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O referencial teórico do qual parte esta pesquisa está baseado no conceito de sistema de produção dos bens simbólicos e na sua estrutura como fator determinante para o sistema de produção cultural. Neste contexto, se faz importante definir o bem simbólico como produtos culturais de dupla face: mercadoria e significação, com valor cultural e valor mercantil relativamente independentes (BOURDIEU, 1987). Neste contexto, são universos simbólicos o mito, a língua, a arte e a ciência.

Os bens simbólicos, na análise de Bourdieu (1989), são instrumentos de comunicação e conhecimento que geram integração social, mas que também cumprem função de legitimação de um discurso, que passa por uma luta simbólica em que os agentes especialistas estão em concorrência pelo monopólio da produção cultural legítima. As lutas simbólicas ocorrem dentro dos campos de produção cultural, que é o modelo pelo qual se analisa o jornalismo. Entende-se campo como um “espaço social estruturado, um campo de forças – há dominantes e dominados, há relações constantes, permanentes, de desigualdade, que se exercem no interior desse espaço – que é também um campo de lutas para transformar ou conservar esse campo de forças”. (BOURDIEU, 1997, p. 57).

O jornalismo, como um dos campos de produção simbólica, é um “microcosmos da luta simbólica entre as classes”, em que os agentes, “ao servirem os seus interesses na luta interna do campo de produção, [...] servem os interesses dos grupos exteriores ao campo de produção” (BOURDIEU, 1989, p. 12). Nesse sentido, entende-se as matérias jornalísticas como bens simbólicos feitos por produtores que reproduzem as posições no campo no próprio produto simbólico.

Para entender o campo de produção simbólica que é o jornalismo, faz-se necessário descrever como os campos de produção cultural funcionam. Bourdieu (2007) explica que o campo de bens simbólicos é libertado da nobreza e da Igreja através da constituição de um corpo numeroso e diferenciado de produtores e empresários de bens simbólicos e diversificação das instâncias de consagração. O desenvolvimento do sistema de produção de bens simbólicos acontece em paralelo à diversificação de públicos e produtos voltados para estes públicos. Como dito anteriormente, os bens simbólicos possuem valor mercantil e cultural e a autonomia do campo artístico se deu justamente pela negação à produção de arte como mercadoria, o que propiciou as condições para a criação de uma “teoria pura” da arte. Rompe-se, assim, com os principais clientes e a legitimidade agora vem dos pares. É através deste processo que ocorre a separação/diferenciação entre o campo de produção de bens simbólicos e os campos político, religioso e econômico.

O sistema de produção e circulação dos bens simbólicos, sob a ótica de Bourdieu (2007), é formado pelo campo de produção cultural, campo de reprodução e campo de consagração e conservação dos bens simbólicos. Estes campos representam a divisão do trabalho que envolvem o sistema de bens simbólicos. A estrutura do campo de produção cultural é formada por dois campos que se antagonizam e complementam: campo de produção erudita – em que produtores criam bens destinados a serem consumidos por outros produtores – e o campo da

indústria cultural – os bens são realizados para não produtores. Os agentes do campo de produção erudita concorrem pelo reconhecimento dos pares e reivindicam o monopólio da consagração cultural, ameaçada pelo “grande público”.

Apesar de parecerem completamente opostos, o campo de produção erudita e o campo da indústria cultural também guardam relações de complementaridade. Ao se diferenciar produtores mercenários dos autênticos, o campo de produção erudita forma um importante mecanismo de defesa das condições sociais externas, responsáveis inteiros pelos produtos da indústria cultural (BOURDIEU, 2007). Esta separação entre arte média da arte pela arte (dizer que legitimidade cultural não deve ser submetida ao mercado) expressa, ainda, que “negócio é negócio”. Sendo assim, há, primeiro, uma relação de diferenciação entre os dois campos:

Destarte, a oposição entre o legítimo e o ilegítimo – que se impõe no campo de bens simbólicos com a mesma necessidade arbitrária com que, em outros campos, impõe- se a distinção entre o sagrado e o profano –, recobre a oposição entre dois modos de produção: de um lado, o modo de produção característico de um campo de produção que fornece a si mesmo seu próprio mercado e que depende, para sua reprodução, de um sistema de ensino que opera ademais como instância de legitimação; do outro, o modo de produção característico de um campo de produção que se organiza em relação a uma demanda externa, social e culturalmente inferior. (BOURDIEU, 2007, p. 151).

Sendo assim, os dois campos coexistem no interior de um mesmo sistema, mas há a dominação de uma cultura pela outra em que a cultura média é definida pela cultura legítima: a primeira usa de procedimentos e temas consagrados de gerações anteriores para renovar suas técnicas e temática. A hierarquia observada entre os dois campos de produção cultural é sustentada por critérios arbitrários tidos como naturais e anteriores, como característico do próprio poder simbólico. Por essa razão, os princípios de hierarquia cultural são dificilmente contestados.

Para Bourdieu (2007), ainda é possível ver semelhanças entre os dois campos de produção, como a valorização da técnica e a existência de processos de divisão do trabalho, com a constituição de esferas separadas para o exercício das funções. Existem, ainda, bens e produtores que se encontram num espaço intermediário entre esses campos. As relações são tão complementares e hierárquicas a ponto de que a legitimidade da cultura média como arte está na referência ou similaridade com a cultura erudita.

Outro importante campo dentro do sistema de produção e circulação cultural é o campo de reprodução e consagração, formado por instâncias conservadoras dos bens simbólicos e que garantem a reprodução dos sistemas cognitivos necessários para a recepção do produto cultural. Para Bourdieu (2007), as relações entre o campo de produção e o campo de consagração é o outro princípio para se entender o sistema de circulação dos bens simbólicos. O campo de

conservação e consagração agem como defensores da cultura legítima contra a indústria cultural e por produtores do próprio campo de produção.

Dessa forma, a partir da visão de campo e olhando para a produção jornalística, é possível depreender que o jornalismo se encontra sob o julgamento de duas instâncias diferentes, quais sejam a cultural e a mercantil, em que a consagração dos seus agentes ou produtos pode ser feita pelo mercado ou pelos pares. Do ponto de vista do mercado, o que consagra um agente é o número de vendas, a audiência; enquanto o reconhecimento pelos pares é feito seguindo, em teoria, os princípios norteadores da profissão. Neste sentido, como aponta Marchetti (2008), ser responsável por um “furo”, ou seja, publicar primeiramente um acontecimento, é um dos principais fatores de notoriedade interna e é através desta corrida pela prioridade que se dão “as reputações profissionais, a autoridade, o capital de relações no meio jornalístico e frente às fontes dominantes” (MARCHETTI, 2008, p. 24, tradução nossa).

São exemplos dos sistemas de consagração: academias de arte e o sistema de ensino. Estas instituições formam um campo porque existe a concorrência pelo poder de consagrar (legitimar) as obras eruditas, constituindo-se em separado e, antes de exercer propriamente sua função, um campo de lutas. As instâncias de conservação cultural são responsáveis pela diferenciação social e provocam, assim, a conservação social das obras culturalmente legitimadas. As obras legítimas culturalmente são aquelas conservadas socialmente como legítimas ao longo do tempo.

Para Bourdieu (2007), o sistema de ensino, como agente de consagração da produção erudita, é caracterizado por peculiaridades. Assim, a escola demonstra lentidão e inércia estrutural para realizar sua função e pelo poder de comandar a prática no nível inconsciente (esquematiza o habitus5) e consciente (obediência a regras e modelos específicos). Existe uma relação ambivalente entre produtores e as autoridades pedagógicas (sendo que os primeiros estão atentos aos vereditos do segundo).

O campo de produção cultural é marcado, ainda, por um sistema de sanções a fim de constranger aqueles que não seguem as normas culturais impostas. Estas sanções podem ser materiais – dificuldades impostas aos desprovidos de capital cultural – ou simbólicas – exclusão do sistema. Existe, ainda, um reconhecimento implícito da legitimidade cultural nas formas de se consumir os produtos eruditos e na negação: os não eruditos se negam como tal e se distanciam das formas de consumo de produção erudita.

5 “O habitus, como indica a palavra, é um conhecimento adquirido e também um haver, umcapital [...], indica uma disposição incorporada, quase postural.” (BOURDIEU, 1989, p. 61).

Para Bourdieu (2007), os princípios de hierarquização entre cultura legítima e cultura média são arbitrários, mas tidos como naturais e anteriores, e, por isso, tão difíceis de terem as posições mudadas. Nesse sentido, eles expressam uma característica própria da constituição do poder simbólico:

O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a acção sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou económica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. Isso significa que o poder simbólico [...] se define numa relação determinada – e por meio desta – entre os que exercem o poder e os que lhe estão sujeitos, quer dizer, isto é, na própria estrutura do campo em que se produz e se reproduz a crença. (BOURDIEU, 1989, p. 14-15).

Outro importante conceito sobre campos que se aplica ao campo de produção cultural é o de tomadas de posição. Sobre as posições que os agentes tomam no campo da produção simbólica, é importante dizer que não se separa o campo de produção da constituição de corpo de produtores que agem no campo, de forma que a estrutura dos sistemas simbólicos depende das funções que elas cumprem aos seus “especialistas”. Sendo assim, as posições desses agentes de produção simbólica no campo são importantes para o entendimento das relações que envolvem o campo. Como prescreve Bourdieu (1989):

Os sistemas ideológicos que os especialistas produzem para a luta pelo monopólio da produção ideológica legítima – e por meio dessa luta – […] reproduzem sob forma irreconhecível, por intermédio da homologia entre o campo de produção ideológica e o campo das classes sociais, a estrutura do campo das classes sociais. (BOURDIEU, 1989, p. 12).

A posição de um agente no seu campo corresponde ao volume global de capitais, que representam tipos de poder sobre um campo em determinado momento, que os agentes ou grupos possuem (BOURDIEU, 1989). Dessa forma, a posição dos agentes no campo denota a força que este agente possui dentro do seu universo.de produção. Bourdieu (1989) explica que a posição do agente nos diferentes campos define sua posição social, sendo que a distribuição dos capitais econômico, cultural, social e simbólico – prestígio, reputação, fama – entre os agentes estabelecem a sua posição nos diferentes campos.

As relações entre os produtores com outros produtores e com a própria obra dependem da posição que ocupam no sistema de produção e circulação de bens simbólicos e na hierarquia dos graus de consagração cultural (BOURDIEU, 2007). A posição ocupada pelo produtor implica em características no seu modo de fazer e nos bens simbólicos por ele produzidos. No campo de produção cultural, todas as atitudes são tomadas de forma a se obter reconhecimento nos sistemas de legitimação. Assim, os meios de difusão, como a imprensa, dos bens simbólicos adquirem status de autoridades culturais secundárias, não tão sólidas quanto à legitimação dada

pelos pares do próprio campo. Assim, o autor explica, as ambições e vocações de um intelectual ou artista depende sobretudo da sua posição atual e potencial dentro do campo. A necessidade de se destacar e ser legitimado culturalmente depende das relações que se mantém com os outros agentes do campo, quanto mais próximo for do culturalmente legitimando, mais se vai desejar se destacar.

As tomadas de posição buscam “conquistar a legitimidade cultural, ou seja, o monopólio de produção, reprodução e manipulação dos bens simbólicos” (BOURDIEU, 2007, p. 169), caracterizando as atitudes dos agentes como culturais e políticas, visto que estão sempre em relação a outras posições. Nesse sentido, teorias, conceitos e métodos da ciência são atitudes políticas que visam influenciar no sentindo de manter ou mudar um sistema de dominação simbólica. Isto também se aplica ao campo da produção jornalística, em que se estabeleceram princípios que devem nortear toda a profissão, mas que nem sempre estiveram presentes no fazer jornalístico e chegaram para atender a interesses de imposição de legitimidade de uma forma de se fazer jornalismo.

Para Bourdieu (2007), o sistema de relações sociais é a estrutura que define os princípios de seleção que os produtores acionam de forma in ou semiconsciente. Estas seleções atuam em função de um sistema de interesses associados à posição que ocupam nas relações de força. O autor defende que, para se estudar um campo é importante se fazer a dupla construção que é a da estrutura de posições possíveis e a do sistema dos mecanismos de reprodução dessas posições. Assim, A análise de um sistema de produção de bens simbólicos deve ser submetida a uma análise sociológica que desvende o sistema de relações sociais de produção, circulação e consumo simbólicos.

Neste sentido, o presente trabalho observa o jornalismo sob a ótica de campo de produção cultural de Bourdieu. Sendo o jornalismo um microcosmo da luta simbólica entre classes e frações sociais com regras e sanções próprias, que influenciam outros campos de produção de bens simbólicos e são também definidas pela relação com poderes externos, e detentores de poder simbólico, ou seja, também é influenciado por outros campos. Na próxima seção, descreve-se como o campo de produção simbólica do jornalismo tem relação com outros campos, em maior ou menor grau de subordinação e autonomia e quais as regras responsáveis pela lógica interna do campo jornalístico.