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3. AS MULHERES E SUAS INTERAÇÕES COM A SOCIEDADE E O MERCADO DE TRABALHO: uma narrativa de exclusão estrutural

3.5. Ser Mulher: a exclusão gerada no ventre da Humanidade e alimentada no seio do Capitalismo

Compreender os aportes que engendram o ser mulher em nossa sociedade, ancora os argumentos capazes de apreender e formalizar parte essencial desse estudo: a questão de gênero.

O historiador israelense, Harari (2018), aborda que, as mais diferentes sociedades sempre adotaram diferentes padrões de hierarquias imaginadas. Por certo, a raça é um elemento importante para os norte-americanos modernos, mas, para os muçulmanos, era relativamente irrelevante. Na Índia medieval, a casta foi posicionada como uma questão de vida e morte, enquanto na Europa moderna é insignificante. Há, contudo, uma hierarquia à qual sempre foi dada grande relevância, em todas as sociedades humanas conhecidas: a hierarquia de gênero. A rigor, todos os povos se dividiram entre homens e mulheres. E, os homens foram privilegiados em quase todos os lugares, pelo menos desde a Revolução Agrícola.

Nessas sociedades, as mulheres eram tidas como mera propriedade dos homens, particularmente do pai, marido ou irmão. É conhecido que, em muitos sistemas jurídicos, o estupro era enquadrado como violação de propriedade, situação em que não se considerava a mulher como vítima, mas o homem a quem ela pertencia. Nessas situações, a pena ao estuprador era pagar o valor de uma noiva ao

pai ou ao irmão, e, a partir daí ela se tornava propriedade do seu estuprador (HARARI, 2018).

Por isso, embora o contrato social45 se apresente como uma história de liberdade, o contrato sexual46 se configura como uma história de sujeição. Temos então, a liberdade do homem e a sujeição da mulher. Inquestionavelmente, a liberdade civil não se caracteriza pela sua essência universal, mas como um atributo masculino que depende do direito patriarcal. (O CONTRATO SEXUAL, p. 16)

As mulheres não participam do contrato original através do qual os homens transformam sua liberdade natural na segurança da liberdade civil. As mulheres são o objeto do contrato. O contrato sexual é o meio pelo qual os homens transformam seu direito natural sobre as mulheres na segurança do direito patriarcal civil. [...]. (BAUMAN, 1999, p.21).

O sexo de cada pessoa é coisa simples de conseguir, basta nascer com um cromossomo X e um Y para que seja considerado do sexo masculino, analogamente, só é necessário um par de cromossomos X para pertencer ao sexo feminino. Mas o gênero, esse é coisa séria, porque ser homem ou mulher é uma tarefa árdua, muito complicada e exigente. Pois, nenhuma sociedade agracia automaticamente as pessoas do sexo masculino como homens ou do sexo feminino como mulheres e, tampouco, são títulos que restem garantidos por toda a vida depois de conquistados. Aos indivíduos do sexo masculino é exigida a prova de sua masculinidade de forma constante e ininterrupta, por toda a vida, em uma acumulação interminável de ritos e performances. E, para ser mulher, é preciso um trabalho sem fim, pois ela precisa convencer a si mesma e aos demais de que é feminina o bastante (HARARI, 2018). E, “a sociedade investe muito na naturalização deste processo.” (SAFFIOTI, 1987).

45 Forma de filosofia política, e que três contratualistas (Thomas Hobbes, John Locke e Jean Jacques Rousseau) afirmavam que a origem do Estado e da sociedade está num contrato social: anteriormente, as pessoas teriam vivido em um estado de natureza, mas através de um pacto firmado entre a maioria dos indivíduos de uma comunidade foram estabelecidas as regras de convívio social e instauradas as instituições do poder político. Disponível em:< https://www.infoescola.com/filosofia/contrato-social/>. Acesso em: 20/10/2019, às 07h38.

46 O contrato sexual é um conceito que mostra, em uma perspectiva política e histórica, como a constituição da sociedade se fundamentou na negação da condição humana à mulher. Disponível em:< http://www.cadernosdedereitoactual.es/ojs/index.php/cadernos/article/view/292>. Acesso em:20/10/2019, às 07h40.

[...]. No patriarcado moderno, a diferença entre os sexos é apresentada como uma diferença essencialmente natural. O direito patriarcal dos homens sobre as mulheres é apresentado como um reflexo da própria ordem da natureza. [...]. (BAUMAN, 1999, p.35).

Em suma, os seres humanos nascem machos ou fêmeas, mas será a partir da educação recebida que se tornarão homens e mulheres. O gênero, ou identidade social, é, portanto, socialmente construída. E, nas sociedades de tecnologia altamente sofisticadas, a natureza é crescentemente marcada pela intervenção humana (SAFFIOTI, 1987). O que nos leva a compreender um pouco mais sobre as formas de agir da cultura, pois esta

[...] tende a argumentar que proíbe apenas o que não é natural. Mas, de uma perspectiva biológica, não existe nada que não seja natural. Tudo o que é possível é, por definição, também natural. Um comportamento verdadeiramente não natural, que vá contra as leis da natureza, simplesmente não teria como existir e, portanto, não necessitaria de proibição. Nenhuma cultura jamais se deu ao trabalho de proibir que os homens realizassem fotossíntese, que as mulheres corressem mais rápido do que a velocidade da luz, ou que elétrons com carga negativa atraíssem uns aos outros.(HARARI, 2018, p.202).

Saffioti (1987) acentua não ser suficiente apenas ter conhecimento da capacidade humana de transformar a natureza, é preciso compreender que existe ainda o processo inverso, onde se naturalizam os processos socioculturais. Dessa forma, estabelecesse que é natural que a mulher pertença ao espaço doméstico e que o homem é destinado ao espaço público, como um resultado natural da história. Numa interação em que as diferenciações históricas são eliminadas enquanto as características “naturais” são ressaltadas. Assim, a naturalização dos processos socioculturais de discriminação contra a mulher e outras categorias sociais constitui o caminho mais curto e eficaz para a legitimação da “superioridade” dos homens, bem como a dos brancos, a dos heterossexuais e a dos ricos, por exemplo. Pois, “na verdade, nossos conceitos de ‘natural’ e ‘não natural’ não são tirados da biologia, mas da teologia cristã.” (HARARI, 2018, p.203).

A verdade é que o discurso naturalizado de que lugar de mulher é em casa serve de argumento de convencimento da ideologia dominante, que tem entre suas

consequências, a diminuta possibilidade das mulheres serem estimuladas a desenvolver todas as potencialidades de que são portadoras (SAFFIOTI, 1987).

Isto posto, cabe destacar que essa realidade traz outros desdobramentos à vida em sociedade. Pois, ao tentar ensinar os homens a auxiliarem a mulher nas atividades de cuidado com os filhos e com a casa, ratifica-se que a responsabilidade é do outro (a mulher). O que demonstra que, nada é mais cruel do que disfarçar a dominação dos homens sobre as mulheres através da “ajuda” que possam oferecer- lhes. O mesmo raciocínio é utilizado ao considerar que o trabalho fora de casa, exercido pelas mulheres, trata-se de “ajuda ao marido”. Essa justificativa apenas contribui para que sejam ofertados salários menores às mulheres que, em seguida, causa a desvalorização inclusive dos salários dos homens. Dessa forma, a própria mulher ao aceitar o salário menor, aceita como natural que seu trabalho seja visto apenas como “ajuda”, sem reconhecer seu verdadeiro valor (SAFFIOTI, 1987). Em nossa sociedade, para as mulheres, “o gênero é uma corrida em que os corredores competem apenas pela medalha de bronze” (HARARI, 2018, p.209).

É verificável que, em quase todas as sociedades agrícolas e industriais, o patriarcado sempre atuou como norma. Por exemplo, o Egito foi conquistado por diversos povos e por inúmeras vezes no decorrer dos séculos, mas a sua sociedade permaneceu patriarcal, ou seja, mesmo governado por diferentes leis, todas discriminavam as pessoas que não fossem consideradas “homens de verdade” (HARARI, 2018). Sobre o patriarcado cabe esclarecer que:

[...]O direito paterno é somente uma dimensão do poder patriarcal e não a fundamental. [...] O patriarcado deixou de ser paternal há muito tempo. A sociedade civil moderna não está estruturada no parentesco e no poder dos pais; no mundo moderno, as mulheres são subordinadas aos homens enquanto homens, ou enquanto fraternidade. [...]. (BAUMAN, 1999, p.18).

Nessa sociedade, os capitalistas são autorizados a explorar os trabalhadores, enquanto os maridos podem explorar as esposas, isto porque trabalhadores e esposas são subordinados através dos contratos de trabalho e de casamento respectivamente. Logo, o objeto desses contratos é um tipo especial de propriedade: a propriedade em que indivíduos têm indivíduos (BAUMAN, 1999).

Apesar disso, mesmo que o contrato sexual seja deslocado para o contrato de casamento, isto não significará que o direito sexual masculino esteja restrito às relações conjugais. Cabe reconhecer que, embora o casamento se apresente como de grande importância na esfera privada, o poder natural dos homens abarca todos os aspectos da vida civil. Pois, como a sociedade civil como um todo é patriarcal, as mulheres encontram-se submetidas aos homens, seja na esfera privada ou na pública. Ou seja, o principal suporte estrutural unindo as duas esferas no todo social é o direito patriarcal dos homens (BAUMAN, 1999).

Em face disso, as fronteiras entre o público e o privado sempre demarcaram a sujeição das mulheres na História da Humanidade, e, até hoje, as mulheres estiveram privadas de participação efetiva na vida pública, muito pelo fato de não serem consideradas indivíduos. Assim, graças à reprodução generalizada de estereótipos sobre o papel feminino foram erigidos discursos excludentes, tais como, política não ser assunto de mulher. O reforço desses discursos contribuiu para que as mulheres, até pouco tempo, permanecessem confinadas aos espaços domésticos. Logo, essa dicotomia entre espaço público e privado se concentrou na História da Humanidade, a cada formação social, de forma a se reproduzir em um emaranhado de usos e costumes responsáveis por estabelecer cotidianos diferenciados na estruturação social como um todo (FERREIRA, 2007).

Em face dessa situação de desumanização a que as mulheres sempre foram expostas, se desenvolve uma ideologia de luta, que objetiva modificar essa realidade secular a que as mulheres foram e são submetidas - surge o feminismo - que, neste texto, o definiremos como um movimento social, filosófico, político e ideológico que busca a libertação dos padrões opressores patriarcais, por meio do empoderamento feminino.

Chimamanda Ngozi Adichie, uma feminista e escritora nigeriana, mundialmente conhecida, em um artigo para o jornal The Guardian47, ao ser

questionada sobre o que seria o feminismo, a mesma resumiu a questão magnificamente:

Algumas pessoas me perguntam: ‘Por que a palavra feminista? Por que não dizer que você acredita nos direitos humanos, ou algo assim?’ Porque seria 47 Jornal britânico, fundado em 1821. Disponível em:< https://voxeurop.eu/pt/content/source- information/3751-guardian>. Acesso em: 20/10/2019, às 08h07.

desonesto. ” Adichie continua. “Feminismo é parte dos direitos humanos em geral, claro — mas escolher usar uma expressão vaga como ‘direitos humanos’ é negar o problema específico e particular do gênero. Seria uma forma de fingir que não foram as mulheres que, por séculos, foram excluídas. Seria uma forma de negar que o problema do gênero tem a mulher como alvo. Que o problema não é o fato de você ser um humano, mas especificamente uma fêmea humana. Por séculos, o mundo dividiu os seres em dois grupos e prosseguiu excluindo e oprimindo um desses grupos. É apenas justo que a solução para esse problema reconheça esse fato.” (THE GUARDIAN, 2014)48.

Para Ferreira (2007), o feminismo e o ser feminista conectam-se com a necessidade das rupturas de comportamento que têm levado à interdição das mulheres no seu direito à cidadania. Para tanto, presume-se que ser feminista é estar envolvida com a luta histórica das mulheres, a partir de atitudes de indignação e questionamento das práticas conservadoras, que não apenas excluem as mulheres dos mecanismos de decisão, mas também da construção da democracia.

Indubitavelmente, as feministas são formadas, não nascem feministas. Pois, assim como outros posicionamentos políticos, uma pessoa engaja-se nas políticas feministas por escolha e ação. Assim, quando as mulheres iniciam o processo de organização pela primeira vez, em grupos para conversar sobre questões relacionadas ao sexismo e à dominação masculina, resta nítido que as mulheres eram tão socializadas para crer nos pensamentos sexistas quanto os homens. O diferencial essencialmente danoso aqui, para as mulheres, é que são os homens os maiores beneficiários desse sexismo e, por isso, seriam estes a oferecer maior resistência em abrir mão dos privilégios do patriarcado. Daí a importância de que as mulheres consigam mudar a si mesmas, a partir do criar consciência como única forma de mudar as bases patriarcais dessa sociedade (HOOKS, 2019).

[...]mas não é só pela integração das mulheres à ordem patriarcal-racista- capitalista que o feminismo luta, mas pelo fim dessa ordem. Pelo movimento da mulher na direção de tornar-se Sujeito (LIMA, 2015)49.

Em síntese, o feminismo vem a ser um movimento político, que busca a transformação, a partir da disputa em todas as esferas da vida e do poder, com o

48 Artigo on line, sem paginação. 49 Artigo on line, sem paginação.

objetivo de levar à esfera pública as desigualdades de gênero. Logo, como ideologia, vem a constituir e disputar um projeto de mundo capaz de cingir as esferas filosóficas, sociológicas e econômicas (BORGES, 2017).

Destarte, Ferreira (2007) chama atenção à essencialidade da ação de perceber seu direito à vez e à voz, de perceber a ruptura do isolamento no mundo privado a que foram confinadas, a partir de passeatas e atos públicos, onde foram tecidas as novas formas de fazer política e de se tornar sujeito de sua própria história, desta vez, narrada pela voz das próprias mulheres. Assim,

[...]o feminismo foi ampliado a esfera pública, engendrando uma revolução aparentemente invisível nos anos setenta e meados dos anos oitenta, para se tornar visível no final dessa mesma década e na década seguinte, com as conquistas traduzidas em leis e instrumentos. Esse processo permitiu à mulher combater mais claramente a histórica dominação simbólica, que passou incluir novos signos de representação e diferenciação. (FERREIRA, 2007, p.52).

Podemos observar as conquistas do movimento feminista, a partir dos diálogos e mobilizações desenvolvidas em vários Estados. Assim, vivenciamos nos anos oitenta, o auge das intervenções sistemáticas do movimento, estimuladas desde 1960. Desse modo, teremos a implantação de políticas públicas e leis nas décadas de 80 e 90 para tratar das questões da mulher, como uma resposta do Estado que veio coroar as pressões e reinvindicações do movimento feminista (FERREIRA, 2007).

O feminismo reverbera-se e, nunca esteve tão capilarizado na sociedade brasileira, quanto agora. As mulheres, principalmente as mais jovens, estão cada vez mais conscientes de que podem ocupar qualquer lugar, e que está inserida ativamente na política é de fundamental importância para dar voz e sentido às suas necessidades e interesses (BIROLI, 2016).

Contudo, cabe resgatar, que este importante movimento não atuou em busca da autossuficiência econômica da mulher como principal objetivo. No entanto, foi percebido que, abordar a questão da discriminação da mulher no mercado de trabalho, pode vir a ser a plataforma feminista capaz de oferecer uma resposta coletiva e se tornar o campo comum capaz de conectar todas as mulheres (HOOKS, 2019).

Foi nessa lógica que, grupos privilegiados de mulheres engendraram esforços para que as trabalhadoras fossem melhor remuneradas e diminuísse o assédio no trabalho, o que teve impacto positiva na vida das mulheres e são considerados ganhos importantes para estas. Contudo, ao contrário das mulheres mais privilegiadas, as mulheres da massa ainda não ganharam esta igualdade de salários, o que demonstra como os interesses de classes suplantaram os esforços feministas para modificar o mercado de trabalho (HOOKS, 2019). Situação decorrente em grande parte porque:

[...]. Inicialmente, nos movimentos feministas, mulheres brancas com alto nível de educação e origem na classe trabalhadora eram mais visíveis do que mulheres negras de todas as classes. Elas eram minoria dentro do movimento, mas a voz da experiência era a delas. Elas conheciam melhor do que suas companheiras com privilégio de classe, de qualquer raça, os custos da resistência à dominação de raça, classe e gênero. [...]Dentro do movimento feminista, [...] várias mulheres brancas privilegiadas continuaram a agir como se o feminismo pertencesse a elas, como se elas estivessem no comando. (HOOKS, 2019, p.69).

E, foi a adesão dessas mulheres aos grupos feministas, que passaram a ser compostos por classes diversas, que lhe deram o pioneirismo em identificar a visão de sororidade: em que a luta contra o patriarcado não poderia se sobressair ao necessário confronto de classes (HOOKS, 2019).

Mas, apesar dos avanços conquistados, ao longo de décadas, pelo movimento feminista, quanto à busca por igualdade nos direitos e nos salários, combate à discriminação de gênero e assédio no trabalho, ainda assim, o discurso machista prevalece. Então, se por um lado, este venha a romantizar, oferecer flores e até poemas. Mesmo que seja capaz de tratar com gentiliza desde a garota de Ipanema, que enche o mundo de graça, até à mãe guerreira e trabalhadora de forma afável. Não se intimida em mostrar seu arraigado lado misógino e, quando julga necessário, “desce, literalmente, porrada no ‘resto’.“ (BURANI, 2015)50.

Assim, não é nem um pouco contraditório que o cara que postou de manhã uma imagem de uma rosa dedicada às mulheres maravilhosas de sua vida, que enchem seu mundo de beleza, amor, compreensão e cuecas limpas, à

noite valeu-se de panelas que ele não lavou para xingar uma figura pública de “vaca”, “gorda” e “vagabunda”. (BURANI, 2015)51

Esses comportamentos não são resultantes de decisões individuais, uma vez que nossa concepção com relação ao outro está permeada por avaliações, as quais serão o combustível fundamental para todo e qualquer afeto individual. Daí vem a importância de identificar a genealogia das hierarquias morais que comandam nossa sociedade, pois é imprescindível para a compreensão de cada indivíduo e, por conseguinte, do seu mundo social (SOUZA, 2018). Somente assim, seremos capazes de compreender mais um momento de vergonha brasileira, em que, grande parte da sociedade, desrespeita e desmerece a maior representante política deste país, durante seu pronunciamento em homenagem ao Dia Internacional das Mulheres, numa clara demonstração de que,

Não existe, portanto, contradição alguma em ofender publicamente uma senhora, mãe e avó, em pleno 8 de março com xingamentos que aprendemos lá na quarta série. Isto é, senhoras e senhores, só mais um dentre os infinitos exemplos do machismo, esse discurso-fenômeno tão arraigado em nosso cotidiano.(BURANI, 2015)52

Para Saffioti (1987) há a socialização da situação de superioridade e de inferioridade. O processo de construção da inferioridade tem correlações com o processo de construção da superioridade, pois assim como não existem os ricos se não existissem os pobres, não há como existir os superiores sem os inferiores. Dessa forma, a construção social da supremacia masculina alicerça-se na construção social da subordinação feminina. Para tanto, para a mulher tida como dócil, vai existir o homem macho. Para a mulher frágil, teremos o macho forte e para a mulher caracterizada como emotiva, surge o homem racional. É necessária uma verdadeira simbiose entre ambos para que a superioridade masculina atue. Logo, a mulher inferior vem a ser a outra face da moeda do macho superior. Visão que Foucault sintetiza quando afirma que,

51 Artigo on line, sem paginação. 52 Artigo on line, sem paginação.

[...]Na medida em que as relações de poder são uma relação desigual e relativamente estabilizada de forças, é evidente que isto implica um em cima e um em baixo, uma diferença de potencial. (FOUCAULT, 1979, p.250)

Foucault (1979) prossegue e afirma que, na realidade, não existe verdade fora do poder ou mesmo sem poder. Em cada sociedade, podemos identificar o seu regime de verdade, isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros, ou seja, os mecanismos que permitem distinguir o que é verdadeiro do falso. Em suma, têm o poder de definir o que deve funcionar como verdadeiro. Foi com base nessa dinâmica, que se deu a subordinação das mulheres aos homens de forma naturalizada e em várias sociedades.

No entanto, embora exista esta relação de dominação dos homens sobre as mulheres, essa é tecida além dessa realidade, pois há homens que dominam outros homens, há mulheres que dominam outras mulheres e também mulheres que dominam homens. Isto porque o patriarcado, que é o sistema de relações sociais que vai garantir a relação de subordinação da mulher ao homem, não compõe o único paradigma que estrutura a sociedade brasileira, por exemplo. Mas, de forma geral, a supremacia masculina perpassa todas as classes sociais, estando presente até mesmo na discriminação racial. Logo, na sociedade brasileira, a última posição, a base da pirâmide, é ocupada por mulheres negras e pobres (SAFFIOTI, 1987). As mais excluídas entre os excluídos.

À vista disso, distingue-se que não foi o capitalismo, como um complexo sistema de dominação-exploração mais jovem, que pariu o patriarcado e o racismo. Estes já existiam na Grécia e na Roma antigas, sociedades nas quais se funde o sistema feudal. A emergência do capitalismo trouxe a simbiose entre esses três sistemas de dominação-exploração. Assim, apenas é possível separá-los para facilitação de estudos, mas, na realidade concreta, eles são inseparáveis,