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106 Valsa com Bashir: Subjetividade, Memória e Geopolítica no Documentário Contemporâneo

O cinema israelense expressa alguma empatia ética acerca do sofrimento dos palestinos? O cinema israelense admite que a catástrofe palestina é de- corrência de crimes de guerra imorais? Em geral, com a exceção de uns poucos filmes, nós temos que responder negativamente. O novo cinema isra- elense recusa-se a admitir as injustiças perpetradas pelo nacionalismo judeu ao povo palestino e ainda vê a sociedade israelense como uma coletividade vitimada. A maior parte das narrativas do cinema israelense encontra di- ficuldade de representar essas transgressões, negando-as inteiramente ou ignorando as formas pelas quais a ocupação (dos territórios palestinos) se tornou uma parte inseparável da identidade israelense.29 (2011: 16)

Expor a complexidade do conflito

Envoltos num ambiente político cada vez mais tenso política e economicamente, no qual são crescentes as animosidades entre os militantes de esquerda e o atual establishment de direita – que engloba dos modera- dos, outrora radicais, do partido Likud do primeiro-ministro Benyamin Netaniahu, aos beligerantes do Yisrael

Beiteinu (Israel Minha Casa), encarnados na figura do histriônico premier Avigdor Lierbermann, passando

pelos cada vez mais fortes religiosos ultra-ortodoxos -, é natural que partidários pelo fim do conflito entre Israel-Palestina critiquem a tibieza do cinema nacional em representar e denunciar a ocupação dos territórios palestinos, e toda a violência que isso implica, bem como em dar voz aos outros envolvidos no embate de uma forma mais efetiva.

Às acusações de “pegar leve” com o governo e os exércitos israelenses e de não contextualizar o que Israel fazia no Líbano quando do massacre de Sabra e Chatila – a guerra tinha o objetivo de aniquilar o poderio bélico da Organização pela Libertação da Palestina (OLP) -, Ari Folman responde dizendo que o tema principal do filme é a “confiabilidade da memória”30 , sobretudo daquelas adquiridas na juventude, “uma idade na qual você não pensa totalmente”31 . “Para mim

o filme é sobre a memória – para onde vão nossas memórias quando nós as suprimimos? -, a questão de se a memória continua vivendo dentro de nós ou se tem sua própria maneira de viver” 32 (Apud Saunders, 2010: 170 e 171).

Por mais que soe como uma tergiversação, alegação de Folman tem sentido. Afinal, além da narrativa ser centra- da na representação dos fenômenos da memórias dos personagens por meio da animação, a questão que é abordada mais didaticamente e contextualizada, tal como os preceitos mais conversadores do filme documentário, é a da me- mória. Por isso as explanações sobre a relação trauma e memória nos relatos do psicólogo Ori Sivan (sequências 3, 12 e 14) e da especialista em desordem de estresse pós-traumático, professora Zahava Solomon, que explicou como um fotógrafo conseguia transitar imune nas ruas de uma Beirute em guerra até se confrontar com o horror ao ver cavalos mortos no hipódromo da cidade (sequência 8).

Além disso, e dos pontos levantados anteriormente, cabe ressaltar que em nenhum momento de Valsa com

Bashir exalta a ação israelense no Líbano, tampouco apresenta os soldados como heróis, como tão comumente

acontece em filmes de guerra, principalmente os norte-americanos. O ilustrador David Polonsky disse que,

29 Does Israeli cinema express an ethical empathy toward the suffering of the Palestinians? Does Israeli cinema admit that the Pales- tinian catastrophe is the outcome of immoral war crimes? In general, with the exception of a few films, we must answer in negative. The new Israeli cinema refuses to admit to the injustices perpetrated by Jewish nationalism to the Palestinian people and still sees Israeli society as a victimized collective. Most narrative Israeli cinema find it difficult to represent these wrongdoings, sometimes even denying them entirely or ignoring the ways in which the occupation has become an inseparable part of Israeli identity.

30“... trustworthiness of memory itself...” 31 ... at an age when you don’t think at all.”

mais do que o desafio artístico, não empregaria três anos dando vida às subjetividades dos personagens do filme “se não fosse identificado com a posição política de esquerda” 33 do projeto (Hareetz, 13/06/2008: 43).

Polonsky diz ter evitado representar os soldados como jovens e vítimas, e não aceita a alegação de que os per- sonagens tenham uma postura estilo “atirar e chorar”34 – tal como critica Gideon Levy. “Não há glória romântica

na guerra, assim como não há perdão. Há a mensagem clara e simples de que a guerra é terrível e insustentável. Despendemos grande energia para evitar transmitir a mensagem de que a guerra é heróica; os soldados não são nem heróis nem exemplos” 35 (Ibdem). Nessa mesma linha de pensamento, Folman complementa: “Não há nada do bri-

lho israelense da guerra, não há promoção dos combatentes. Todos são clássicos anti-heróis” 36 (Ibdem).

Ou seja, por mais que não seja incisivo como parte dos israelenses e dos críticos de Israel gostariam, Valsa

com Bashir de forma alguma pode ser tratado como uma espécie de propaganda sionista. Seria um reducionis-

mo impróprio. Não se pode cobrar de um filme que abarque todas as histórias e versões de um episódio como o massacre de Sabra e Chatila. Foi apresentada, de uma forma criativa e inovadora, pontos de vista que eram pouquíssimos conhecidos fora do Estado judeu. Além disso, para quem quer conhecer outras versões acerca do genocídio, existem opções.

Uma visão das “verdadeiras vítimas” acerca do massacre pode ser conferida no documentário Children of Shatila (Líbano, 1998, 50 min), do cineasta Mai Masri, filho de pai palestino e mãe norte-americana. Apesar de mostrar as mesmas cenas de dezenas de cadáveres exibidas nos 114 segundos finais de Valsa com Bashir, o filme também não é focado em contextualizar o ocorrido. A intenção de Masri foi mostrar o campo 16 anos após o massacre.

Ao estruturar a narrativa nos relatos de filhos e pais de mortos no massacre – um senhor diz ter perdido quatro filhos -, o filme procura representar a penosa vida dos refugiados palestinos e seus descendentes. A falta de infra-estrutura, saneamento, serviço de saúde, as habitações precárias, o desemprego generalizado, a condição de cidadão pária... situação que só não é pior por conta de iniciativas pontuais da ONU, que garante, por exemplo, um emprego de varredor a um pai de família especialista em informática.

São tocantes as histórias das crianças que aprendem o ofício de artesão com professores que foram muti- lados no massacre e em outros confrontos que continuam a acontecer por ali. Desolador é ver a vã esperança dos velhos – entrevistados pelas crianças locais - que deixaram a Palestina no Nakba em 1948 e, mesmo sobre- vivendo ao genocídio de 1982, ainda sonham em voltar para os seus lares. Apresentam documentos e chaves de casas que, se ainda estão de pé, provavelmente são habitadas pelos migrantes judeus de todo o mundo que vieram morar em Israel.

Já uma visão libanesa acerca da carnificina é oferecida pelo documentário Massaker – Sabra et Chatila par ses

Bourreaux (Líbano, França, Alemanha, 2005, 98 min), produzido pela teuto-libanesa Monika Borgmann. O filme

exibe entrevistas com seis ex-falangistas cristãos que participaram do massacre. Nenhum deles tem a face revelada, o que não diminui o valor dos chocantes relatos. A obra é quase que um complemento de Valsa com Bashir, já que oferece uma contextualização mais abrangente sobre o que acontecia em Beirute durante o período de guerra.

33 “I certainly would not have become involved in this Project if I did not identify with his left-wing political stance.” 34 “They do not ‘shot and cry.’”

35 “There is no romantic glory in the war, and no forgiveness. There is a clear, simple message that war is untenable and terrible. We went to great lengths to avoid conveying a message that war is heroic; the soldiers are neither heroes nor role models.”

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