• Nenhum resultado encontrado

Uma discussão antropológica: Vigílias e Guerreiros de Oração como

APÊNDICE I O crucifixo que jorrou sangue

CAPÍTULO 3 – AS VIGÍLIAS DE ORAÇÃO NOS MONTES DOS GUERREIROS DE

3.7 Uma discussão antropológica: Vigílias e Guerreiros de Oração como

Inicialmente a interpretação das culturas e a compreensão das sociedades eram sempre consideradas dentro de um plano estático, no qual a mudança social era considerada ou uma aculturação ou uma falência social. Esse período era um momento em que a sociologia se impunha por garantir sua significância científica, quando o positivismo sobre o funcionamento da sociedade era prioridade acadêmica. No lado da antropologia, vivia-se uma tendência que procurava apreender a cultura como algo estável e homogêneo, de sistemas integrados, identidades rígidas e fronteiras estabelecidas (STEIL, 2009).

Essa discussão da objetividade da sociedade é seguida por Durkheim especialmente em As regras do método sociológico. A sociedade é experimentada como dada “lá fora”, estranha à consciência subjetiva e não controlável por esta última, explica Berger (1985). Durkheim (1989) insistiu na dimensão imperativa e normativa, no sentido que o sagrado estaria no centro de um sistema de práticas positivas e negativas, funcionando como um regulador do agir social dos membros e como um integrador da sociedade. Nesse sentido, as questões sobre o “não funcionamento” das sociedades eram interpretadas ao que ela não poderia ser, isto é, a uma anormalidade, incorrendo à exclusão das dinamicidades processuais, das contradições e tensões a ela inerentes. Os conflitos por muito tempo foram percebidos dentro de uma estrutura social estática e imutável, e, por isso, era adotada uma elaboração abstrata de um modelo normativo que explicasse o comportamento dos indivíduos em sociedade, não havendo espaço para sujeitos da prática social, mas somente às regras instituídas e moralmente aceitas em sociedade.

No que se refere aos conflitos, eram percebidos a partir de uma estrutura social de luta de classes, conforme um olhar marxiano, corroborando para um modelo estruturalista e materialista que explicasse o comportamento dos indivíduos em sociedade. Eram, portanto, as regras e as estruturas da sociedade os responsáveis pelas ações individuais. No que tange aos trabalhos de interpretação do catolicismo, por exemplo, Steil discorre em seu texto A cultura já não é a mesma (2009) o fato de se tomar as estruturas como sistemas fechados ou totalidades demarcadas por fronteiras claras, que refletem divisões estruturais de classe social ou de posição institucional.

Coube a Weber (2004) atribuir um protagonismo aos indivíduos no que tange às mudanças sociais. No aspecto da religião, mostrou o influxo do processo de

racionalização religiosa no surgimento de comportamentos inovadores, em seu trabalho A ética protestante e o espírito do capitalismo.

Para Weber o indivíduo passou a racionalizar sua condição social tomando os parâmetros religiosos. A racionalização da religião é o fato dela se tornar uma religião da palavra, da ética, que propicia um código de conduta. Weber (1971) nota que as religiões universais originaram-se da pregação de um profeta ou de uma figura carismática, isto é, uma pessoa dotada de um dom de graça ao redor do qual se reuniam os discípulos. O profeta, seja Cristo, Buda ou Maomé, partilha um ensinamento ético e religioso que frequentemente se coloca em aberto contraste com a tradição, e que exige obediência por causa do carisma que emana do próprio profeta.

Uma vez que a pessoa é reconhecida pelos seguidores como portadora de carisma, cria-se uma situação que representa a antítese de tudo aquilo que é cotidiano, tradicional, regulamentado. O (portador) do carisma, nascido de algo extraordinário e da dedicação ao heroísmo, seja qual for o conteúdo que ele possua, provoca a excitação comum de um grupo de homens. Em suas manifestações mais intensas, demonstra ser o poder revolucionário especificamente criador da história, capaz de derrubar a regra e a tradição. Outras características como a falta de regras, o caráter irracional, o alheamento a considerações econômicas e a oratória, também estão presentes no carisma segundo Weber (1991).

Para este importante autor, a religião pode ser tanto a legitimação do status quo como pode produzir consequências revolucionárias. Pode também ter efeitos tanto de reforço e justificação dos ordenamentos sociais existentes, como de crítica e subversão destes últimos.

Por esses motivos a noção de carisma teve e tem neste trabalho uma aplicação pertinente no campo sociológico para a interpretação de fenômenos como o surgimento de novos movimentos religiosos na sociedade da tecnociência, como o dos Guerreiros de Oração em Sapucaia.

Simmel aproxima-se teoricamente de Weber. Naquele período, inaugurava- se a Sociedade Alemã e o enfoque estaria sobre o indivíduo. O pensamento de Simmel foi de que no século XVIII surgira a idéia de um indivíduo “uno”, que faria parte de uma unidade figurada na Declaração dos Direitos Humanos. Esse indivíduo seria o que reinvidicaria por direitos iguais. Sendo assim, a condição do indivíduo no século XIX já seria cada vez mais de um espaço reservado para si, para sua intimidade e

privacidade, através do uso dos espelhos, do quarto individual, dos romances, que provocaria o caráter único ou da unicidade.

Weber e Simmel cresceram no século XX e durante esse período a explosão demográfica já era intensa juntamente com o culto a si. Aqui está a característica do homem moderno. A atitude individual nova que surge na metrópole é a condição do indivíduo que se depara com o crescimento da cidade e uma série de informações novas. Nesse processo o indivíduo busca uma preservação de si como alguém que não se deixa impressionar muito com o que se vê. A vida na metrópole é uma vida muito intensa, cheia de acontecimentos. O indivíduo reivindica para si uma vida mental e leva essa questão para a religião.

Simmel (2011) vai se debruçar na idéia da religiosidade como categoria. Em outras palavras ele vai dizer que o indivíduo tem em si uma busca pelo transcendente, num esforço por fazer parte de uma unidade. Ele vai reivindicar, como característica inerente a ele, uma religiosidade própria que vai, portanto, fazer a religião. Para Simmel, a religiosidade vem em primeiro lugar, depois a religião. Faz parte da vida mental do indivíduo moderno a busca pelo cultivo de si pelas artes, pelo erótico e pela religiosidade.

Com a prevalência da noção de indivíduo dentro dos processos sociais contemporâneos, bem como na temática da religião, as emergentes contradições no mundo social passaram a ser analisadas de novas formas tanto na Sociologia quanto Antropologia.

O que se pôde perceber, conforme discorre Carlos Steil, é que os contextos sociais mudaram-se, “[...] mas também os instrumentos de interpretação e o próprio lugar do intérprete diante da realidade” (2009, p. 152).

No que tange à antropologia, anteriormente, por exemplo, as culturas ou tradições eram vistas como totalidades integradas e hoje aparecem como plurais (STEIL, 2009). Estudos atuais sobre a África mostram que as “tribos” (os Nuer, os Azande, os Bantu, os Ndembu etc) são em grande medida uma invenção elaborada a partir do conceito de cultura que esses mesmos antropólogos operavam.

De modo que, onde os estrutural-funcionalistas viam homogeneidade, identidasdes, sistema integrado (de parentesco, de crenças e rituais, de significados etc.), torna-se possível, hoje, perceber diferenças que sempre estiveram lá como liminaridades (grigo nosso) internas, que foram externalizadas para que essas mesmas tribos pudessem se

apresentar como unidades temporais (históricas), étnicas e espaciais homogêneas (STEIL, 2009, 154-155).

Steil prossegue nesses termos:

A literatura recente sobre fronteiras, híbridos, interculturalidade tem nos levado para muito além do conceito de cultura como algo estável e homogêneo, ao mesmo tempo em que nos tem aberto novos horizontes teóricos e de pesquisa. As novas abordagens da cultura têm destacado os aspectos processuais, ativos, inventivos da cultura e da tradição. Desde essa perspectiva, a cultura não pode mais ser tomada como algo que persiste ou que se transmite mecanicamente de uma geração para a seguinte (2009, p. 155).

Sobre o catolicismo, elucida:

Ao se pensar a cultura desde este ponto de vista, as fronteiras entre catolicismo popular tradicional e catolicismo oficial, enquanto subsistemas culturais homogêneos e integrados internamente, perdem sua importância. Passamos, então, a ver o catolicismo como prática dialógica e interativa, onde se fazem presentes múltiplas vozes que competem e negociam entre si, num processo de enunciação e performance constante. Essa perspectiva não nega nem o conflito nem as relações de poder no interior das culturas, mas os redefine, uma vez que em qualquer recorte que se faça da experiência ou da prática vão emergir vozes dissidentes e leituras desafiantes (2009, p. 155).

O Prof. Faustino Teixeira, da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora) em seu texto Faces do catolicismo brasileiro contemporâneo discorre que muitos autores têm sublinhado que a RCC tem exercido um papel de ambivalência no interior da Igreja Católica, no sentido de que de um lado afirma-se identitariamente pela doutrina tradicional, mas de outro, favorece a uma dinâmica espiritual que acaba corroborando para certa autonomia e transversalidade (TEIXEIRA; MENEZES, 2009). A assertiva não pretende demonstrar que a RCC seja o único ou um dos grandes “problemas” da Igreja. Teixeira, está apenas desnaturalizando a questão e apontando para o que seria o cerne do contexto religioso católico, que é de um catolicismo com vários outros estilos, ou seja, está-se a tratar de um pluralismo religioso. A socióloga do Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (CERIS) Sílvia Fernandes (2004) sugere o termo intra-pluralismo92 religioso.

92 Intra-pluralismo é a existência de modos plurais de pertença a uma mesma instituição (FERNANDES, 2004, p. 50).

Em outras palavras, a principal questão de pano de fundo sobre a postura da Igreja com relação a RCC e aos outros movimentos, está baseada no fato de que a pluralidade é um traço constitutivo do catolicismo brasileiro, inserido na modernidade e num mundo de múltiplas alternativas (FERNANDES, 2004). A RCC é um dos muitos outros sinais contemporâneos do pluralismo religioso e, expecificamente, do pluralismo intra-religioso no catolicismo.

A plasticidade dos modos de ser católico no Brasil é expressão de uma genuidade brasileira, caracterizada pela grande ampliação das possibilidades de comunicação com o sagrado ou com o “outro mundo”. [...] Não dá para situar o catolicismo brasileiro num quadro de homogeneidade. Na verdade, existem muitos “estilos culturais de ‘ser católico’”, como vêm mostrando os estudiosos que se debruçam sobre esse fenômeno. São malhas diversificadas de um catolicismo, ou poder-se-ia mesmo falar em catolicismos” (TEIXEIRA; MENEZES, 2009, p. 19).

A questão do pluralismo religioso constitui-se um dos principais desafios para as Igrejas, uma vez que a liberdade religiosa é seu principal vetor, afirma Sílvia Fernandes (2004). Dito de outra maneira, o pluralismo interpela a Igreja porque a obriga ao descentramento por conta das reinterpretações polifônicas ou de múltiplas vozes da tradição feitas pelos próprios fiéis, que competem e negociam entre si, num processo de enunciação e performance constante, como apontado acima por Steil (2009).

Essas reinterpretações são facilitadas pela velocidade e expansão da comunicação nos dias atuais, pelo avanço tecno-científico e pela insatisfação com as formas históricas de organização do sistema de crenças (FERNANDES, 2004, p. 50).

É importante destacar que nesse contexto torna-se mais claro e, portanto, possível compreender-se as situaçãoes ou estados liminaridades internos no catolicismo. Tais liminaridades são externalizadas através dessas mesmas tribos (no caso desta pesquisa, os Guerreiros de Oração) para que possam se apresentar como unidades temporais/históricas, com suas próprias especificidades.

Os Guerreiros de Oração são católicos ativos e inventivos da cultura e da tradição religiosa, mas às suas maneiras, por isso, nas fronteiras, na liminaridade,

instáveis, híbridos e em processo, e não como algo que persiste ou que se transmite mecanicamente de uma geração à outra.