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100 Valsa com Bashir: Subjetividade, Memória e Geopolítica no Documentário Contemporâneo

como memória manipulada, tipo de engendramento que atuaria sobre a coletividade “enquanto estratégia de evitação, de esquiva, de fuga, se trata de uma forma ambígua, tanto ativa quanto passiva, de esquecimento” (2007:456). Seguindo o raciocínio, diz Yosef:

Tal como os indivíduos, as nações ou coletividades podem também estar sujeitas a experiências extremas catastróficas, como genocídios, ocupa- ções e guerras. (...) O evento (ou séries contínuas deles) choca a nação e desestabiliza a maneira como ela percebe a si mesma. Às vezes é difícil recordar o evento, e ainda mais difícil representá-lo e incorporá-lo den- tro das histórias que a nação utiliza para compreender-se e organizar seu passado. Frequentemente, as nações preferem esquecer certos even- tos traumáticos, que são percebidos como ameaçadores ou vergonhosos, e que podem ser perigosos demais para a sociedade. 9 (Yosef, 2011: 6)

Ricoeur entende que instituições, tais como o Estado e a mídia, alimentam mitos hegemônicos que acabam por atuar de maneira obsessiva para renegar, ignorar eventos e fatos do passado que não lhe são interessantes: “esquecimento de fuga, expressão de má-fé (...) motivada por uma obscura vontade de não se informar, de não investigar o mal cometido pelo meio que cerca o cidadão, em suma, por um não-querer-saber” (2007:455). No caso israelense, como ressalta Yosef, o tal mito-hegemônico, capaz de manipular um passado inconveniente, é calcado numa identidade que se caracteriza como a de um povo perseguido: “os israelenses continuam a ser ver como vítimas e como se enfrentassem a ameaça da aniquilação: no passado pelas mãos dos nazistas e hoje pelas mãos dos países árabes em geral (...), um ponto de vista que reforça sua opinião de que estão sempre cer- tos, sem reconhecer o prejuízo infligido por Israel a outros grupos, como o povo palestino”10 (Yosef, 2011:8).

Ou seja, ao empreender o exercício de recordação que lhe levaria às raízes de seu trauma, e de seu blo- queio de memória, e ao transformar tal empreitada num documentário, Ari Folman “remou” contra a corrente ideológica que ergueu a narrativa histórica acerca do passado de Israel. Certamente, o longo período em que este trauma ficou latente na memória de Folman – um armazenamento de imagens que Ricouer chama de “es- quecimento de reserva” (2007:436) – foi fruto também de um ambiente que não lhe facilitava o enfrentamento desse trauma, sua assimilação redentora, àquela que traz alívio à alma. Não à toa, cerca de cem ex-combatentes atenderam ao chamado da produção do documentário para revelarem suas experiências na Guerra do Líbano. Era uma oportunidade de verbalizar, expor e organizar suas memórias repletas de sofrimento e de culpa, todas elas relegadas ao desterro frente à força da narrativa histórica oficial imposta.

É o que fica evidenciado no relato de Ronny Dayag (sequência 6). Junto de outros jovens soldados que mais pareciam seguir para uma excursão de férias, Dayag sobreviveu a uma emboscada na qual todos seus companheiros de blindado foram assassinados. Depois nadar por horas em alto mar e ter a sorte de encontrar um regimento aliado que o resgatou, Dayag passou a conviver com um terrível sentimento de culpa que o as- sombrava e o envergonhava. “Tinha a sensação de que havia fugido do campo de batalha para salvar a minha pele. (...) Culpado. Eu me senti culpado por está de pé no túmulo deles. Era como se eu não tivesse feito o

9 “… the film exposes a deep rupture, or traumatic discontinuity, between the past and the present – between history and memory – and points to the decline of the historical memory in Israel.”

Like individuals, nations or collectives can also undergo extreme catastrophic experiences, such as genocide, occupation, or war. (…) The event (or series of ongoing events) shocks the nation and destabilizes the very way it perceives itself. Sometimes it is hard to recall the event, and even harder to represent it and incorporate it within the stories that the nation uses to understand itself and organize its past. More often than not, nations prefer to forget certain traumatic events, which are perceived as threatening or shameful, and which might be too dangerous for society.

10 “Israelis continue to see themselves as victims and as facing the threat of annihilation: in the pasta t the hands of the Nazis, and today at the hands of Arab countries in general.(…) … an outlook that strengthens their opinion that they are always right, without acknowledging the harm visited by Israel on other groups, such as Palestinians.”

bastante. Eu não fiz o bastante”. Nesse sentido, Valsa com Bashir permitiu o reencontro dos personagens – e certamente de muitos que assistiram à obra – com o nebuloso passado. “Eles (os soldados) sofriam com feri- das que eram tanto pessoais como históricas e que não poderiam ser curadas sem que deixassem cicatrizes no presente”11 (Yosef, 2011: 6).

O outro fator que acentua os efeitos malévolos do trauma sofrido pelo diretor-protagonista é o fato de ele ser filho de sobreviventes do Holocausto, especificamente do mais sombrio e emblemático dos campos de con- centração nazista, Auschwitz, como o próprio personagem revela no filme (sequência 12). Tendo assimilado o horror do genocídio contra os judeus desde os seis anos de idade, Folman sofria de uma espécie de trauma “intergeracional”, qual seja, na visão de Beatriz Sarlo, a manutenção viva das memórias das tragédias impostas aos pais na cabeça dos filhos (2007:91).

A situação de Folman, assim como de filhos de sobreviventes de outros horrores como o Apartheid sul-africano e as torturas sádicas e desenfreadas dos regimes ditatoriais latino-americanos entre os anos 1960 e 1980, se encaixa dentro da definição pós-memória, termo que não agrada a Sarlo, mas cujo conceito é preciso em sua clareza: “... se trata do registro, em termos memorialísticos, das experiências e da vida dos outros, que devem pertencer à geração imediatamente anterior e estão ligados ao pós-memorialista pelo parentesco mais estreito” (Ibdem:96).

No caso judaico, a conscientização do horror de seus antepassados, da Diáspora, passando pelos pogrons medievais até o Holocausto (Shoah), é algo que não apenas é passado naturalmente de pai para filho como al- tamente estimulado entre a comunidade judaica – bem como para fora dela. De acordo com Hirsch, tal consci- ência é traço fundamental da identidade judia, sendo inclusive mais premente que a religião entre os indivíduos laicos e urbanos (Apud Sarlo, 2007: 97).

Ou seja, a ruptura emocional causadora do trauma de Ari Folman, além das cenas da carnificina em si, foi potencializada pelas memórias do Holocausto. O contraste cabal entre a identidade de vítima, de perseguido, de massacrado, face a uma realidade de, no mínimo, apoio e conivência para com um massacre que não poupa- va mulheres, velhos ou crianças. É o que se torna evidente no segundo diálogo entre o diretor-protagonista e o psicólogo Ori Sivan quando este lhe diz: “Seu interesse pelo massacre vem de muito antes de ele ter ocorrido. Seu interesse pelo massacre vem de um outro massacre. Seu interesse por aqueles campos é, na verdade, por outros campos” (sequência 12).

Mais à frente (sequência 14), no último diálogo entre os dois, com Folman já ciente do ocorrido nos dias de massacre que pareciam apagados de sua memória, Sivan explicita as razões da ruptura emocional do diretor-prota- gonista. “Você não consegue se lembrar do massacre porque, na sua opinião, os assassinos e os que os cercavam são o mesmo círculo. Você se sentiu culpado aos 19 anos. Sem querer, você assumiu o papel do nazista”.

Essa culpa resultante dessa transição de vítima para carrasco tornou a busca das memórias de Ari Folman importante não somente para acertar as contas com os infortúnios pretéritos, mas também para absolvê-lo da responsabilidade para com o morticínio dos refugiados palestinos. Essa reconciliação com o passado traumá- tico funciona, segundo Ricouer, como uma espécie de perdão, “o horizonte comum da memória, da história e do esquecimento” (2007:465). No caso de Valsa com Bashir, foi preciso ir além da necessária assimilação do fato que lhe ocasionaram a ruptura emocional.

A narrativa adquire ares de uma saga redentora para Folman. Em princípio por absolvê-lo da responsabi- lidade para com a tragédia. “Você estava lá, atirando fogos, mas não executou o massacre”, lhe tranquilizou

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