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SUPRAPRINCÍPIOS DE DIREITO ADMINISTRATIVO Princípio da supremacia do interesse público

O princípio da supremacia do interesse público (interesse público primário) sobre o interesse privado, também chamado de princípio da finalidade pública, é inerente a qualquer sociedade. Não obstante tal constatação, a Constituição Federal não fez menção expressa a esse princípio, embora possam ser encontradas diversas manifestações concretas dele no texto constitucional, a exemplo dos institutos da desapropriação e da requisição da propriedade particular (CF, art. 5.º, XXIV e XXV). Por isso, pode-se afirmar que o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular encontra-se implícito na Constituição Federal.

Conforme lição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, o princípio da supremacia do interesse público “está presente tanto no momento da elaboração da lei como no momento da sua execução em concreto pela Administração Pública. Ele inspira o legislador e vincula a autoridade administrativa em toda a sua atuação”.4

Em nome do princípio da supremacia do interesse público, o legislador pátrio previu diversos mecanismos de intervenção do Estado na propriedade e no domínio econômico, a exemplo da desapropriação para fins de necessidade ou utilidade pública ou interesse social, da requisição da propriedade no caso de iminente perigo público, do tombamento para resguardar o patrimônio histórico e cultural etc.

Além de inspirar o legislador, o princípio da supremacia do interesse público também vincula a autoridade pública no exercício da função administrativa, uma vez que as prerrogativas (poderes) conferidas à Administração não são manejáveis ao sabor dos interesses pessoais dos governantes, tampouco têm por objetivo propiciar que as autoridades públicas se destaquem perante o administrado, como se formassem uma casta. O poder é atribuído por ser necessário à consecução de finalidades públicas, consistindo, justamente por isso, num poder-dever a ser exercido, nos casos, na forma, e nos limites estabelecidos em lei. Eventuais atos administrativos que tenham sido praticados sem finalidade pública incorrerão em vício de desvio de poder ou desvio de finalidade, devendo ser anulados. É o que se passa, por exemplo, na hipótese de um ato de desapropriação de uma propriedade particular, realizado com o objetivo de vingança contra um inimigo da autoridade competente. Nesse caso, por tal ato não possuir finalidade pública, será tachado de ilegal, devendo ser invalidado.

Diante do exposto, podemos afirmar que a única razão de ser da Administração Pública é a necessidade da busca da consecução do bem comum da maneira politicamente definida pelo governo. A Administração é, portanto, o instrumental de que dispõe o governo para atingir o bem comum que, por princípio, se sobrepõe ao interesse privado.

Foi raciocinando dessa forma que o CESPE, na prova para estagiário da Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo, aplicada em 2013, considerou corre ta a seguinte assertiva: “Do princípio da supremacia do interesse público decorre o caráter instrumental da administração pública”.

Não obstante sua notória importância, a supremacia do interesse público sobre o interesse privado, justamente por ser um princípio, não desfruta de posição hierárquica privilegiada quando em conflito com os demais princípios. Por conseguinte, não se admite que aprioristicamente se assegure a prevalência do interesse defendido pela Administração Pública em detrimento dos particulares. Nesse contexto, há situações específicas em que o próprio ordenamento jurídico estabelece direitos e garantias fundamentais que protegem interesses individuais, inclusive em face da atuação do Estado.

A título de exemplo, não pode a administração tributária, na busca de informações sobre a real situação patrimonial de determinado particular, de forma a possibilitar a satisfação do crédito tributário, cujo recebimento é de interesse público, interceptar ligações telefônicas dos particulares. Nesse caso, o interesse particular de manter sigilo das suas comunicações telefônicas somente pode ser restringido em face de “ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal” (CF, art. 5.º, XII). Também digna de destaque é a vedação à utilização em processos, das provas obtidas por meios ilícitos (CF, art. 5.º, LVI), de modo que o importantíssimo interesse público na busca da verdade, inclusive pelo Estado em processos criminais, não pode se sobrepor sem qualquer critério ao devido processo legal.

Em suma, podemos concluir que a supremacia do interesse público sobre o interesse privado fundamenta a atribuição ao Estado de prerrogativas nas suas relações com os particulares, mas o exercício desses privilégios somente será legítimo se respeitados os direitos e as garantias individuais. Já nos casos em que a Administração atua segundo um regime de direito privado, ela se despe da maioria de suas prerrogativas estatais e praticamente se equipara a um particular, não podendo assumir que sua atuação busque o atendimento de interesses públicos primários, de modo a não ser legítima a invocação do supraprincípio ora estudado.

Foi seguindo essa linha de raciocínio que o CESPE, na prova para provimento de cargos de Analista Judiciário do Superior Tribunal Militar, aplicada em 2011, considerou incorre ta a seguinte proposição: “Em situações em que a administração participa da economia, na qualidade de Estado-empresário, explorando atividade econômica em um mercado concorrencial, manifesta-se a preponderância do princípio da supremacia do interesse público”.

a) b) c) d) e) f) g) h) 4.4.2.

As lições acerca do supraprincípio da supremacia do interesse público sobre o privado podem ser sintetizadas da seguinte forma:

PRINCÍPIO DA SUPREM ACIA DO INTERESSE PÚBLICO

Princípio implícito na Constituição Federal;

Chamado também de princípio da finalidade pública;

Consiste na primazia do interesse público primário (coletivo) sobre o interesse privado (individual); Inspira o legislador e vincula a autoridade administrativa em toda a sua atuação;

Dá origem a certas prerrogativas da administração pública; Dele decorre o caráter instrumental da administração pública;

Não se constitui em princípio absoluto, devendo conviver harmonicamente com os demais princípios constitucionais e com as garantias e direitos fundamentais;

Não se aplica às relações da Administração regidas pelo direito privado.

Princípio da indisponibilidade do interesse público

O supraprincípio da indisponibilidade do interesse público, juntamente com o supraprincípio da supremacia do interesse público, formam a base do regime jurídico-administrativo. De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello,5 todos os demais princípios de Direito Administrativo se constroem sobre um desses dois supraprincípios.

O princípio da indisponibilidade do interesse público também está implícito na Constituição Federal. Como a administração pública é mera gestora de bens e interesses públicos, que em última análise pertencem ao povo, estes não se encontram à livre disposição do administrador, devendo o agente público geri-los, curá-los, da forma que melhor atenda ao interesse da coletividade. Com efeito, a Administração não pode abrir mão da busca incessante da satisfação do interesse público primário (bem comum) nem da conservação do patrimônio público (interesse público secundário).

Em síntese comparativa, no âmbito do direito privado, a disponibilidade do interesse é a regra, podendo o particular, respeitadas algumas normas de ordem pública, como as referentes à sucessão, fazer o que bem entender com os seus bens e direitos. Por exemplo, se um particular- credor se comove com argumentos de um seu devedor e decide perdoar determinado débito (remissão), isso lhe é plenamente possível. De maneira diferente, tratando-se de direito público, a regra é a indisponibilidade, o que, na prática, impõe severas restrições (sujeições) à realização de transações e renúncias por parte da Administração Pública. Por exemplo, mesmo que tocada com argumentos de um sofrido devedor tributário, nenhuma autoridade administrativa poderá perdoar-lhe o débito.

Quanto a este último aspecto, faz-se necessária uma importante observação. Existem casos em que débitos tributários, multas eleitorais, débitos referentes a financiamentos concedidos por instituições públicas, enfim, diversos débitos que particulares têm perante o Poder Público são perdoados. Entretanto, tais situações não constituem exceções ao princípio sob análise, pois o perdão pode ser concedido mediante lei. A autoridade administrativa não edita lei, quem o faz é o povo, por meio dos seus representantes no parlamento. Ora, se em última análise o povo é o “dono” do patrimônio público, ele pode soberanamente abrir mão de parcela desse patrimônio. Para um melhor entendimento do que se está a afirmar, imaginemos o caso do particular que deve certa quantia financeira a uma determinada empresa (pessoa jurídica empresária). Se ele pede perdão do débito ao caixa da empresa, este não poderá conceder, mas se ele pede ao “dono” do poder de decisão, de acordo com os atos societários constitutivos (acionistas majoritários, diretores, sócios-gerentes etc.), o perdão pode ser concedido. Nessa atécnica analogia, o povo, de quem emana todo o poder, está na situação do “dono”, e se manifesta por meio da lei, e o agente público (auditor, fiscal, advogado público) está na situação do caixa da empresa, não podendo dispor de um crédito cuja titularidade não é sua.

De maneira mais precisa, podemos explicar a comparação anteriormente proposta relembrando que a atividade administrativa (estudada no âmbito do direito administrativo) é neutra e técnica, sendo exercida abaixo da lei, a ela estando vinculada, a ela devendo absoluta fidelidade. Já a atividade legislativa (estudada no âmbito do direito constitucional) é discricionária e política, sendo seu exercício manifestação de parcela da soberania popular. Em suma, quando afirmamos que o interesse público, do qual faz parte o patrimônio público, é indisponível, o fazemos dentro do contexto do direito administrativo, de forma que a indisponibilidade é imposta às autoridades administrativas, que administram patrimônio alheio, não podendo dele dispor. O raciocínio não é aplicável ao próprio destinatário da atuação administrativa (o povo) quando este se manifesta da maneira constitucionalmente prevista, ou seja, por meio daqueles que, ao menos na teoria, são seus legítimos representantes.

Registramos, a título de exemplo prático, que o art. 2.º da Lei 9.996/2000, que anistiou as infrações eleitorais cometidas nos anos de 1996 e 1998, foi vetado pelo Presidente da República, mas o Congresso Nacional rejeitou o veto. Posteriormente, a OAB propôs uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o dispositivo. O STF chegou a suspender cautelarmente a norma (ADI 2.306 – MC), mas no julgamento do mérito a considerou válida, de modo a manter intacta a “vontade do povo” de dispor do interesse público na punição de candidatos infratores (ADI 2.306).

Dentro do contexto do direito administrativo, como manifestação do princípio da indisponibilidade do interesse público, a Administração não pode alienar bens públicos enquanto estes estiverem destinados a uma finalidade pública específica (afetados a uma finalidade pública). Mesmo quando os bens públicos estiverem desafetados, a sua alienação não é livre, devendo respeitar as exigências legais, dentre as quais se destacam a necessidade de autorização legislativa e a realização de licitação.

Além disso, em razão da indisponibilidade do interesse público, a Administração Pública, ao contratar seus servidores ou celebrar contratos com terceiros, deverá proceder à escolha destes mediante a realização de concurso público e de licitação pública, respectivamente.

Digno de nota que as seguintes alterações legislativas parecem ter relativizado de certo modo a aplicação do princípio da indisponibilidade do interesse público, na medida em que possibilitam aos agentes públicos decidirem quanto a transigir ou optar pela arbitragem, decisões estas que a princípio caberiam aos representantes do povo:

a) b) a) b) c) d) e) f)

4.5.

4.5.1.

Nos Juizados Especiais Federais, os representantes da União, autarquias, fundações e empresas públicas federais estão autorizados a conciliar, transigir ou desistir sobre os interesses discutidos na demanda (Lei 10.259/2001, art. 10, parágrafo único);

O contrato de concessão de serviços públicos e o contrato de parcerias público-privadas poderão prever o emprego de mecanismos privados de resolução de disputas, inclusive a arbitragem, para dirimir conflitos decorrentes ou relacionados a tais contratos (Lei 8.987/1995, art. 23-A, e Lei 11.079/2004, art. 11, III).

Em que pese as alterações anteriores conferirem certa margem de discricionariedade ao gestor público, elas não se constituem em verdadeiras exceções ao princípio da indisponibilidade do interesse público sobre o interesse privado. Primeiro, porque se tratam de hipóteses autorizadas por lei que, nos termos anteriormente explanados, ao menos em teoria, representam a vontade do povo de dispor do direito em tais circunstâncias. Segundo, porque a discricionariedade conferida aos representantes da União, das autarquias, das fundações e das empresas públicas federais para conciliar, transigir ou desistir da demanda ao ser exercida deve sempre ter em conta a observância do interesse público. Assim, por exemplo, o representante da União poderá desistir de uma ação quando verificar que o custo de manutenção do processo é mais desvantajoso do ponto de vista econômico ou quando oferecer poucas chances de vitória. Por outro lado, eventual renúncia a direito líquido e certo da União em processos judiciais pode gerar a responsabilização administrativa, civil e penal do agente público.

Por fim, segundo lição de Celso Antônio Bandeira de Mello,6 como consequência da indisponibilidade do interesse público, a Administração se submete também aos princípios: da legalidade, da obrigatoriedade do desempenho e da continuidade do serviço público, do controle administrativo ou tutela, da igualdade dos administrados, da publicidade, da inalienabilidade dos direitos concernentes a interesses públicos e do controle judicial dos atos administrativos. Para o referido autor, os demais princípios apontados anteriormente são uma consequência lógica do princípio da indisponibilidade do interesse público.

Em síntese:

PRINCÍPIO DA INDISPONIBILIDADE DO INTERESSE PÚBLICO

Princípio implícito na Constituição Federal;

Impõe uma série de restrições (sujeições) à conduta administrativa;

Conteúdo: a Administração Pública não pode abrir mão de alcançar o bem comum (interesse público primário) nem de conservar o patrimônio público (interesse público secundário);

Consequências práticas: proibição de alienar bens públicos enquanto afetados a finalidade pública, restrições à alienação de bens públicos, necessidade de concurso público para admissão de pessoal; necessidade de licitação para celebração de contratos administrativos; proibição de renúncia de receita, salvo autorização legal etc.;

A indisponibilidade do interesse público aplica-se à Administração Pública, e não ao Parlamento no exercício da função legislativa;

A indisponibilidade do interesse público gera como consequência lógica a submissão da Administração Pública a uma série de outros princípios (legalidade, continuidade do serviço público, igualdade dos administrados, controle da atuação

administrativa, publicidade etc.).