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2.1 APROXIMAÇÕES COM O CONCEITO DE SABER

2.2.1 Saber: uma miríade de relações

Buscando referências para discutir o que é o saber, retomamos o relatório de estágio pós-doutoral de Odisséa Boaventura de Oliveira (2015). Nele, encontramos o posicionamento de Beillerot sobre a noção de saber.18 As afirmações desse estudo, a partir da leitura de Beillerot, revelam em um primeiro momento a existência de certa ligação entre os termos “saber” e “poder” que possuem proximidades de significados (quando poder é entendido como capacidade de transformação do meio e é associado a um saber-fazer).

Por meio da relação acima, o estudo referido permite entender que, ao dizer: eu sei algo, dir-se-ia também que posso interferir no meio social. Neste caso o saber é entendido como um

18 Rela tório da s a tivida des desenvolvida s no está gio de Pós-Doutora do no período de 15 de fevereiro de 2014 a 14 de fevereiro de 2015. O tra ba lho foi supervisiona do por Berna rd C ha rlot e teve como título “Rela ções com o sa ber na formação de professores de Ciências”. Geralmente encontramos a posição de Bernard Charlot sobre a relação com o sa ber, ma s nã o a de Beillerot. A noçã o pa rece a mplia r a qui a compreensã o do que seria sa ber.

saber/poder e estaria filiado à habilidade e à disposição. A concepção é de um saber que indica uma relação com o mundo prático.

Segundo Oliveira (2015), refletindo sobre as ideias de Beillerot, existe uma diferença, já discutida por alguns autores, entre “saber como fazer” e “saber-fazer”. O primeiro, para Beillerot, estaria próximo a uma técnica de discurso e o segundo a uma técnica de transformação do meio. Oliveira (2015) ainda propõe um exemplo de distinção dos dois termos ao explicar que: alguém pode saber mentalmente como nadar e não saber nadar; saber como fazer, mas não saber fazer, ou seja, um saber que seria descomprometido de sua realização.

Essa argumentação parece oferecer um outro enfoque à discussão sobre saber, diferente até dos dois posicionamentos colocados acima (a partir do dicionário Aurélio e do dicionário Lalande de Filosofia). Neste último caso, o saber estaria dividido entre aqueles descompromissados com a realização prática e os que realmente se desenvolvem em práticas concretas sobre os objetos da vida concreta – percebe-se um relevo dado ao uso prático do

saber. Poder-se-ia dizer que o saber-fazer, colocado no parágrafo acima, não é apenas saber

expressar-se sobre uma atividade, mas a efetuação, o ato, a prática (a realização prática da atividade). Consequentemente, o saber não teria um fim em si, mas na sua realização. Aparecendo aí uma cisma entre duas modalidades de saberes.

Ainda discutindo a proposta de Jacky Beillerot, Oliveira (2015) apresenta uma caracterização feita pelo referido autor francês sobre o saber, dividida em quatro formas:

a ) Está próximo do sa ber-fa zer, pois ele nã o existe rea lmente senã o pela a çã o que o permite; é a implementa çã o do sa ber que importa e nã o seu estoque; b) Os sa beres- fa zer sã o sempre discursos e se desdobra m dentro de uma rea lida de socia l e cultura l; eles se torna m prá tica s socia is de sa beres, fontes de prá tica s socia is de produçã o de bens e de símbolos; c) As prá tica s socia is de sa beres implica m na consciência deles; o sa ber implica uma consciência de sa ber; d) As prá tica s socia is e discursos de sa beres se exercem em intera çã o, coletiva mente. O pa pel orga niza dor da rea lida de socia l é essencia l e compreende o ima giná rio socia l que se exprime no mito da tota lidade unifica da de sa beres (BEILLEROT, 1989 apud OLIVEIRA, 2015).

Considerando o trecho acima, observamos que, nesta concepção, o saber é associado a ações tomadas dentro de determinados contextos para implementar, conscientemente, atividades na vida prática.

Charlot (2000, p. 62) não compartilha das ideias e classificações dos saberes efetuada por Beillerot, pois os saberes são abordados, como aqui acima colocado, a partir de “formas específicas de se relacionar com um objeto”. Para Charlot (2000), os saberes são maneiras “específicas de relação com o mundo”. Tendo esta consideração em destaque, Charlot (2000) questiona a concepção de saber como uma prática. Em seu entendimento, seria a relação com

o saber que constitui a prática e não o saber em si. Para ilustrar a questão, ele destaca o caso de um engenheiro que se vale de um enunciado de física dos materiais. Ao lançar mão deste enunciado, elaborado em uma relação científica com o mundo, que será reconhecida como cognoscível por qualquer sujeito que se inscreva numa relação desse tipo, também se estaria diante da mobilização do saber pelo engenheiro em uma relação prática com o mundo.

O estudo de Oliveira ainda explica que Beillerot (2000 apud OLIVEIRA, 2015) faz uma distinção entre saberes e saber, sendo o primeiro um conjunto de enunciados e procedimentos construídos socialmente e reconhecidos, concluindo que por meio deles o “sujeito social cria uma relação com o mundo natural e social e o transforma”. Ao mesmo tempo, esses saberes se tornam singulares, pois estão associados ao domínio do saber por um sujeito que domina uma fração de saber. Neste sentido, o saber é algo que vai formando-se diante das experiências; resultado de atividades de aprendizagens, o saber se atualiza nas situações e nas práticas.

Beillerot (1996 apud OLIVEIRA, 2015, p. 17) apresenta então duas concepções sobre saber:

a ) Sa beres como estoque de conhecimentos, sã o repertórios a cumula dos nos livros ou na s ba ses de da dos. É da ordem do ter (se possui, se a dquire), por isso sã o compa rados a os ca pita is, a os investimentos e bens. É uma concepçã o de economista , que se troca e se compra como merca doria . Sã o eles que ma rca m a s diferença s entre os sujeitos e os sa beres exteriores.

b) Sa ber como processo, o qua l se a poia na s rela ções com o psiquismo. Tra ta -se de compreender a s a prendiza gens dos sa beres, como eles sã o a dquiridos ou nã o, como os dispositivos fa cilita m a s a propria ções, como na scem e se desenvolvem a s inibições de sa ber e a prender, como os meca nismos cognitivos se implementa m. Gra nde pa rte da psicologia do século XX defendeu a ideia de que sã o a s a prendiza gens do sa ber que representa m a rea lida de dinâ mica do sa ber, o que levou a numerosa s inova ções peda gógica s que a centuam situa ções que fa vorecem o a to de a prender. Mostra ndo que a prender é um a to e nã o uma impregna çã o passiva .

O estudo de Oliveira (2015) aqui em discussão, destaca que tanto a concepção dos saberes como reservatórios sociais, quanto a concepção como processo que acentua sua apropriação entendem que para se obter saber é necessária uma atividade específica de sujeitos e pessoas no mundo. A compreensão decorrente de tal explicação é que a mobilização constrói saberes enquanto a posse, não. O saber não seria o que se tem armazenado, mas aquilo que se faz em razão do que se sabe. A representação do saber como algo depositado estaria então reduzindo a possibilidade de leitura do real, como bem criticou Freire (1987) ao fazer uma leitura da realidade do processo educacional em Pedagogia do Oprimido. A partir da interpretação de Oliveira (2015), percebe-se que Beillerot recorre às explicações de Schlanger para expressar que não há saber em si, o saber requer uma ação. Em decorrência dessa

compreensão, o saber consistiria em uma atividade. Confrontando o saber a um livro, demonstra que este é um objeto morto. Sua relevância consiste no trabalho que o leitor exerce ao debruçar- se sobre o livro. O saber não seria o que está escrito no livro, mas a atividade mental do leitor. O saber sobre alguma coisa não é armazenar essa coisa, é mobilizá-la, fazer uso desse saber.

J.M. Monteil (apud CHARLOT, 2000, p. 61) se ateve à definição de três figuras semânticas: informação, conhecimento e o saber. Nesse caso:

A informa çã o é um da do exterior a o sujeito, pode ser a rma zenada, estoca da, inclusive em um ba nco de da dos, está “sob a prima zia da objetivida de”. O conhecimento é o resulta do de uma experiência pessoa l liga da à a tivida de de um sujeito provido de qua lida des a fetivo-cognitiva s; como ta l, é intra nsmissível, está “sob a prima zia da subjetividade”. Assim, como a informação, o saber está “sob a primazia da objetividade”, mas, é uma informação de que o sujeito se apropria. Desse ponto de vista, é também conhecimento, porém, desvinculado do “invólucro dogmático do qual a subjetivida de tende a insta lá -lo”. O sa ber é produzido pelo sujeito confrontado a outros sujeitos, é construído em “quadros metodológicos”. Pode, portanto, “entrar na ordem do objeto”; e tornar-se, então, “um produto comunicável”, uma “informação disponível para outrem”.

Ao notar essas distinções que formula Charlot (2000), é possível entender que a

informação pode ser estocada; o conhecimento é uma experiência pessoal ligada às vivências

do sujeito, mas tal vivência sendo intransmissível. Já o saber seria o instante em que, extrapolando a ideia de posse, ele consegue ser comunicável e se tornar disponível aos demais sujeitos que em relação podem validar, controlar e partilhar o saber. Charlot (2000, p. 62) reforça o ponto de vista em que saber implica em atividade do sujeito, além da relação consigo próprio e com o outro. Desse modo, não há saber em si, o saber é relação, ou ainda, “é uma forma de relação com o saber”.

Acompanhando esse raciocínio, chegamos à ilação de que não há saber sem relação com o mundo, com os outros e do homem/mulher consigo mesmo. Isso porque o saber está construído e se constrói também em meio às atividades e aos processos de entendimento humano em um determinado tempo/contexto. São saberes individuais e coletivos, passam pelo crivo dos homens na corrente do tempo e são validados pelos consensos de cada época.

Essa compreensão se aproxima também da noção de Paulo Freire (1987, p. 58) quando este diz que: “só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros”. O saber então seria uma construção permanente mediada da relação dos homens/mulheres com o meio e com os outros/as, para a realização de um objetivo qualquer.

A concepção apoiada em Beillerot (1989) e Charlot (2000) remete ao discernimento de que o processo de aprender antecede e é mais amplo do que o de saber. A partir desta concepção

teórica de saber, depreende-se que as experiências do conhecer constroem saberes que são trabalhados pelos sujeitos e expressados em relações específicas com o mundo. Esse pensamento pode conduzir a outros campos e outras ideias associadas, por exemplo, a cognição, a aprendizagem como espaço da Didática (campo de pesquisa) – não é o objetivo desta pesquisa. O que interessa aqui é a ideia de saber como construção relacional, pois como também relatou Guimarães (2004, p. 26), em dissertação de mestrado na UFPE, o aspecto relacional da construção do saber é uma das estruturas fundantes do saber da docência.

Compreender os saberes da docência como saber que é construído por relações parece fundamental aqui, visto que dessa forma germina a ideia de processo, de apropriação, de

prática, de aprendizagem e de todas essas noções atreladas e se desenvolvendo concomitante e

incessantemente, nas direções que respondam, neste trabalho, a formação do professor que atine aos diversos aspectos do seu futuro campo de exercício profissional.

Dessa forma, Tardif (2002, p. 255), no campo da profissionalização do ensino, também expõe sua concepção de saber. Nele, a noção é ampla e “engloba os conhecimentos, as competências, as habilidades (ou aptidões) e as atitudes” dos sujeitos diante da ação profissional, aquilo que elas vão apropriando-se do trabalho. Tardif (2002) explica que existe distinção entre “conhecimentos” e “saberes”, sendo o conhecimento algo sistematizado e construído ao longo da formação, enquanto o saber estaria na materialização destes conhecimentos na ação que, por sua vez, possibilita (a partir de atitudes reflexivas) validar, negar ou reformular os conhecimentos (inclusive os de formação) com base nos próprios saberes dos profissionais.

Tardif (2002, p. 16) coloca que os saberes dos professores estão dentro de uma “realidade social, materializada por meio de um processo formativo, de programas, de práticas coletivas, de disciplinas escolares, de uma pedagogia institucionalizada que constituem o saber dele”. Se os saberes que formam o professor estão dentro destes espaços, eles permitiriam, na formação inicial, a introdução de dispositivos que oportunizassem o habituar-se dos futuros professores com o exercício da profissão, ou seja, possibilitando oportunidades de relação com os saberes em seus diversos espaços de elevação. Assim, a formação inicial pode ser o lugar confluente de saberes plurais que consolidam a formação docente como o lugar que pensa o conhecimento da docência. No entanto, essa conceituação de saber docente não surge no vazio. De onde surge essa ideia defendida por Maurice Tardif (2002)?