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Trabalho Seminal – o negro e o rádio de São Paulo

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CAPÍTULO II – Antropologia da Comunicação no Brasil

2. Trabalho Seminal – o negro e o rádio de São Paulo

Embora, a disciplina Antropologia da Comunicação tenha sido instituída oficialmente, na Universidade de São Paulo, em 1972, pelo Professor Dr. Egon

Schaden, o primeiro trabalho que inaugura o campo de estudo em ambiente acadêmico, fora produzido seis anos antes. “Cor, Profissão e Mobilidade: o negro e o rádio de São Paulo”, resultado da tese de doutoramento em Antropologia, defendida por João Baptista Borges Pereira, na FFLCH-USP, trouxe inúmeras contribuições à

Antropologia, quando observa a população negra na cidade de São Paulo, e igualmente para as Ciências da Comunicação, pois analisa o negro dentro da estrutura radiofônica em um momento de extremas modificações nas emissoras de rádio.

Resultado da tese de doutoramento do Professor João Baptista Borges Pereira, defendida em 1966, “Cor, Profissão e Mobilidade: o negro e o rádio de São Paulo”, constitui-se obra pioneira na área de Antropologia da Comunicação no Brasil. Até hoje, inclusive, o livro é um referencial para os estudiosos da área.

A vontade de realizar um estudo que englobasse a temática referente às relações raciais surgiu a partir de um trabalho grupal realizado por Borges Pereira, e outros colegas da então FFCL-USP: “Fiquei muito disposto a fazer um trabalho sobre relações raciais, quando Octávio Ianni, Ruth Cardoso, Fernando Henrique Cardoso e eu fizemos um trabalho de campo sobre os negros nas áreas meridionais do país”. (Pereira, 2008)

Relatar a questão da inserção do cidadão negro na estrutura radiofônica, segundo Borges Pereira, era algo inédito. Existiam trabalhos referentes ao futebol, mas nada sobre a questão racial no rádio.

A dissertação de mestrado de Borges Pereira tinha como temática a Sociologia da Educação. O orientador dessa pesquisa anterior tinha sido o Professor Dr. Oracy Nogueira, no entanto, para o doutorado Borges Pereira deveria escolher um professor que trabalhasse com assuntos étnicos. “O meu orientador, de acordo com o meu projeto de pesquisa, deveria ser o Professor Florestan Fernandes, porque ele realmente

trabalhava com a questão das relações raciais. O Florestan coordenava essa linha de pesquisa na época”. (Pereira, 2008)

Porém, para pesquisar o assunto que desejava, Borges Pereira enfrentou alguns obstáculos, como por exemplo, a não aceitação do projeto pelo suposto futuro orientador, Florestan Fernandes:

Levei meu projeto sobre o negro no rádio para o Florestan Fernandes, e ele disse: “Eu não quero mais trabalhar com isso. Se você quiser fazer o doutorado comigo, você terá que estudar a comunidade do café”. Eu fiquei desapontado, porque o Florestan foi um grande “scholar”. Eu respondi que eu não gostava desse assunto. E o Florestan replicou: “Não, tem que fazer isso, porque o Fernando (Henrique Cardoso) está fazendo um trabalho sobre o capital acumulativo da indústria do café de São Paulo, e precisa ter um trabalho sobre a proposta que eu estou indicando a você. E você é bom para isso”. Então disse que tudo bem. Aí eu fui até Xavantes, uma

cidadezinha que fica próxima a Ourinhos (Estado de São Paulo), e que as ruas terminam em fileiras de café. Fiz o que precisava, voltei e mostrei o novo projeto ao Florestan. Ele olhou e comentou: “Ah, era isso mesmo o que eu queria”. Quando ele falou isso, eu tive uma soma de irritação, rasguei o projeto e disse: “Tchau, professor”. Ele se virou e retrucou: “Você está louco?”, e eu respondi: “Eu não quero fazer isso, tomei consciência de que eu não quero fazer isso”. E ele, nervoso: “Eu também não quero orientar!”. Desci as escadas, e encontrei o Professor Schaden. Perguntei ao Schaden se ele aceitava me orientar, e ele contestou: “Se você me ajudar, eu te oriento”. Na verdade, quem me orientou efetivamente (Egon Schaden foi um grande crítico) foi o Oracy Nogueira, meu orientador no mestrado. Entretanto, o Schaden também me apoiou muito. No capítulo derradeiro, Schaden foi decisivo nas críticas. (Pereira, 2008)

Participaram da banca examinadora da tese de João Baptista Borges Pereira, os professores: Egon Schaden, Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Oracy Nogueira e Ruy de Andrada Coelho.

Um ano após a defesa, “Cor, Profissão e Mobilidade: o negro e o rádio de São Paulo” se tornou livro, e é publicado pela Editora da Universidade de São Paulo. Na apresentação da obra, Egon Schaden explica que tanto através do futebol quanto por meio do rádio, o indivíduo negro encontra caminhos facilitados para buscar a ascensão social. Por essa justificativa, Borges Pereira toma o rádio como objeto de estudo, e estuda não apenas a participação do negro nas emissoras radiofônicas, mas também a estrutura do rádio. Com isso, identifica um período de transição, gerado,

principalmente, pelo advento da televisão no país. E, acima de tudo, constata o

fenômeno denominado “Macacas de Auditório”, conhecido e comentado pelos ouvintes, calouros e profissionais do rádio, mas nunca citado em uma pesquisa de cunho

científico.

Dividido em duas partes: Estrutura e Dinâmica (nessa parte Borges Pereira analisa a estrutura radiofônica, a contribuição do rádio para a cultura paulista, o rádio educativo e o rádio publicitário, as ocupações profissionais nas emissoras) e Cor, Estrutura e Dinâmica (Borges Pereira descreve a inserção do cidadão negro no contexto radiofônico, a música, os programas de auditório, os calouros, os ouvintes, o negro e a programação no rádio, e “as macacas de auditório”), “Cor, Profissão e Mobilidade: o negro e o rádio de São Paulo”44, constitui-se um dos primeiros estudos sobre o rádio feitos no Brasil. O antropólogo relata que o rádio jamais tinha sido estudado com rigor. “N inguém, antes, tinha se preocupado com o rádio. Era uma espécie de lixo da cultura”. (Pereira, 2008)

Em artigo escrito para a Revista USP (1989, p. 62-63)45, Borges Pereira descreve que o seu trabalho chegou até a ser alvo de críticas, por estar “fora de moda”:

Lembro-me como se fosse hoje. A década de 60 chegava ao fim. Depois de uma reunião científica no Rio de Janeiro, voltávamos a São Paulo, a bordo de um avião. Sentados lado a lado, eu e meu colega e amigo Carlos Guilherme Motta. Dentro de alguns dias, eu deveria estar perante uma banca examinadora de notáveis professores para defender a

44 A síntese da obra estará disponível nos “Anexos” desta dissertação. 45

Disponível em: PEREIRA, João Baptista Borges. O negro e o rádio: um depoimento. Revista USP – Coordenadoria de Comunicação Social, São Paulo: USP, no. 1, p. 62-64, mar-mai 1989.

minha tese de doutorado, a primeira desde que, em 1936, a cadeira de Antropologia fora criada, na USP, pelo saudoso Professor Emílio Willems. A certa altura de nossa conversa, o historiador me surpreendeu (e até me preocupou) com uma observação textual, que ainda guardo inteira na memória: “Você é muito corajosos ao se doutorar com tema duplamente fora de moda: o negro e o rádio”. Carlos Guilherme acertara em cheio na sua observação, exceto na expressão “corajoso.” Era algo mais do que a coragem que me levava a estudar um tema que se poderia rotular hoje, modernamente, de Relações Raciais e Comunicação Social no Brasil.

Atualmente, Borges Pereira (2008), por mais que não se considere um antropólogo da Comunicação, sente-se orgulhoso de seu trabalho e da repercussão criada, apesar de demonstrar muita humildade quando fala de suas obras: “Eu entrei no projeto, talvez, por ingenuidade, por prazer de fazer. E se torno u um referencial, pois é incrível o número de pessoas que me procuram por esse trabalho, é uma penetração inacreditável”.

Do ponto de vista teórico- metodológico, Borges Pereira explica que

eu queria juntar com o “Cor, Profissão e Mobilidade: o negro e o rádio de São Paulo”, a visão sociológica mais próxima da “Escola Antropológica Inglesa” e a “Antropologia da Cultura”. Então, o único jeito era pegar uma instituição cuja estrutura apresentasse algum grau de complexidade. E eu peguei a estrutura radiofônica, que na época era muito complexa. Meu trabalho pegou um contexto micro-estruturado. Fechei e analisei. (Pereira, 2008)

De acordo com Marques de Melo (1972, p. 18-19), “Cor, Profissão e

Mobilidade: o negro e o rádio de São Paulo”, constitui-se em uma significativa fonte de referência não apenas para os antropólogos, mas essencialmente para os comunicólogos:

Do ponto de vista da Pesquisa em Comunicação o trabalho de João Baptista Borges Pereira representa o primeiro estudo, em bases científicas no país sobre o Comunicador, no caso de uma entidade codificadora e transmissora de mensagens para o grande público, o Rádio. [...] Trata-se de um livro de interesse para os estudiosos das Ciências Sociais, especialmente das Ciências da Comunicação. Não obstante a linguagem técnica, marcada pelo jargão específico da sociologia, antropologia e psicologia, o livro de João Baptista Borges Pereira interessa também ao leitor mediano, preocupado com os problemas de relações interétnicas e de ajustamento social.

2.2.

Macacas de Auditório:

O rádio, como constatou Borges Pereira em “Cor, Profissão e Mobilidade: o negro e o rádio de São Paulo”, era uma forma de ascensão social para os cidadãos considerados marginalizados ou minorias pela elite constituinte da sociedade brasileira.

No conhecido “Período de Ouro do Rádio”, entre as décadas de 40 e 50, do século passado, os programas de auditório eram muito procurados tanto pelos calouros que buscavam uma chance de realização pessoal e profissional, como pelas pessoas que simplesmente assistiam as apresentações “in loco”.

O homem e/ou a mulher negra via no rádio a ascensão social e crescimento financeiro. O fato de estar próximo ao artista, sentado em um auditório, já era razão para estar em outra “realidade”, considerada por esses indivíduos mais justa e prestigiosa.

Para os profissionais da estrutura radiofônica, as moças mulatas ou negras que freqüentavam as emissoras de rádio eram chamadas pelo termo pejorativo de “macacas de auditório”. Jargão bastante utilizado pelos radialistas, e de conhecimento dos

ouvintes e participantes dos programas.

Entretanto, a expressão jamais tinha sido foco de observação, até a tese de Borges Pereira.

O trabalho também identificou as “macacas de auditório”. Naquela época, o pessoal que participava do auditório não era pago para fazer isso. O rádio era uma opção de lazer. O termo “macacas de auditório” era muito utilizado pelos próprios animadores. Aí eu simplesmente relatei o fenômeno no meu trabalho. Mas no fundo, posso afirmar, que a expressão tem um componente racista. (Pereira, 2008)

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