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A expressão “regime jurídico-administrativo” se refere às peculiaridades que individualizam a atuação da administração pública quando comparada com a atuação dos particulares em geral.

Como já tivemos a oportunidade de afirmar, a expressão “regime jurídico-administrativo” tem sentido restrito, servindo para designar o conjunto de normas de direito público que peculiarizam o Direito Administrativo, estabelecendo prerrogativas que colocam a Administração Pública numa posição privilegiada nas suas relações com os particulares e também restrições que buscam evitar que ela se afaste da perseguição incessante da consecução do bem comum.

Assim, por presumivelmente atuar na busca da consecução de interesses coletivos que a Administração desfruta de vantagens não extensivas aos particulares (como o poder de desapropriar um imóvel), ela não pode, por óbvio, abrir mão desses fins públicos. Dito de outro modo, ao agente público não é lícito, sem lei que o autorize, transigir, negociar, renunciar, mitigar, ou seja, de qualquer forma dispor de interesses públicos, mesmo daqueles cujos equivalentes na seara privada seriam considerados em regra disponíveis (como o direito de cobrar um crédito).

É nesse contexto que se chega à afirmação de que a supremacia do interesse público justifica a concessão de prerrogativas, enquanto a indisponibilidade de tal interesse impõe a estipulação de restrições (sujeições) à atuação administrativa, sendo estes os princípios basilares (ou supraprincípios) cujo estudo é o ponto de partida para a perfeita compreensão do regime jurídico administrativo.

4.3.1. Interesse público primário e secundário

Antes de tratarmos dos princípios basilares do Regime Jurídico Administrativo, faz-se necessário esclarecer o que deve ser entendido por interesse público.

A busca da satisfação do interesse público é a própria razão de existir do Estado. A afirmativa, por demais simples, ganha ares de alta complexidade quando se tenta detalhar com precisão o que é o interesse público e como deve ser perseguido esse objetivo.

Poderíamos iniciar nossa análise tentando determinar que objetivos podem ser inseridos no conceito de “bem comum”, expressão que pode ser assumida, numa primeira noção, como sinônimo de “interesse público”. Todavia, não há uma definição única de “bem comum”, aplicável a todas as sociedades politicamente organizadas. Seguindo o princípio democrático, em cada Estado cabe ao seu povo, soberanamente, estabelecer os objetivos que o Estado deve perseguir, o que normalmente é feito por meio da representação popular reunida em Assembleia Nacional Constituinte. No Brasil, a definição pode ser extraída do art. 3.º da Constituição Federal. O dispositivo lista os objetivos do nosso Estado. Ora, se o objetivo de qualquer Estado é o bem comum de seu povo, ao relacionar os objetivos da República Federativa do Brasil, o povo por meio de seus representantes definiu os contornos de bem comum segundo a concepção brasileira.

Definidos os objetivos do Estado, surgem questionamentos sobre a estrutura estatal e social que será montada para atingi-los. Por exemplo, qual a melhor organização socioeconômica para a consecução do bem comum? A capitalista, a socialista ou a comunista? A resposta, obviamente, depende das convicções político-ideológicas dominantes em cada sociedade. Entretanto, o povo brasileiro decidiu pelo capitalismo, ao consagrar, no artigo inaugural da Carta Magna, o princípio da livre-iniciativa (CF, art. 1.º, IV). Enfim, no regime democrático é o povo quem detalha os fins estatais e os mecanismos de busca de tais desígnios.

Obviamente várias regras relativas à busca do bem comum (interesse público) são detalhadas em lei, inovando o ordenamento jurídico. Percebamos que, até este momento, o povo, no exercício da soberania popular por meio de seus representantes, mantém, ao menos na teoria, o controle do atuar estatal, por meio da edição de normas gerais (porque a todos destinadas) e abstratas (porque não versam sobre situações concretas). Todavia, para que as disposições constitucionais e legais não permaneçam como meras “cartas de intenções”, há a necessidade de uma estrutura administrativa que as concretizem mediante o exercício do poder de polícia, a realização de atividades de fomento e intervenção e a prestação de serviços públicos.

Essa atividade de concretização das decisões políticas e de governo é a função administrativa, incumbência da Administração Pública, cuja atuação, como vimos, deve estar integralmente voltada para a satisfação do interesse público. Não obstante, é consabido que todas as instituições, inclusive a Administração Pública, realizam atividades-fim e atividades-meio, sendo que estas são imprescindíveis para o desempenho daquelas, estando voltadas, mesmo que indiretamente para o cumprimento dos desígnios institucionais.

É nesse contexto que surge a classificação doutrinária segundo a qual o interesse público pode ser dividido em duas categorias: o interesse público primário e o interesse público secundário.

O interesse público primário é aquele relacionado à satisfação das necessidades coletivas (justiça, segurança, bem comum do grupo social etc.), perseguido pelo exercício das atividades-fim do Poder Público, enquanto o interesse público secundário corresponde ao interesse individual do próprio Estado, estando relacionado à manutenção das receitas públicas e à defesa do patrimônio público, operacionalizadas mediante exercício de atividades-meio do Poder Público.

O Estado – este ente abstrato cuja existência somente se justifica na busca do interesse público primário – é uma pessoa jurídica e, como tal, tem patrimônio próprio, pessoal funcionalmente a ele vinculado, enfim, possui toda uma estrutura designada de “aparelho estatal”.

Quando o Estado age defendendo o aparelho estatal em uma relação jurídica qualquer, ele se equipara, nesse aspecto, a um particular, que tem o natural impulso de defender o seu patrimônio. Ele está na realidade defendendo um interesse público secundário. Nessas hipóteses, a busca da consecução do bem comum não é feita de maneira direta e imediata, e sim indireta e mediata, uma vez que o aparelho estatal não é um fim em si mesmo, mas deve servir como instrumento para que se atinja o interesse público primário (bem comum).

Seguindo esse raciocínio, podemos afirmar que, ao prestar os serviços públicos de saúde, educação e segurança, ao abrir e conservar estradas, ao instituir e manter um sistema de assistência social, ao garantir a justiça, o Estado estará perseguindo interesses públicos primários, que constituem sua própria razão de ser; já ao defender a posse de um bem que lhe pertence estará na persecução de interesses públicos meramente secundários.

A diferença entre interesse público primário e interesse público secundário é tão marcante que alguns autores afirmam que somente o primeiro pode ser legitimamente denominado interesse público. Nessa linha, podemos transcrever as sempre esclarecedoras palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello:

Independentemente do fato de ser, por definição, encarregado dos interesses públicos, o Estado pode ter tanto quanto as demais pessoas, interesses que lhe são particulares, individuais, e que, tal como os interesses delas, concebidas em suas meras individualidades, se encarnam no Estado enquanto pessoa. Estes últimos não são interesses públicos, mas interesses individuais do Estado, similares, pois (sob o prisma extrajurídico), aos interesses de qualquer outro sujeito.3

4.4.

4.4.1.

Estado. Em outros termos, segundo a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, os denominados interesses públicos secundários (ou interesses secundários do Estado, como prefere o autor) não podem ser enquadrados como verdadeiros interesses públicos.

A lição anterior, apesar de bastante teórica, tem sido objeto de prova de concurso público. A título de exemplo, a ESAF, no certame para provimento de cargos de Procurador do Distrito Federal, com provas realizadas em 2007, considerou corre ta a seguinte assertiva: “o denominado interesse secundário do Estado, na lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, não se insere na categoria dos interesses públicos propriamente ditos”.

Vistos esses aspectos, passemos ao estudo mais detido dos princípios basilares ou supraprincípios do Direito Administrativo.

SUPRAPRINCÍPIOS DE DIREITO ADMINISTRATIVO