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Relações dos doentes e suas famílias com os profissionais de saúde

Capítulo II – O doente, a doença e a família

4. Doente crónico e família em relação com o sistema de cuidados de saúde

4.1 Relações dos doentes e suas famílias com os profissionais de saúde

Numa situação de doença crónica, a família e o sistema de saúde estabelecem relações simultâneas com a responsabilidade de cuidar o paciente, tendo como finalidade o seu bem-estar físico e emocional. Estas relações acontecem dentro de um contexto de distinção de funções para cada um dos sistemas envolvidos. Existem dimensões que permitem entender a especificidade funcional (Sousa, 2004):

a) Tempo. Por um lado, a família tem o contacto de uma vida e diário com o paciente, e, por outro lado, a relação com os profissionais de saúde com carácter parcial que resulta de contactos limitados no tempo.

b) Exclusividade ou individualização. Apesar dos profissionais de saúde conhecerem os processos de desenvolvimento e relacionais dos pacientes e famílias, não conhecem aquele paciente da mesma forma que a família. Além disso para o profissional de saúde aquele paciente é mais um a quem prestam cuidados implicando um tempo de relação curto. Contudo, o profissional tem maior conhecimento sobre o estado de saúde do doente, originária da sua formação profissional.

c) Contextos em que cada uma das relações tem probabilidade de ocorrer. Nas relações entre profissionais de saúde e paciente o contexto é específico, em que a prestação de cuidados muitas vezes é protocolado, implicando maior dependência física (referente aos cuidados prestados) e perda de autonomia (obediência). Nas relações paciente-família, os contextos são flexíveis e menos restritos, envolvendo maior dependência emocional.

Estas diferenças explicam alguns malentendidos que ocorrem nestas relações, por exemplo: levando os familiares a considerar os profissionais pouco simpáticos, por repartirem a sua acção por vários pacientes; acarretando que os profissionais podem achar as famílias demasiado exigentes, por se centrarem apenas no seu familiar doente.

Os profissionais de saúde tendem a apresentar duas perspectivas negativas no relacionamento com as famílias (Sousa, 2004): demasiado envolvidas e muito emocionais, o que impede o desenvolvimento de um bom trabalho; não pertencem ao âmbito de acção dos profissionais de saúde, devendo ser atendidas por outros profissionais, como os psicólogos e assistentes sociais.

Estas perspectivas negativas e de afastamento dos profissionais de saúde relativamente às famílias dos pacientes são explicados por Levine (2000) em quatro linhas: os profissionais estabelecem uma relação apenas com o paciente, excluindo a

família; esta exclusão da família está relacionada com a falta de formação dos profissionais em lidar com as famílias; os profissionais (essencialmente os médicos) adoptam uma posição de tomada de decisão relativamente à prestação de cuidados aos pacientes e esperam que a família e paciente obedeçam às suas indicações; e as famílias podem ser atendidas por profissionais sob stresse, o que implica que estes últimos possam adoptar atitudes e comportamentos irreflectidos.

Também as famílias referem uma visão negativa dos profissionais de saúde, a que corresponde um distanciamento e falta de humanização na prestação de cuidados. Atendendo à falta de recursos a família é chamada a assumir a prestação de cuidados, traduzindo-se normalmente num dos membros da família, tradicionalmente uma mulher, que assume esta responsabilidade (Sousa, 2004). Estes cuidadores informais mantêm o seu papel de prestação de cuidados, mas perdem a autoridade e poder de decisão para os profissionais de saúde (Levine, 2000).

Para um funcionamento adequado das relações que se estabelecem entre a família e o sistema de saúde é conveniente ter em conta alguns aspectos de forma a amadurecer e prolongar a relação. Neste sentido, existem aspectos a evitar e outros a adoptar de forma a promover boas relações (Sousa, 2004): o paradoxo da ajuda, a escalada simétrica, os desequilíbrios no envolvimento, os padrões triádicos, as fronteiras, os mitos e as crenças e os triângulos institucionais.

O paradoxo da ajuda, ocorre quando o sistema de saúde identifica um problema e procura um perito para ajudar a família nessa dificuldade (Curonici & McCulloch, 1994). O paradoxo traduz-se no facto de que quanto mais quem apoia se mostrar competente e activo, mais quem é ajudado se mostra incompetente, o que significa que o profissional se sente cada vez mais imprescindível e a família mais incompetente.

A escalada simétrica relaciona-se com a definição rígida dos papéis do profissional de saúde como cuidador e do paciente/família como recebedor de cuidados. O profissional de saúde espera que sigam as suas indicações sem discutir e a família pode não o fazer por não ter entendido ou por discordar. Desta forma, os profissionais podem concluir que a família não se interesse pelo doente ou, quando os familiares colocam questões e dúvidas sentem ameaçada a sua autoridade e competência profissionais. Nestas situações surgem conflitos, resultando numa escalada simétrica em que cada um quer adquirir maior superioridade ou ter mais razão.

Os desequilíbrios no envolvimento (Wood, 1995 citado por Sousa, 2004), têm subjacente que o intercâmbio entre os sistemas envolvidos é essencial para se determinar o grau de proximidade, a hierarquia dos sistemas e a capacidade de

resposta no sentido do bem-estar físico e psicossocial do paciente. Os desequilíbrios podem assumir três configurações:

d) Não partilha de informação do profissional de saúde para com a família o que se traduz na diminuição da responsabilidade da família.

e) Excessivo envolvimento do sistema de saúde tornando-se a relação demasiado próxima o que origina um enfoque na doença e nos cuidados, o desconforto com a doença pode manifestar-se em rejeição e afastamento ou fascinação e concentração na doença.

f) Elevada responsabilidade assumida pelo sistema de saúde na gestão da doença, o que pode impedir o paciente/família de gerirem os aspectos médicos e emocionais da doença, No entanto, se o sistema responde de uma forma insuficiente o paciente pode ser colocado em risco e a família exposta a stresse emocional desnecessário.

Os padrões triádicos, adaptados a esta situação são (Minuchin, 1982 citado por Sousa, 2004): desvio, coligações e triangulações.

O desvio refere-se a situações de conflito entre dois intervenientes (indivíduos ou sistemas) que se atenua pela concentração noutro assunto ou sistema. Nas relações entre sistema de saúde e família isto pode ocorrer quando focalizam a sua atenção para o paciente com a sua doença ignorando conflitos. As coligações referem-se a alianças formadas entre membros ou sistemas, que podem excluir ou ser contra elementos desse ou outro sistema, o que adquire maior dimensão problemática quando estas relações são negadas ou escondidas. As triangulações, referem-se a jogos de alianças e coligações, aqui o terceiro envolvido toma partido por uma das partes, na tríade composta por profissionais de saúde, família e utente podem surgir vários padrões de triangulação disfuncionais: triangulação rígida (aqui dois intervenientes procuram que um terceiro se alie a si contra o outro); triângulo perverso (dois intervenientes de hierarquias diferentes coligam-se contra um terceiro); duplo vínculo cindido (emissão de injunções paradoxais e discordantes, em que quem recebe a mensagem fica confuso perante a ambiguidade).

As fronteiras, referem-se a linhas imaginárias que delimitam as acções de cada elemento, Minuchin (1982) define-as como regras que protegem a diferenciação e competência dos subsistemas, indicando quem participa e como. Podem ser difusos (quase inexistentes), claros (nítidos e flexíveis, são os mais adequados) e rígidos (muito vincados). Numa situação de aparecimento de doença crónica a família permite a entrada do sistema de saúde, alargando as suas fronteiras, mas o sistema de saúde raramente permite a sua entrada, por exemplo: a informação sobre o paciente circula

livremente no sistema de saúde, mas os dados relativos aos planos de cuidados do paciente pouco são partilhados com a família.

Os mitos e crenças podem ser utilizados por ambos para interpretar comportamentos mútuos, mais especificamente, são utilizados para preencher lacunas ou falhas de informação levando a malentendidos. Estes resultam, por um lado, da falta de conhecimento do sistema de saúde acerca do processamento da informação das famílias e, por outro lado, o funcionamento do sistema de saúde não é explicado. Os mitos e crenças tendem a desenvolver-se a partir de incidentes críticos que resultam em comportamentos de interacção repetitivos e estereotipados. Se uma família não dispõe de informação sobre o diagnóstico, prognóstico e tratamento vai usar o seu sistema de crenças como guia cognitivo de decisões e acções.

Os triângulos institucionais, referem-se à existência de outros sistemas envolvidos, o que pode ser esquecido pelo sistema de saúde, uma vez que efectua uma avaliação individual. As famílias numa situação de aparecimento de doença crónica num dos membros têm que lidar com os sistemas habituais (como o educativo, entidade empregadora, acção social) e ainda com esta nova circunstância. O sistema de saúde pode afirmar que a família é desinteressada sem ter efectivamente conhecimento das outras circunstâncias que podem actuar como limitativas.

O interesse pelo papel da terapia familiar na medicina familiar cresceu durante a década de 1980, salientando-se a importância da família no processo terapêutico. A este propósito, Doherty (terapeuta familiar) e Baird (médico de família), publicam o livro Family-Centered Medical Care (1987), em que organizaram os casos clínicos dentro de uma moldura de níveis que descreviam o envolvimento do médico com as famílias. Os níveis representam diferentes graus de interesse e treino das habilidades familiares, permitindo que os médicos escolham como interagir com as famílias, de forma a obter habilidades pertinentes: nível 1 – ênfase mínima sobre a família; nível 2 – informações e aconselhamentos médico contínuos; nível 3 – emoções e apoio; nível 4 – avaliação sistemática e intervenção planeada; nível 5 – terapia familiar.

Nível 1: Ênfase mínima sobre a família

Neste nível básico, as famílias são consideradas como necessárias apenas por razões médicas ou legais. Nenhuma habilidade de comunicação é considerada necessária no atendimento médico.

Nível 2: Informações e aconselhamento médico contínuos

Neste nível, os participantes compreendem a natureza triangular das relações paciente-família-médico e exercitam habilidades na comunicação com as famílias,

principalmente sobre questões médicas. A comunicação afectiva não é um foco deliberado da conferência familiar.

Nível 3: Emoções e apoio

Este nível exige que os participantes tenham conhecimento do desenvolvimento familiar normal e respostas ao stress. Como no nível 2, o médico encontra-se com as famílias, oferece informações e aconselhamento médico, mas também responde às necessidades emocionais dos membros da família. Apoio, encorajamento de respostas alternativas e facilitação de indicações para terapeutas, quando necessário, são habilidades exigidas no envolvimento no nível 3, mas não ocorre qualquer intervenção.

Nível 4: Avaliação sistemática e intervenção planeada

Isto requer que os participantes tenham treino e supervisão na avaliação familiar e habilidades de intervenção. O terapeuta envolve os membros da família numa sessão de aconselhamento, remoldura as dificuldades e encoraja à solução de problemas mutuamente vantajosa. Essas intervenções breves e limitadas focalizam-se sobre padrões familiares directamente relacionados ao problema médico. Trabalhando neste nível, o médico monitoriza o progresso e encaminha a família para um terapeuta familiar, se os problemas não são apropriados ao atendimento primário.

Nível 5:Terapia familiar

A oferta de terapia exige treino extenso e supervisão. O envolvimento com as famílias neste nível requer a capacidade para lidar com respostas emocionais intensas obtidas através do trabalho. Para que isto seja possível, o médico tem que ter como base de conhecimento o sistema familiar e os padrões pelos quais as famílias disfuncionais interagem com profissionais e outros sistemas de cuidados à saúde.