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72 Valsa com Bashir: Subjetividade, Memória e Geopolítica no Documentário Contemporâneo

Também foi com fins de ativismo político que surgiu o Leeds Animation Workshop, uma cooperativa de amigas, ainda hoje atividade7, que especializou-se em tratar de questões sociais sob o ponto de vista feminino.

Os temas vão da necessidade de assistência especializada às crianças na primeira infância, como no filme de estreia do grupo, Who Needs Nurseries? We Do (UK, 1978, 11 min), até a relação entre os estereótipos midi- áticos e a violência contra a mulher em Give Us a Smile (UK, 1983, 13 min).

A iniciativa do grupo de Leeds, reintroduzindo a animação na linguagem não-ficcional com o objetivo de criar obras de utilidade pública, sobretudo na área da saúde, ganhou seguidores que acabaram por iniciar o desenvolvimento da tendência que alcançaria o auge nos anos 2000, sobretudo pelo reconhecimento interna- cional de Valsa com Bashir: o uso da animação para representar a subjetividade - as especificidades daquilo que passa na cabeça dos personagens - no documentário.

Foi para tratar de temas médicos, sobretudo problemas neurológicos e psiquiátricos, que o documen- tário começou a passear imageticamente, utilizando-se da animação, nas memórias, pensamentos e emo- ções dos personagens levados à tela. Experiência pioneira nesse sentido é o filme A is for Autism (UK, 1992, 11 min), de Tim Webb.

Após passar um ano convivendo com cinco autistas britânicos de diferentes idades, bem como com suas famílias, Webb desenvolveu um filme colaborativo sob a supervisão de especialistas da área de saúde. Cada um dos autistas fez desenhos acerca de seus pensamentos e sentimentos. Webb animou as ilustrações e mesclou-as com imagens capturadas referentes a algumas das obsessões dos doentes, como os movimentos de discos LP nas vitrolas e o abrir e fechar de portas e torneiras.

Sem seguir uma linearidade e misturando os depoimentos dos cinco personagens, cobertos por suas próprias ilustrações “em vida”, Webb procura reproduzir as singularidades daquilo que se passa na cabeça dos doentes, suas emoções e visões de mundo. Seu sentimento de não-pertencimento junto a outras crianças, o isolamento na escola, a incompreensão daquilo que diziam as professoras, a dificuldade de concentração, a dispersão, a não comunicabilidade, os pensamentos obsessivos – como um deles que adorava números e aparece em toda a narrativa fazendo uma contagem que chega até mil.

A estratégia de Webb leva a obra a ter um tom completamente humanista, muito mais preocupado em mostrar as especificidades da vida de um autista, sobre o seu próprio ponto de vista, do que em fazer um tra- tado médico sobre o assunto. Alcança-se o pensamento dessas pessoas a partir da animação da subjetividade expressa por eles mesmos em seus desenhos. “O fato autismo não ser uma ‘coisa’ mas sim um espectro de desordens (da branda a severa) faz da subjetividade ‘individual’ expressa na sequência de animações (...) um modo altamente apropriado de representá-la”8 (Ward, 2005: 93).

A partir daí, surgiram outras obras no Reino Unido utilizando o híbrido entre animação e documentário para representar o pensamento de pessoas com problemas médicos ou limitações físicas. Em Feeling Space (UK, 1999, 10 min), o cineasta escocês Iain Piercy conta a história de dois cegos de nascença em suas jornadas di- árias na cidade de Glasgow. A animação é utilizada para reproduzir as sensações dos cegos no espaço urbano, como eles pensam ser os prédios e as paisagens da capital escocesa, como eles se localizam espacialmente. “A

7 www.leedsanimation.org.uk

8 “The fact that autism is no tone ‘thing’ but rather is a spectrum of disorders (from mild to severe) makes the subjectivised, ‘indivi- dual’ strands of different animation technique (…) a highly appropriate mode for representing it.”

animação funciona como uma maneira de visualizar (ironicamente) algo que, de outra maneira, estaria restrito simplesmente ao nível verbal”9 (Ward, 2005: 92).

Um trabalho mais ousado neste sentido é o do cineasta Andy Glinne que, em 2003, produziu a série de documentários animados Animated Minds (UK, 2003, seis episódios de aproximadamente três minutos cada). A partir do depoimento de portadores de doenças psiquiátricas – síndrome do pânico, esquizofrenia, obsessão- -compulsiva, depressão maníaca, psicose, anorexia, bipolaridade -, Glynne tenta reproduzir o universo mental dessas pessoas, utilizando elementos da realidade, como manchetes de jornal e cenas live action, fundidos de maneira fragmentária e caótica com sequências abstratas e nonsense. No caso da esquizofrenia, usa vozes para dar vida aos pensamentos do personagem que diz ser orientado pela sua própria mente a se automutilar.

Assim, procura alcançar a angústia, a opressão e o sofrimento dessas pessoas, que muitas vezes não com- preendem e não conseguem explicar os males que as afligem.

Obviamente, se poderia fazer um documentário live-action sobre essas aflições e incluir o testemunho de pessoas envolvidas. Mas é o uso da animação que é interessante neste caso, já que consegue perfeitamente traçar os contornos de processos mentais tão instá- veis e rapidamente condensáveis que estão fora de alcance para a imagem live-action. A animação é o modo perfeito de comunicar que existem mais coisas na nossa experiência coletiva do que aquilo que os olhos podem ver.10 (Ward, 2005: 91)

Saindo da seara dos problemas físicos e mentais, a animação também passou a ser usada para representar as memórias, reminiscências e experiências, especialmente as traumáticas, de personagens retratados pela não- -ficção. Uma das experiências mais marcantes nesse sentido foi o filme Ryan (Canadá, 2004, 13 min), de Chris Landreth, laureado com o Oscar de melhor animação em curta-metragem naquele ano. Landreth criou uma narrativa hiper estilizada a partir de técnicas de animação 3-D – que ele batizou de “realismo psicológico” –

9 “The animations functions as a way to visualise (ironically enough) something that would otherwise remain at the purely verbal level.” 10 Obviously, one could make a live-action documentary about this affliction and include testimony of the person involved. But it is the use of animation that is interesting, as it can perfectly trace the contours of such a shifting and rapidly condensed thought process in a way that is out of reach for live action. Animation is the perfect way in which to communicate that there is more to our collective experience of things than meets the eye.

Landreth utiliza a animação para representar a realidade intangível de Ryan Larkin em Ryan (2004).

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