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objeto ↔ atividade ↔ sujeito,

Capítulo 3 – DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

3.1. Sentidos revelados pelas professoras sobre seu trabalho

3.1.1. Sessões reflexivas iniciais

Esta sessão revela os sentidos iniciais produzidos pela professora participante sobre sua compreensão dos papéis do professor e dos alunos nas práticas de sala de aula e do ensino-aprendizagem, tal como foi se revelando nas conversas sobre as práticas didáticas e nas discussões de textos teóricos em sua relação com essas práticas. A professora traz, então, para a sessão reflexiva, os sentidos que construiu ao longo de sua vida, com suas experiências anteriores de aprendizagem, sobre o papel do aluno (decorar/depósito) e do professor (transmissor de conhecimentos).

Várias citações mostram que, nesse início de trabalho uma concepção de ensino tradicional embasava o trabalho da professora Júlia, como por exemplo, a grande valorização dada à cópia. É importante observar que, como descrito na contextualização de Júlia, a cópia fez parte de sua vida escolar:

...Então, eu vou te falar, não, não, não é fácil, viu! Apesar que, ééé, como eu gosto do ensino fundamental, eu sou agitada, então, ‘Vamos

gente!Vamos! Vamos! Já fizeram?’ (risos), então, eles pegaram aquele ritmo de fazerem, eu estou dando a lição, eles já estão me entregando, né? Então

quer dizer, eles fazem rápido, ééé, então as crianças copiam, a maioria, copia

bem, mas entender que é que tá! Não são todos que compreendem (...) então

copiar eles copiam muito bem, o entendimento ..., sabe aquela, eu tenho ainda comigo na cabeça, ééé, a quantidade, então eu vou dando, eu quero dar é o alfabeto! (Sessão Reflexiva 03/11/2005)

Considera-se aqui uma abordagem do processo ensino- aprendizagem que se fundamenta numa prática educativa e na sua transmissão através dos anos de escolarização. O ensino, nessa concepção, está centrado no professor, portanto, volta-se para o que é externo ao aluno: o conteúdo (“(...) a quantidade, então eu vou dando (...)”). O aluno apenas executa prescrições que lhe são fixadas (“(...) eu vou dando a lição, eles já estão me entregando (...)”), portanto, é considerado como inserido num mundo que irá conhecer através das informações que lhe serão fornecidas e que se decidiu serem as mais importantes e úteis para ele. É um receptor passivo até que, repleto de informações necessárias, pode repeti-las a outros que ainda

não a possuam (“(...) como eu decorei tudo (...) imaginar eles assim também, dando aquela decorada para depois eles irem aprendendo, né?”). Para a professora, o papel do aluno é acumular e armazenar informações. Quando a professora diz “(...) eu quero dar é o alfabeto!”, ela sublinha, ainda mais a concepção de educação como um produto, já que os modelos a serem alcançados estão pré-estabelecidos: decorar o alfabeto, daí a ausência de ênfase no processo. Trata-se, pois, da transmissão de idéias selecionadas e organizadas logicamente pela professora.

Nesse quadro, a reprodução dos conteúdos feita pelo aluno, na maioria das vezes, de forma automática e sem variações, é considerada como um poderoso e suficiente indicador de que o produto está assegurado (“(...)então, as crianças copiam, a maioria, copia bem (...)”).

Sua didática se resume em “dar lição”, (“(...) eu estou dando a lição, eles já estão me entregando (...)”). Percebe-se aqui, a utilização freqüente, pela professora, do método expositivo, como forma de transmissão de conteúdo, concebendo assim, o magistério como a arte centrada na figura da professora, como aponta, também, o recorte abaixo:

...Então, ser professor é o ensinar mesmo né, não só o ensinar a ler e a escrever, é o ensinar praticamente tudo! Por que as nossas crianças do jeito que elas vem pra cá, elas vem sem saber muitas coisas...” (Sessão Reflexiva 03/11/2005)

Aqui pode-se notar que o trabalho intelectual do aluno será propriamente iniciado, propriamente, após a exposição da professora. A escola é vista, a partir do recorte acima, como local da apropriação do conhecimento, por meio da transmissão de conteúdos e confrontação com modelos e demonstrações. A ênfase, portanto, não é colocada no aluno, mas na atuação da professora (que precisa ensinar praticamente tudo), para que a aquisição do patrimônio cultural seja garantida. O aluno nada mais é do que um ser passivo, um receptáculo de conhecimentos escolhidos e elaborados por outros para que ele deles se aproprie (Freire, 1970).

Entretanto, no decorrer do trabalho de formação, Júlia começa a questionar sua atuação. Não apenas questiona, mas descreve a situação de sala de aula e toma a decisão de não mudar, como, por exemplo, na sessão reflexiva de 03/11/2005:

...Então quer dizer, o problema está comigo?(...) Sabe, fica aquela questão, com esta sala (...) não dá, não dá! Com esta sala eu não consigo! Então, sou eu que não consigo levar esta sala? De repente, de repente, eu

não consegui levar esta sala!?! Então, é complicado! (...), vou me desgastar tanto, vou gritar tanto que vou ficar sem voz! Então, acho que, às vezes, não vale a pena! Então, eu prefiro dar a lição no caderno mesmo, pelo menos eu

vou dar, eles vão fazer, faz uma atrás da outra, vai fazendo, fazendo, fazendo sabe? (Sessão Reflexiva 03/11/2005)

As contradições, que ocorrem no sistema de atividade, provocaram um movimento, criando um ciclo expansivo de aprendizagem (Engeström, 1999), que é uma contínua construção e resolução de tensões e contradições que envolvem o objeto, instrumento de mediação e os sentidos construídos pelos sujeitos envolvidos. A professora, ao falar sobre a possibilidade de trabalho com seu grupo/classe, pôde expressar sentidos (com esta sala não consigo trabalhar) e, apesar de se questionar, ela se justifica e, transfere para os alunos a responsabilidade pela indisciplina quando afirma: “(...) vou me desgastar tanto, vou gritar tanto que vou ficar sem voz!(...)”. Surgem, aqui, as desculpas no que se refere ao atendimento dos alunos quando se precisa individualizar, pois o restante do grupo/classe fica isolado quando se atende a um dos alunos particularmente. É difícil para a professora identificar as necessidades dos alunos, uma vez que usualmente quem fala é ela própria. Dessa forma, há a tendência a se tratar a todos igualmente, todos deverão seguir o mesmo ritmo de trabalho, repetir as mesmas coisas, adquirir, pois, os mesmos conhecimentos (“(...) Não vale a pena! Então, eu prefiro dar a lição no caderno mesmo,(...), eles vão fazer, faz uma atrás da outra(...)”). Assim, o problema passa a ser a indisciplina dos alunos, e não a concepção de ensino- aprendizagem revelada pela metodologia/ didática usada pela professora. Portanto, ao invés de fazer as crianças se responsabilizarem sobre a ação, Júlia quer transmitir conhecimentos e o modo como as crianças devem realizar

tal tarefa. Isso ocorre porque ela entende o processo de ensino-aprendizagem a partir de uma concepção tradicional, de que ela deve transmitir o conhecimento sem a participação e colaboração dos alunos.

Júlia percebeu sua limitação por não conseguir interagir com os alunos, chamar sua atenção e, conseqüentemente, poder ensinar-lhes algo.

Chama atenção, no discurso de Júlia, o número de negativas que ela emprega nesse curto recorte da sessão reflexiva, o que revela o quão difícil foi a aceitação de seu papel enquanto professora, o quanto o seu discurso é impeditivo e como ela percebeu toda a limitação no ambiente e nos alunos.

... com esta sala não dá, não dá ... ... com esta sala eu não consigo!...

... sou eu que não consigo levar esta sala?... ... não vale a pena!...

Júlia fala de suas dificuldades na sala de aula, causadas pela falta de atenção e indisciplina dos alunos. Seu discurso indica mágoa com as crianças que não mantém a disciplina.

A presença da modalização apreciativa (“... às vezes, não vale a pena!...”) reforça o discutido acima e indica a avaliação de Júlia sobre o que acontece em suas aulas.

De fato, muitos professores têm dificuldades de refletir sobre a sua prática, o que possibilitaria transformar a sua ação, em função das necessidades de seus alunos, conforme discutido por Magalhães (2002) e outros formadores de professores. Os professores, em geral, transformam-se em meros aplicadores de técnicas, sem levar em consideração o contexto e as experiências de seus alunos.

No início do trabalho de pesquisa, a professora Júlia subestimava a capacidade dos alunos em aprender sem a utilização da cópia como instrumento de ensino-aprendizagem:

...É, vamos ver se a minha sala consegue, né?”

“Ah, porque eles não se prendem muito aaa, não se prendem muito

a nada. É aquela meia dúzia que se interessa e muitos ficam dispersos,

conversando, brincando, né? (Sessão Reflexiva 23/11/2005)

Mais uma vez, os excertos revelam que a professora entende o ensino-aprendizagem como instrumento-para-resultado que, segundo Newman e Holzmam (1993:51), marxistas de todas as tendências reconhecem que o uso do instrumento tem impacto sobre as categorias de cognição. Instrumentos-para-resultados tanto são análogos a (bem como produtores de) equipamentos cognitivos quanto os produz (por exemplo, conceitos, idéias, crenças, atitudes, emoções, intenções, pensamento e linguagem) que são completos e utilizáveis para um fim particular. Portanto, Júlia cria uma zona de desenvolvimento para resultado e não uma zona revolucionária que, segundo os mesmos autores (1993:55), tem por objetivo a transformação de totalidades. Assim, pude concluir que a professora não visualiza a ZDP como instrumento- e-resultado.