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“Uma gigantesca muralha gnáissica, com grande encaixe de xistos. Dentro dos xistos encaixam-se, por sua vez, delgadas camadas de quartzito e calcário”. Foi deste modo que o geografo José Carlos Rodrigues – à época, assistente da cadeira de Mineralogia, Petrografia e Geologia da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo – iniciou sua explanação sobre a constituição da Serra do Mar em sua porção presente na região da Baixada Santista, no capítulo nomeado “As bases geológicas”, da já citada coletânea A Baixada Santista: aspectos

geográficos. Organizada pelo Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo e

publicada em 1965, a coletânea foi um dos primeiros esforços científicos a se dedicar profundamente à compreensão dessa região do litoral paulista18.

O capítulo escrito por Rodrigues abre o primeiro volume da coletânea, nomeado “As bases físicas”. Nele, o autor preocupou-se em debater a composição geológica da Baixada Santista, definindo-a como muito simples, identificável a partir de dois termos: “o embasamento cristalino, com rochas duras, rêlevo quase sempre muito acidentado, e coberto por um manto residual devido ao intemperismo”; e “(...) a cobertura sedimentar cenozóica". Segundo o autor, a existência desses dois termos é responsável pela dualidade verificada no relevo da região: “(...) acidentado nos trechos correspondentes ao embasamento, plano nas áreas de sedimentação” 19

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A área sedimentar comporia os terrenos planos como praias, restingas e manguezais. Por sua vez, afloramentos no embasamento cristalino formariam morros (como o Monte Serrat, em Santos, e os afloramentos da Praia de Pitangueiras, no Guarujá) e ilhas (como a Ilha de Urubuqueçaba, em Santos). Parte do embasamento cristalino constituiria, ainda, a Serra do Mar.

O destaque dado por Rodrigues à Serra do Mar e a sua caracterização como pertencente ao embasamento cristalino chamam particular atenção no capítulo. Reforçando diversas vezes ao longo de seu texto tal pertencimento, o autor enfatizou a dureza de suas rochas, sua antiguidade e a onerosidade de seu desmonte, bem como a excessiva inclinação de suas escarpas e o caráter altamente acidentado de seu relevo. As vias de deslocamento possíveis nessa muralha – como o próprio autor nomeou a serra – seriam de caráter natural, cabendo ao homem apenas estudar suas condições para poder aplicar nelas seus meios de deslocamento.

18. RODRIGUES, José Carlos. “As bases geológicas”. In: A BAIXADA Santista: aspectos geográficos. Volume 1: As bases físicas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1965. p. 29.

Para explicar essas passagens naturais, o autor recorreu à teoria da erosão diferenciada de Almeida, segundo a qual “a erosão destruiu facilmente os xistos, neles se encaixando os vales dos rios Mogi e Cubatão, paralelos entre si, mas em sentidos opostos. (...). Já os gnaisses, mais resistentes à erosão, ficaram em relêvo, formando as saliências do terreno”: escarpas excessivamente inclinadas, com formato de pinças-de-caranguejo. A forma em pinças-de- caranguejo ofereceria quatro passagens naturais, sendo elas as vertentes direita e esquerda do Rio Cubatão e as vertentes direita e esquerda do Rio Mogi. Foi em acordo a essa lógica que se encaixaram os sistemas viários existentes à época para a travessia da Serra do Mar: o ramal Mairinque-Santos da Estrada de Ferro Sorocabana, na vertente direita do Rio Cubatão; a Via Anchieta, em sua vertente esquerda; e a estrada de Ferro Santos-Jundiaí, antiga São Paulo Railway, na vertente esquerda do Rio Mogi. As estradas que não se enquadrassem nesse padrão imposto pelo meio natural criariam grandes dificuldades aos seres humanos, como foi o caso do Caminho do Mar20

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a antiga rodovia São Paulo-Santos, o Caminho do Mar, em vez de ladear a serra por qualquer das vertentes dos dois vales, preferiu dirigir-se diretamente para baixo, bem na frente da abertura entre as duas ‘pinças do caranguejo’. Tem, por isso, rampas fortíssimas e curvas tão fechadas que caminhões modernos não conseguem vencê-las21.

É fundamental reconhecer que a argumentação de Rodrigues coaduna-se com narrativas consolidadas e correntes sobre a Baixada Santista, construídas a partir do reconhecimento da Serra do Mar como um elemento central à estruturação geográfica da região, especialmente por se configurar como uma barreira natural à ocupação do interior do território paulista.

Esse viés de análise sobre a relação da Serra do Mar com a Baixada Santista orienta grande parte dos capítulos da coletânea A Baixada Santista. Seu texto de abertura, de autoria de Aroldo de Azevedo, professor de geografia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP e coordenador geral da coletânea em questão, define a região da Baixada Santista como um “[...] conjunto perfeitamente individualizado” do litoral paulista, que vai de Bertioga a Mongaguá, sendo o traço de união entre o Litoral Norte, identificado pela proximidade das escarpas da Serra do Mar, e o Litoral Sul, identificado pelo distanciamento das escarpas da Serra do Mar do Atlântico à medida que se caminha para o sul e pela abertura das baixadas de Itanhaém e da Ribeira de Iguape. Dentre uma série de destaques dados na coletânea a essa subunidade litorânea, tais como a presença do maior porto do país, uma das mais importantes áreas industriais do estado e o conjunto insular de São Vicente, ocupa lugar central o

20. Idem, Ibidem. p. 29 e pp. 30-1. 21. Idem, Ibidem. p. 33.

reconhecimento de seu papel de “(...) grande ‘porta de entrada’ da Terra Paulista, (...) graças às excepcionais facilidades oferecidas no local, para a transposição da Serra do Mar, difícil barreira natural por si mesma”. Estabeleceu-se, pois, já no início da obra produzida pelo Departamento de Geografia da USP, a noção da Serra do Mar como barreira natural ao deslocamento humano22

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Ecos dessa definição inicial podem ser encontrados nos debates sobre a capacidade humana de transposição da serra. Se Rodrigues abordou superficialmente a questão, não sendo ela o foco do capítulo por ele escrito, o mesmo não ocorreu com Pasquale Petrone. Geógrafo, professor do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo, Petrone foi responsável por escrever a primeira parte do segundo volume da coletânea em questão, nomeado “Povoamento e população”. A primeira parte, intitulada “O povoamento antigo e a circulação” foi dividida em dois capítulos, ambos de autoria de Petrone. O primeiro deles, “Povoamento e caminhos nos século XVI e XVII”, trata justamente dos processos de transposição da Serra do Mar.

Discutindo nesse capítulo os eixos de deslocamento entre o Planalto Paulista e a Baixada Santista nos séculos XVI e XVII, Petrone considerou que “[...] o caminho para o interior definiu-se em função do problema representado pela travessia da Serra do Mar”. A Serra seria um empecilho natural à penetração, sendo fator central na colonização periférica verificada no início do XVI.

As considerações de Petrone estruturam-se em torno da suposta existência, no século XVI, de uma tendência dos europeus de se manterem na costa do território que viria a ser o Brasil, como modo de manter maior ligação com a metrópole e de estabelecer no Brasil uma colônia de exploração. A narrativa do autor considera, no entanto, que, não obstante o caráter periférico desse primeiro momento de colonização, logo os europeus se dirigiram para o planalto. Isso porque o povoamento europeu teria se orientado pelos quadros de povoamento

22. AZEVEDO, Aroldo de. “Apresentação”. In: A BAIXADA Santista: aspectos geográficos. Volume 1: As bases físicas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1965. pp. 7-8. É importante notar a existência de um movimento, por parte dos geógrafos da Universidade de São Paulo na década de 1960, de análise da Serra do Mar e de sua contribuição para a formação geográfica, social e histórica da Baixada Santista. Nesse sentido, o geógrafo Aziz Nacib Ab’Saber foi uma figura de grande importância: tendo se dedicado, desde a década de 1950, ao estudo da geomorfologia do estado de São Paulo e da constituição da Serra do Mar em diferentes porções do Brasil, Ab’Saber publicou, em 1962, o artigo “A Serra do Mar e o Litoral de Santos”, visando a estabelecer um estudo de maior consistência sobre a relação da geomorfologia da Serra do Mar e do litoral santista. Os estudos de Ab’Saber sobre a Serra do Mar se mantiveram ao longo das décadas seguintes e contribuíram significativamente para o processo de tombamento da Serra do Mar por ele coordenado em meados da década de 1980. Ver: AB’SABER, Azis Nacib. “A Serra do Mar e o Litoral de Santos”. In: Notícia

pré-colombianos. Assim sendo, para compreender a travessia da Serra do Mar seria preciso levar em conta que os Campos de Piratininga, no alto da serra, representavam o coração do povoamento dos grupos indígenas Guaianá; a Baixada Santista, por sua vez, estaria dentro da mesma área de subsistência, sendo habitada, no entanto, apenas em momentos específicos dentro de um quadro de deslocamento periódico23

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Na narrativa de Petrone, seguindo os quadros de povoamento dos Guaianá, os europeus logo tomariam os Campos de Piratininga como coração de seu povoamento. A Baixada Santista, no entanto, seria fundamental enquanto elo com a metrópole. Baixada Santista e Planalto Paulista seriam, assim, duas áreas conjugadas, devido às tendências de interiorização da colonização e de manutenção de relações com a metrópole; separadas, no entanto, pela barreira natural representada pela Serra do Mar, exigiram a manutenção do sistema de associação indígena: a Trilha dos Tupiniquim.

A Trilha dos Tupiniquim permitia que se escalasse o paredão da serra através do vale do rio Mogi. “Tratando-se de vale nìtidamente entalhado na escarpa, e por isso mesmo profundo, caracterizado por vertentes íngremes”, é provável que se tenha utilizado a margem direita do rio, menos exposta, visto que a área estava sujeita a ataques por parte dos Tupinambá. O traçado possuiria também passagens naturais obrigatórias, ou seja, Petrone defende que24

o caminho deveria acomodar-se às condições físicas, quer na Baixada, quer na Serra, quer no Planalto. Daí a importância da circulação por água no primeiro caso, o papel do vale que disseca o paredão da serra e a aspereza do caminho no segundo caso, assim as passagens em zonas acidentadas (...), os vales (...) e o revestimento vegetal favorável (campos) no terceiro caso.25

Em meados do século XVI uma antiga rota indígena foi reaberta pelos europeus, configurando um novo caminho, o Caminho do Padre José. Petrone considerou que, embora mais íngreme que o primeiro, esse caminho teria sido uma melhor via de transposição da serra

23. PETRONE, Pasquale. “Povoamento e caminhos nos séculos XVI e XVII”. In: A BAIXADA Santista: aspectos

geográficos. Volume 2: Povoamento e população, item III – O povoamento antigo e a circulação. São Paulo:

Editora da Universidade de São Paulo, 1965. p. 63. 24. Idem, Ibidem. p. 53.

25. Idem, Ibidem. p. 57. Em relação ao deslocamento na Baixada Santista nos séculos XVI e XVII, Petrone considerou que existiam diversos caminhos que levavam em direção à Serra do Mar, sendo a maior parte deles formada por vias fluviais. Chegando-se no Largo do Caneú, centro de convergência de cursos d’água, os caminhos se enfeixavam. Dali seguia-se pelo rio Cubatão acima, até chegar “a um pôrto fluvial na linha de contacto entre a baixada e a escarpa da Serra. Seria o pôrto de Piassaguera de Cima”. Idem, Ibidem. p. 52. Outro ponto interessante é que o autor identificou que o significado do topônimo Cubatão “está intimamente relacionado com o problema da circulação para o interior em face da presença vizinha, ao litoral, de uma escarpa. Esta é responsável pela mudança brusca, inevitável, do tipo de transporte utilizado: enquanto na baixada é sempre possível navegar os cursos d’água, ao atingir-se as vizinhanças do pé-de-serra é-se obrigado a iniciar um trajeto por terra” Idem, Ibidem. p. 53.

por ser menos longo e mais seguro, visto que se passava por um crescente aumento de ataques Tupinambá na Trilha dos Tupiniquim. O trânsito, apesar de importante, era bastante pequeno neste novo caminho: ele era quase inteiramente feito a pé, com pequena presença de animais, sendo as cargas transportadas por índios. No século XVII, “O insucesso nas tentativas de criar uma economia voltada para o exterior na marinha”, especialmente a impossibilidade de concorrência com o Nordeste na exportação de cana, “e a precoce presença do europeu no planalto contribuiram, para que se organizasse nos Campos de Piratininga (...) um sistema econômico voltado para si próprio”, ficando o caminho para a marinha ainda mais apagado. Segundo Petrone, a estrada adquiriu um sentido pouco convencional a partir de então: 26

Definido para vencer o obstáculo representado pela Serra do Mar, portanto com o objetivo de abrir uma porta nesse íngreme paredão, no seiscentismo [o Caminho do Padré José] como que se mimetizou a êle; pela sua aspereza, pelas dificuldades que ofereceria aos viandantes, pela vegetação densa que o encobriria em várias partes, somou-se à própria Serra na função de resguardar o planalto em face da marinha. Adquiriu, por isso mesmo, uma função originalíssima para uma estrada, a de dificultar a circulação, quando deveria facilitá-la27.

Destaca-se, no capítulo de autoria de Petrone, o fato de que, embora as limitações físicas representadas pela Serra do Mar sejam vistas como determinantes para o estabelecimento dos caminhos que a atravessariam, o autor não deixou de levar em conta o papel da ação humana sobre eles. Assim, os grupos indígenas desempenharam o papel fundamental de descobrir as passagens naturais que permitiram o deslocamento, enquanto os europeus ocuparam-se de se apropriar desses caminhos e de adequar seus usos conforme conviesse ao momento. Embora os caminhos se definam, em parte, por delimitações físicas naturais, fenômenos como os interesses econômicos e os quadros de povoamento são centrais na narrativa desse geógrafo. Em seu texto, a ação humana, aqui compreendida em suas dimensões materiais e simbólicas, se estabelece em uma via de mão dupla com o mundo natural, construindo-o, ao mesmo tempo em que é por ele construído28

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Os textos de Rodrigues e Petrone voltam-se para distintos aspectos geográficos da Baixada Santista. Se o primeiro está preocupado em debater a formação geológica dessa porção do litoral paulista e suas consequências para o desenvolvimento humano na região, o segundo atenta nos processos humanos de ocupação do território e, principalmente, nas vias

26. Idem, Ibidem. op. cit. p. 70. 27. Idem, Ibidem. op. cit. p. 71.

28. No caso em questão, as ações materiais podem ser identificadas na eleição das estradas de maior conveniência e no estabelecimento de normas de uso e manutenção. A dimensão simbólica da ação encontra- se, por exemplo, na consideração de Petrone de que o processo de interiorização e o enfrentamento à Serra do Mar estão ligados à visão do paraíso na nova terra. Assim, para os colonizadores, “a muralha serrana parecia resguardar o interior, um dos mais expressivos frutos (...) [dessa] motivação edênica”. Idem, Ibidem. p. 34.

de deslocamento ali estabelecidas, levando em conta as particularidades da geografia física da região. Apesar da expressiva diferença de foco, os dois autores tomam a Serra do Mar como um elemento fundamental para a compreensão da Baixada Santista, especialmente a partir de seu reconhecimento como uma barreira natural que dificultava a ligação entre essa subunidade litorânea e o Planalto Paulista. O paredão impunha um desafio aos grupos humanos. Enfrentá-lo era tarefa árdua, um duro encontro entre humanidade e natureza. A transposição da serra significaria, de certo modo, o triunfo do homem sobre a natureza, sua capacidade de se impor à paisagem natural: a constituição, portanto, de uma paisagem cultural marcada por uma relação de enfrentamento entre homem e natureza.