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Sílvia, Marcelo e os Espíritos

No documento Despedindo-se da Terra (Chico Xavier) - PDF (páginas 87-92)

SÍLVIA, MARCELO E OS ESPÍRITOS

O regresso do fórum marcava a retomada das conversas entre Marcelo e Sílvia, sendo que, experiente como era, a moça não tocou no assunto do sonho, já que desejava deixar no ar a informação par despertar a curiosidade do rapaz.

Marcelo, acostumado às artimanhas femininas, fingiu te esquecido a revelação, como alguém que não lhe dera muita importância, para também avaliar em Sílvia o grau de sua ansiedade em revelar o conteúdo do sonho mencionado.

O assunto girou em torno da audiência de Sílvia, enquanto que Marcelo coube apresentar o resumo fictício do inventado processo, bem como a sua avaliação sobre o desempenho do profissional que o havia proposto ao juízo.

Ambos, no entanto, avaliavam com ansiedade o terreno que estavam pisando, a respeito um do outro.

Já a meio do caminho, Marcelo não se conteve e, tocando de leve o joelho de Sílvia, num gesto de delicada intimidade, perguntou:

— E então, Sílvia, você não vai me contar o sonho?

— Ah! O sonho... — disse ela, aparentando esquecimento. — Se você não me pergunta, eu mesma já não me lembrava disso.

— Sim, as mulheres costumam se esquecer facilmente das coisas pouco importantes. Além do mais, um sonho comigo há de ser facilmente esquecido porquanto não deve ter sido lá muito interessante.

Entendendo as referências auto-depreciativas de Marcelo como uma forma de conquistar a sua simpatia para mais facilmente revelar o conteúdo de sua experiência durante o repouso físico, Sílvia manteve o mistério, dizendo:

— Marcelo, eu não posso lhe revelar o sonho de forma clara, porquanto entre nós não existe liberdade nem intimidade para que possamos descrever certas coisas que uma mulher e um homem realizam nas horas mais quentes de seus encontros.

No entanto, posso lhe afirmar que, para surpresa minha também, já que não esperava algo tão interessante e agradável com alguém com quem nunca tive maior aproximação, ter sonhado com você como sonhei foi das melhores coisas que me aconteceram nestes tempos, de forma que, quem sabe um dia, se acabarmos ficando mais próximos, eu lhe revele o conteúdo plenamente.

Entendendo que tais expressões se referiam a um sonho de conteúdo provocante, Marcelo se sentiu envaidecido nas fibras masculinas, respondendo a Sílvia:

— Mas isso não é justo. Eu entendo seus pudores e concordo com eles, mas nós somos adultos, Sílvia. Não quer dizer que isso vai nos comprometer um com o outro. É só um sonho. Vamos lá. Conte-me para que possa desfrutar desse momento interessante também.

— Você também acha interessante? — perguntou ela, com segundas intenções. Marcelo entendera a referência e, procurando ser respeitoso sem ser grosseiro a estabelecer um juízo masculino sobre a mulher que tinha ao seu lado, respondeu:

— Claro, Sílvia. Como não poderia achar interessante um momento de intimidade com alguém tão atraente, mesmo que seja em sonho que esse encontro tenha acontecido?

Sentindo que Marcelo estava mordendo a isca, a mulher se fez envergonhada pelo elogio direto, e disse:

— Sabe, Marcelo, existem coisas que, depois de uma certa idade, a gente não costuma mais escutar dos homens, nem mesmo de nossos próprios maridos. O que acaba de me dizer tem um valor muito maior do que você pode pensar.

E imaginando que Sílvia estivesse apenas falando de maneira genérica, Marcelo procurou aumentar-lhe a auto-estima, acrescentando:

— Ora, Sílvia, com todo o respeito, se os homens não lhe homenageiam os atributos pessoais, o problema não é com você.... É com eles, que devem estar cegos.

Com tais referências, Marcelo pretendia fazer-se simpático, além de, naturalmente, favorecer-se nas intenções de Sílvia que, escutando-lhe a palavra gentil, certamente consideraria melhor suas disposições em lhe revelar suas experiências oníricas.

— Obrigada, Marcelo, você é muito gentil e, como forma de guardar este momento especial para os sentimentos de mulher que suas palavras produzem em mim, vou fazer de conta que elas correspondem à verdade.

— Mas isso não é um faz de conta, Sílvia. Você é uma mulher muito atraente mesmo, exuberante, com uma postura que poucas mulheres possuem e que, de uma forma indiscutível, causa um impacto sempre que se apresente em qualquer local.

— Você acha mesmo isso, Marcelo? Não me engane só para que eu lhe revele meu sonho. Afinal, você tem uma mulher linda e sua avaliação parte desse ponto de vista, ou seja, do seu gosto apurado em relação a pessoas do sexo oposto.

— Claro, Sílvia, não estou aqui para comprar a sua boa vontade só para me revelar suas experiências noturnas. Como homem, acostumado a avaliar a beleza feminina, posso lhe dizer que somente os que não sabem apreciá-la podem deixar de reconhecer a sua atração e elegância.

— Sabe, Marcelo, no mesmo andar do nosso escritório existe uma outra mulher que também atrai os olhares masculinos e é muito elegante. Ela é simpática, sorridente, alegre, e se veste com um primor. Você não a conhece?

— Ora, Sílvia, falando assim, não me lembro de ninguém com esse perfil.

— Ah! É a doutora Úrsula, uma médica aposentada que está beirando os 80 anos e, como você falou, é igualmente atraente e elegante.

— Mas, mulher... você está difícil hoje, não? — falou Marcelo, demonstrando contrariedade bem humorada

— Afinal, Marcelo, com meus trinta e quatro anos, não sou mais nenhuma jovenzinha bem modelada e com o corpinho zero quilômetro.

Chegando ao ponto em que Sílvia desejava, por fim, afirmou Marcelo, decisivo: — Tudo o que falei a seu respeito, Sílvia, me referi a você como mulher desejável, como aquela que é capaz de atrair olhares masculinos e inspirar pensamentos impublicáveis, coisa que, estou certo, a doutora Úrsula não é mais capaz de fazer.

Agora foi a vez de Sílvia tocar o joelho do motorista com um pequeno aperto de sua mão quente e suada, diante daquele diálogo mais temperado entre ambos.

— Sabe, Marcelo, além de gentil, você sabe conquistar o interesse de uma mulher. Vamos fazer assim: você tem algum compromisso na tarde da próxima quarta-feira?

Sem entender aonde Sílvia queria chegar, respondeu: — Não, Sílvia, estou mais livre esta semana.

— Então, como tenho outra audiência neste horário, algo que é mais rápido do que a de hoje, gostaria de convidá-lo para vir comigo ao fórum e, assim, longe do escritório, a gente conversa melhor e poderei lhe contar tudo. Você aceita meu convite?

Não podendo perder a oportunidade de se aproximar daquela que lhe parecera a mais difícil das três colegas de escritório, Marcelo não titubeou:

— Tudo bem, Sílvia, aceito o convite para a próxima quarta.

— Combinado. Uma vez de cada um.

— Ah! Gostaria, se não fosse incômodo, que me desse o número de seu telefone celular para que me comunicasse diretamente, caso aconteça algum imprevisto e eu precise desmarcar nosso encontro.

— Sem problemas, Sílvia. Tenho aqui comigo meu cartão, que possui o telefone no qual você me encontra pessoalmente.

— E sua mulherzinha, não vai achar ruim de eu estar ligando no seu celular? — perguntou Sílvia, meio irônica meio brincando.

— Fique tranqüila, Sílvia, Marisa não se incomoda, porque sabe que tenho compromissos profissionais e preciso atender quem me procure.

E aproveitando para retribuir na mesma moeda, Marcelo indagou, ousado:

— E o seu marido, não vai estranhar em ver, por acaso, a sua mulher transportando em seu carro um outro homem?

— Ora, Marcelo, meu marido e nada é a mesma coisa. Como já lhe falei, não somos quase nada um para o outro. Ele tem a sua vida e eu tenho a minha. Dessa forma, nos entendemos bem. Fique tranqüilo quanto a isso.

— Está bem, já não está mais aqui quem perguntou.

O carro acabara de dar entrada no estacionamento subterrâneo onde Marcelo tinha uma vaga. Antes de saírem do carro, Silvia lhe disse, alegre:

— Marcelo, não imagina como foi bom ter estado com você nestas horas. Jamais pensei que sua companhia me fosse tão agradável. Obrigada.

E assim dizendo, aproximou-se do rapaz, na penumbra do subterrâneo e lhe depositou um beijo no rosto, na primeira vez em que ela se permitira tal tipo de cumprimento.

O rapaz, meio sem jeito, meio feliz, abraçou-a, respeitoso, e respondeu:

— Posso dizer a mesma coisa a seu respeito, Sílvia. Foi muito bom e haverá de ser igualmente muito agradável nosso próximo encontro. Não se esqueça, no entanto, do sonho que você deve me contar como prometeu.

— Claro, Marcelo, não me esqueço de minhas promessas. Contar-lhe-ei todos os detalhes.

Saíram do carro e retornaram ao escritório mantendo a mesma postura de antes, para que a intimidade ali nascida não ficasse conhecida de mais ninguém. Isso já era uma postura quase que instintiva de todos os que trabalhavam naquele lugar.

Fingir amizade na superfície, mas não se permitir qualquer tipo de demonstração de um afeto ou de uma ligação maior entre si.

Nenhum dos dois sabia, mas, dentro do carro, as três entidades perturbadoras, destacadas diretamente pelo Presidente da Organização, ali se achavam: o chefe no comando, Juvenal a lhe assessorar diretamente e o repugnante Aleijado a lhes acompanhar no aprendizado negativo.

Em cada lance da conversação, em cada acento de malícia ou de fingida ingenuidade, o Chefe ensinava os dois aprendizes como é que se conseguia manipular o pensamento de cada pessoa, valendo-se de suas tendências pessoais a fim de conseguir enredar cada uma ia armadilha urdida para os fins obscuros.

Enquanto cada personagem falava, fios tenuíssimos de energia pardacenta saíam da mente do Chefe e se conectavam aos centros cerebrais de Sílvia e de Marcelo, através dos quais, suas intuições podiam atingir em cheio os centros do pensamento, ao mesmo tempo em que, com antecipação, lhe permitiam saber qual o teor das idéias de ambos.

Com esse conhecimento prévio das coisas, o Chefe podia melhor manipular os interesses e o rumo das conversações, na direção que lhe parecesse mais adequada, visando os fins colimados e estabelecidos pela direção da Organização.

Juvenal já se encontrava mais adestrado do que Gabriel, o Aleijado, buscando cooperar com o Chefe, assim como o subalterno subserviente e bajulador deseja cair nas graças de seu superior.

O Aleijado observava demonstrando interesse em aprender.

Para ele, no entanto, faltavam certos requisitos que só o tempo de observação poderia favorecer. O Chefe, no entanto, reconhecia que o seu grau de feiúra e deformidade seria uma arma muito importante para os momentos de produzir um choque nos encarnados, através do encontro deles, durante o sono, com uma entidade tão aviltada na forma exterior.

Esse medo era capaz de apavorar e desorientar qualquer um mais despreparado e, por isso, Gabriel correspondia a uma eficaz arma a ser disparada no momento correto, com fins específicos, o que fazia com que o Chefe tolerasse a sua quase inutilidade, sabendo que, na hora certa, ele lhe poderia compensar pelos benefícios que propiciaria no desequilíbrio daqueles que lhes cabia atacar.

E quando o carro finalmente estacionou na garagem, todos desceram, incluindo os Espíritos, cada um tomando o rumo que lhes competia.

As entidades, entretanto, assim que se apresentaram nas dependências escuras do complexo Departamento Trevoso que se construía sobre o escritório terreno, foram informadas de que o Chefe deveria comparecer com urgência perante o Presidente da Organização, para prestar contas de como andava o processo de perseguição iniciado já há algum tempo.

Olhando para os dois que lhe seguiam os passos, o Chefe exclamou, um pouco preocupado:

— Bem, pessoal, o maioral quer falar com a gente. Temos que fazer nossa viagem até o gabinete. Informem que já recebemos a convocação e que, brevemente, estaremos atendendo, só dependendo de uns detalhes que providenciaremos imediatamente, para que partamos.

O Departamento que lhes servia de base de ações junto a Marcelo, Marisa e outros recebeu-lhe a comunicação e tratou de enviar mensageiro rápido para o Presidente ser informado de que, em breve, sua convocação seria atendida pelo grupo de perseguidores.

Enquanto se ausentasse do ambiente, o Chefe procurou dar algumas ordens para serviçais do próprio Departamento que lhe estavam à disposição, para que não fosse diminuída a carga de pressão sobre os integrantes de sua trama persecutória.

Afinal, o responsável não pretendia que algo saísse errado enquanto estivesse fora.

Além do mais, dois dias depois deveria estar a postos para o novo encontro de Marcelo com Sílvia.

Estabeleceram o reforço da vigilância no lar da referida moça, buscando afastar dali tudo o que lhe embaraçasse o caminho e, ao contrário, estimulando-lhe a excitação feminina com as lembranças detalhadas do sonho de dias atrás.

Junto a Camila, a ação negativa continuava a fazê-la imaginar as vantagens da companhia de Marcelo todas as manhãs, além de lhe dar certeza de que o rapaz se interessava muito por suas concessões na confiança, na conversa sobre os processos de espionagem levados a efeito pelo Dr. Leandro, tanto quanto sua perspicácia feminina sabia aquilatar o quanto Marcelo se encantava com sua beleza física, o que a fizera tornar-se ainda mais cuidadosa com suas roupas e com a maneira através da qual se

exibia para o rapaz, fingindo ocultar aquilo que, efetivamente, permitia ser visto pelo olhar embevecido de Marcelo.

Já com Letícia, a jovem ansiosa, os sentimentos que nutria por ele eram o combustível a lhe mobilizar as atitudes, sendo facilmente manipulável pelas intuições espirituais inferiores que se valiam de suas carências e sonhos de mulher para idealizar o relacionamento com o colega de trabalho.

Todos estavam cercados, ao mesmo tempo em que Alberto e Ramos, sempre acompanhados por Leandro e Clotilde, lideravam aquele lugar, que poderia ser o altar do direito, no culto da verdade real, no desenvolvimento dos valores sociais adequados, na recusa ao patrocínio das causas indecentes, dos clientes indignos, mas que se tornara, apenas, uma máquina caça-níqueis, valendo-se das desgraças do mundo para enriquecimento próprio, como as aves de rapina que se projetam sobre suas vítimas para lhes arrancar a carne, antes mesmo que estejam definitivamente mortas

No documento Despedindo-se da Terra (Chico Xavier) - PDF (páginas 87-92)