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50 Valsa com Bashir: Subjetividade, Memória e Geopolítica no Documentário Contemporâneo

Um documentário parece o quê? A maioria das pessoas carrega dentro de si uma noção tosca do que é o documentário. Para muitos, não é um tipo de filme legal. Um documentário ‘normal’ geralmente significa um filme com uma sonora narração ‘voz de Deus’, argumentos analíticos em vez de uma história com personagens, sequências de especialistas fermentados por algumas entrevistas de populares na rua, estoque de imagens que ilustram o ponto de vista do narrador (...), talvez uma pe- quena animação educacional e musica conceituada. Uma combinação de elementos quase sempre lembrada de forma pouco afetuosa. ‘Era muito interessante, não como um documentário normal’, é uma res- posta comum a uma experiência gratificante no cinema.4 (Ibdem: 10)

Esses tipos de filmes sérios, que pretendem-se portadores da verdade – ou que “moldam a percepção da re- alidade”, como diz Aufderheide (Ibdem: 5) – são os que fazem a indústria da não-ficção um negócio lucrativo. Por outro lado, representam o anti-modelo, a antítese de parte expressiva da produção contemporânea, muito mais voltada para o desenvolvimento artístico desse tipo de cinema, contando histórias da realidade, mas não reivindicando verdades totalizantes e supostamente definitivas.

The new documentary

Valsa com Bashir é certamente um dos representantes mais emblemáticos da nova safra de documentários

que muitos dos pesquisadores classificam como “o novo documentário” (the new documentary). Focado na subjetividade dos personagens, com todas as incertezas e ambigüidades de suas memórias, e sem postular re- presentar uma verdade objetiva e transparente – até por se tratar de uma animação – o filme israelense, de uma forma um tanto quanto extremada, reúne muitas das características desse “novo documentário”.

O personalismo, o hibridismo e a diversidade – tanto estética quanto temática – são as marcas do tal novo documentário (Saunders, 2010: 70), cujos realizadores rejeitam peremptoriamente ser confundidos com “con- tabilistas da verdade”. A rejeição aos cânones do cinema direto é dos grandes motivadores do documentário contemporâneo. Para Winston (2006: 25), houve uma verdadeira renascença (renaissance) na não-ficção, que ficou marcada pelo lançamento do filme A Tênue Linha da Morte (The Thin Blue Line, EUA, 1988, 85 min), do cineasta, filósofo e ex-policial Errol Morris.

Morris lançou mão de vários recursos estilísticos há tempos renegados pelos próceres do cinema direto e pela cátedra obsessiva pela verdade objetiva. O diretor revisitou o caso da morte de um policial no final dos anos 1970 na cidade de Dallas, Texas, que levou à condenação a morte de Randall Adams. O diretor criou uma narrativa cíclica, mostrando depoimentos dos diferentes envolvidos no caso – investigadores, advogados, tes- temunhas, promotores, jornalistas que cobriram o caso, além dos dois envolvidos no crime – não para construir uma nova versão dos fatos, mas para evidenciar as contradições e falhas do processo que condenou Adams.

Ao utilizar repetidas reencenações do crime para ilustrar os diferentes depoimentos sobre o caso, junto da musica fantasmagórica de Philip Glass e o vai-e-vem de das falas dos envolvidos, Morris consegue

4 “What does a documentary look like? Most people carry inside their heads a rough notion of what documentary is. For many of them, it is not a pretty picture. A ‘regular documentary’ often means a film that features sonorous, ‘voice-of-God’ narration, an analytical argument rather than a story with characters, head shots of experts leavened with a few people-on-the-street interviews, stock images that illustrate the narrator’s point of view (…), perhaps a little educational animation, and dignified music. This combination of ele- ments is not usually remembered fondly. ‘It was really interesting, not like a regular documentary’, is a common response to a pleasant theatrical experience.”

criar uma narrativa que, pouco a pouco, vai deixando claro as razões que levaram a polícia a aceitar a versão do outro envolvido no caso, corroborada por testemunhas, David Harris – que, na realidade, era o verdadeiro executor do policial.

O impacto do filme de Morris foi tamanho que Randall Adams acabou absolvido pela Suprema Corte ame- ricana em 1989 e David Harris executado judicialmente na cadeira elétrica, embora por outro crime. Ou seja, desafiando a obsessão realista do cinema direto e sem a arrogância dos filmes expositivos, Morris atingiu a verdade por caminhos alternativos, mais subjetivos, alcançando as contradições por meio das entrevistas que acabaram colocando em xeque a versão endossada pela policia à época.

Foi por empregar um estilo altamente personalista de investigação, sem compromisso com os cânones ob- servacionais, que Winston atribuiu a Morris o pioneirismo no que ele chamou de renascença do documentário. Uma assertiva de Morris ilustra bem seu pensamento sobre tema:

Eu acredito que o cinéma vérité retrocede a realização de documentá- rios em vinte ou trinta anos. Ele vê o documentário como uma subespé- cie de jornalismo... Não há razão para que os documentários não sejam pessoais como as ficções e tragam a marca daqueles que o fizeram. A verdade não é garantida por estilo ou expressão. Ela não é garantida por nada.5 (Apud Arthur, 1993: 127)

Essa atitude de negação ao cinema direto abriu as portas para uma série de experimentações no campo da não-ficção, distanciando-o da objetividade metafísica das regras jornalísticas e aproximando-o da ambiguidade e rebeldia da arte. Como diz Saunders, a linguagem do documentário foi se tornando “crescentemente multi-

5 I believe cinéma-vérité set back documentary filmmaking twenty or thirty years. It sees documentary as sub-species of journalism… There’s no reason why documentaries can’t be as personal as fiction filmmaking and bear de imprint of those who made them. Truth isn’t guaranteed by style or expression. It isn’t guaranteed by anything.

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