada ao planejamento, à construção de uma identidade unificada de nação moderna. O poder local se associa ao atraso, conforme Dombrowski (2008, p.272). Esse autor menciona que “sediados no interior, aparecerão, definitivamente, ligados ao atraso do mundo rural e oligárquico: esse é o mundo dos desmandos autoritários, dos resíduos feudais, do clientelismo e do coronelismo”. Divergente dessa imagem, a gestão centralizada do Estado é enfatizada em favor do desenvolvimento social. A ideologia desenvolvimentista fortalecida nessa fase é apontada por Dombrowski (2008) como uma das mais sólidas e duradouras da história republicana.

A política ditatorial traz mudanças à concepção de gestão do Estado centralizada e a mudança reforça a descentralização e a democratização. Esse quadro promove uma reestruturação federativa que incide sobre a definição de papéis dos entes federados, a organização tributária, entre outras questões.

A dimensão social na discussão sobre poder local destacada por Gohn toma novo contorno nos anos de 1990 após a política ditatorial:

Nos anos 1990, o poder local passa a ser visto, de um lado, como sede político-administrativa do governo municipal, mais especificamente de suas sedes urbanas (as cidades), e de outro pelas novas formas de participação e organização popular, como dinamizador das mudanças sociais. (GOHN, 2007, p. 34).

Gohn enfatiza a participação social, expandindo o conceito em características distintas para além da questão apenas territorial. A representação do conceito de poder local e o contorno que toma nos anos de 1990, relaciona-se ao debate político sobre a democratização e, sobretudo, da participação cidadã nas decisões para o desenvolvimento.

As discussões de Dombrowski (2008), Dowbor (2008) e Gohn (2007), enfatizam o entendimento de que na construção histórica brasileira a concepção sobre poder local é polarizada a partir de visões distintas associadas ao modelo de gestão pública. A gestão de Estado centralizada caracteriza historicamente o poder local associado a políticas regionais elitistas. Por outro lado, a perspectiva que se atribui ao poder local na visão contemporânea é de espaços de participação social que possam intervir nas decisões públicas. Sobre esse aspecto, Dowbor (2008, p. 6) menciona que “Estes processos participativos que constroem gradualmente uma âncora de bom senso no conjunto dos processos políticos, a partir da base da sociedade, estão no centro do que aqui chamamos de poder local”. A citação do autor evidencia a proximidade do poder local e participação popular.

Dowbor reforça a importância da participação relacionada ao poder local como fortalecimento da democracia, mas enfatiza a limitação desse processo quando destaca que “o poder local é um instrumento de gestão poderoso, mas insuficiente” (2008, p.5). Para o autor, formou-se em torno dessa discussão uma visão simplificadora de solução universal. A importância do poder local e da participação não são suficientes para garantir o desenvolvimento social. Porém Dowbor menciona que o poder local e a participação estão “abrindo um espaço político profundamente renovador na nossa concepção de democracia” (2008, p. 8). Nesse contexto, a democracia representativa promove a transição para uma democracia participativa.

O poder local relaciona-se à dimensão da participação e também da autonomia. A ideia descentralizadora apresenta objetivos que envolvem atribuições de papeis das esferas públicas e organização tributária:

Consequentemente, o processo de descentralização política se fez então acompanhar de um outro arranjo tributário e fiscal, consolidando assim o processo de descentralização fiscal, iniciado já na década de 1970 e, finalmente, normatizado pela CF/88, que regulamenta a oferta de recursos

fiscais e as competências tributárias específicas no âmbito estadual e municipal. (FARIA, 2006, p. 69).

Por um lado, a evidência da gestão municipal está correlacionada à democratização, mas, por outro, apresenta-se limitada em relação ao que se entende por autonomia. Faria (2006, p. 70) menciona que “muitos municípios brasileiros não possuem ainda condições econômicas mínimas, necessitando, portanto, de ajuda financeira da União e dos Estados, o que reduz consequentemente a sua autonomia política”. Dessa maneira, há impasses na promoção da autonomia, em relação à manutenção de uma lógica centralizadora e de recursos locais limitados.

A dimensão do poder local é também caracterizada na educação, denominada como “a municipalização da educação”. No campo da legislação, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação registra que “ao município cabe à organização e a gestão dos anos iniciais de escolarização, sendo de sua responsabilidade, oferecer a educação infantil em creches e pré- escolas, e, com prioridade o ensino fundamental” (BRASIL, 1996). Vieira(2011) coloca que o estabelecimento do FUNDEF e, posteriormente, o FUNDEB, amplia a oferta de serviços do munícipio, mas, por outro lado, isso não se traduz em uma ampliação da autonomia.

Sobre a discussão da política de educação, Andrade (2011, p. 17) observa que há uma divisão de responsabilidades que evidencia a gestão municipal, mas que “centralização do poder decisório no nível federal, forja a divisão técnica e política”. Há, nesse sentido, que se compreender a gestão local inserida historicamente em uma visão política de gestão centralizada pela União e que, para a construção de uma política de descentralização, necessita-se de avanços políticos e técnicos que viabilizem a autonomia local. Nesse quadro, as articulações nacionais e internacionais fazem parte da agenda política local. Sobre a discussão Faria menciona:

Porém merece cuidado o excessivo elogio localista isolado, pois não se pode minimizar a necessidade das conexões com os contextos internacional e nacional, sem as quais torna-se impossível realmente “pensar o local” em suas múltiplas relações e representações. Desta forma, o estabelecimento de políticas públicas locais vai exigir meios concretos para sua viabilização, assim como mudanças nas antigas estruturas da gestão política clássica. (FARIA, 2006, p. 72).

A evidenciação da política local destaca a construção articulada e enfatiza o processo de autonomia, contudo a construção da autonomia necessita de meios que promovam avanços no que se refere a recursos para a viabilização de políticas públicas locais, apoio técnico para

o planejamento e participação social. Nesse sentido, um conjunto de ações é requerido para a construção da política local. Dowbor pensa a responsabilidade do poder local articulada e estratégica:

Com o volume de problemas que se apresenta, a administração municipal já não pode mais ser vista, portanto, como um nível de decisão que se limita à construção de praças, recolhimento de lixo e outras atividades de cosmética urbana. Trata-se de um eixo estratégico de transformação da forma como tomamos as decisões que concernem ao nosso desenvolvimento econômico e social, ao potencializarmos o papel articulador do conjunto das iniciativas e agentes econômicos e sociais que agem no território. (DOWBOR, 2008, p. 11).

A dimensão estratégica tratada pelo autor associa o poder local a uma visão propositiva de gestão municipal, compreendida nas formas de articulação para além do âmbito municipal, mas respondendo diretamente às necessidades da população local.

Nesse contexto, o poder local e o processo de descentralização política que trazem evidenciação à gestão municipal, é uma construção que se estabelece progressivamente e deve manter correspondência com a capacidade de viabilização orçamentária. Isso implica a participação social como instrumento de mudança política e econômica que consolida a gestão descentralizada voltada para o desenvolvimento local.