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46 Valsa com Bashir: Subjetividade, Memória e Geopolítica no Documentário Contemporâneo

do que problemas retóricos – saber o que é documentário ou não – a prevalência da linguagem ‘transparente’ como paradigma absoluto criou também problemas legais.

O pesquisador britânico Brian Winston entende que, além da questão da transparência, o sucesso do cine- ma direto na TV acabou por vincular a não-ficção às regras do jornalismo, “o que permitiu ao documentário estabelecer uma reivindicação mais forte de realismo do que era possível anteriormente”18 (Winston, 2006:

22). Isso, de acordo com o autor, levou a imposição de uma série de amarras aos realizadores, já que críticos da imprensa e, pior, reguladores passaram a exigir que os documentaristas respeitassem “a ética jornalística de não intervenção e de estrita observação”19 (Ibdem).

O caso estudado por Winston é da série The Connection, exibido em 1998 pelo Channel 4, conceituado canal estatal britânico especializado em não-ficções. O documentário tratava da atuação das “mulas”, pessoas a serviço dos cartéis colombianos que levavam cocaína do país sul-americano para o Reino Unido – geralmen- te engolindo cápsulas com a droga. O fato de ter sido filmado em diferentes etapas, mas apresentado como se fosse um caso único, além de a produção ter utilizado uma pessoa conhecida do diretor Marc De Beaufort como personagem, provocou uma avalanche de críticas.

A imprensa, especialmente o jornal The Guardian, acusou a série de ser uma falsificação (fakery) e chegou a prever o afundamento do Channel 4 (Ibdem:10). O escândalo gerou uma sanha reguladora no Reino Unido. Tanto que o Independent Television Comission (ITC) – órgão fiscalizador da radio- difusão britânica - instalou uma investigação (Painel) que, tendo o cinema direto como parâmetro principal e partindo do princípio de que qualquer notícia, independente da forma, “deve ser apresen- tada com a devida precisão e imparcialidade”20 (Ibdem:11), concluiu que a série não havia seguido

parâmetros de estrita confiabilidade, e impôs uma multa de dois milhões de libras ao Channel 4 com o objetivo de prevenir que novas “fraudes” fossem veiculadas. Segue um trecho do relatório do ITC:

O Painel sabe que as cenas nos documentários nem sempre são aquilo que aparentam ao público e que alguns documentaristas ge- nuinamente acreditam ser autorizados para editar a realidade. A despeito disso, este Painel é firme em seu ponto de vista de que as cenas retratando a jornada das mulas não deveriam ser apresen- tadas daquela maneira. Este programa, que reivindica ser sério, deveria ter optado sem hesitação pela estrita confiabilidade; falhou em fazer isso, então assaltou a credibilidade e causou desilusão nos espectadores.21 (Apud Winston, 2006: 19)

Brian Winston viu tanto nas críticas como nos resultados do Painel uma imposição da superioridade dos cânones do ci- nema direto, “uma variação simplista da ideia do século XIX de que a câmera não mente – ou, igualmente ingênuo, de que ela é capaz de oferecer uma estrita confiabilidade”22 (Ibdem: 19). Para o autor, a investida contra The Connections abriu

18 “… allowed documentary to lay a stronger claim on the real than was possible previously…” 19 “A journalistic ethic of non-intervention and strict observation..”

20 “… must be presented ‘with due accuracy and impartiality’”

21 The Panel knows that scenes in documentaries are not always what they seem to viewers and that some documentary-makers ge- nuinely believe that they are entitled to edit reality. Notwithstanding this, the Panel is firmly of the view that the scenes depicting the mule’s journey should not have been presented in this way. This avowedly serious programme should have opted without hesitation for strict reliability; that it failed to do so attacks trust and causes disillusion in viewers.

22 “is a simple variant on the nineteenth-century idea that the camera does not lie – or, equally naïve, that it is capable of offering ‘strict reliability.”

um perigoso precedente, já que a multa foi imposta sem que fosse provado que o documentário tenha causado qualquer espécie de dano, apenas baseado na suposição de que o público poderia estar sendo enganado.

A noção de que o documentário tivesse de seguir esse dogma que mistura as regras do jornalismo com procedi- mentos do cinema direto fez outra vítima, ainda mais célebre: Michael Moore. Seu estilo jocoso e seu ativismo de esquerda geraram uma série de inimigos na imprensa – especialmente naquela alinhada com o Partido Republicano nos Estados Unidos – que utilizaram-se das imprecisões cronológicas do filme Roger e Eu (Roger and Me, EUA, 1989, 90 min) para desacreditá-lo e estigmatizá-lo como um “demagogo”23 e um fomentador de polêmicas profissio-

nal (Saunders, 2010:20).

Ao contar a história de como a transferência da fábrica da General Motors de sua cidade natal, Flint (Michi- gan), para instalações no exterior, Moore focou nas consequências para a população e para a economia local. Não falou em detalhes que o processo havia demorado alguns anos – entre outras imprecisões. A reação foi agressiva e tinha como mote principal a acusação de que Moore havia empreendido “um inacreditável desvio na forma do documentário”24 (Schultz apud Saunders, 2010:20).

Como observa Winston, “nenhum dos críticos de Moore jamais questionou se ele havia deturpado a situação subjacente em Flint”25 (2006:36). O pesquisador vê nesse tipo de iniciativa, a cobrança desmedida de fidelidade ao

factual, uma forma de censurar os documentaristas, de tolher sua criatividade e seus impulsos artísticos. Para ele, tais questionamentos éticos e morais recaem sobre o documentário, “um segmento menor no audiovisual”, de forma muito mais incisiva do que em outros produtos ligados ao mainstream midiático (Ibdem:39).

Nessa mesma linha de pensamento, Patrícia Aufderheide é ainda mais contundente. Ela entende que os documentários na atualidade – “Brave New Films” – se contrapõem deliberadamente contra a mídia e “seu entendimento status quo da realidade”26 (2007:6). Os ataques aos documentários são estimulados pelo fato dos

realizadores se proporem a “preencher os buracos na cobertura da mídia mainstream”, batendo de frente com muitos dos interesses das próprias empresas jornalísticas e de seus parceiros, procurando atuar como “a voz do público”, só que de maneiras distintas. Afinal, como ressalta a autora, “os documentaristas se consideram con- tadores de histórias e não jornalistas”27 (Ibdem:1-7).

23 “… gonzo demagogue…”

24 “… an incredible shift in the documentary form.”

25 “And none of Moore’s critics has ever argued that he remotely misrepresented the actual underlying situations in Flint.” 26 “On the margins of mainstream media, slightly off-killer from status-quo understandings of reality…”

27 “… most documentary filmmakers consider themselves storytellers, not journalists.”

Roger e Eu (1989): Micheal

Moore acusado de desres- peitar as regras do docu- mentário.

A SUBJETIVIDADE

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