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38 Valsa com Bashir: Subjetividade, Memória e Geopolítica no Documentário Contemporâneo

A linguagem cinematográfica se desenvolveu não-ficcionalmente em seu início. Depois que o encanta- mento com as cenas cotidianas se dissipou, o foco da produção transferiu-se para a reprodução de grandes acontecimentos, eventos e solenidades, dando origem aos chamados actualités e newsreel. Foi só na virada do século XIX para o XX que o cinema caminhou rumo à ficção, a partir das obras poéticas e fantásticas de George Méliès – pai da cinematografia ficcional de acordo com Guy Gauthier (2005:19).

A eclosão do cinema no fim do século XIX foi uma resposta tecnológica ao furor pelo realismo que carac- terizava aquele período, quando o racionalismo iluminista chegava ao seu auge com a predominância da indus- trialização, do cientificismo e de doutrinas sociológicas como o positivismo filosófico de Auguste Comte. Fritz Novotony explica como este espírito tomou de assalto as diferentes formas de expressão:

... as mudanças radicais na estrutura da sociedade; a perturbação dos poderes secular e eclesiástico na Europa como consequência da Re- volução Francesa, um evento que afetou a história em todo o mundo; o subsequente início da sociedade democrática e das novas formas de individualismo; a consequente e fundamental mudança na relação do artista com a sociedade (...). A relevância desta nova situação, envol- vendo a destruição de todos os elos com o passado e a emergência de uma nova liberdade para a arte e os artistas individuais, é em parte ób- via: havia sido aberto o caminho para um novo olhar sobre o mundo.1

(Apud Barsam, 1992: 13)

A ânsia em representar o mundo como um fenômeno visível, o mais próximo possível da natureza em si (Ib- dem: 13 e 14), tornou-se meta de diferentes correntes artísticas da época. De acordo com Barsam, a busca pelo realismo orientou o trabalho de pintores franceses como Eugène Delacroix, Edgar Degas, Gustave Courbet e até de Claude Monet. Na literatura, tal obsessão estava expressa nas páginas das duas correntes em voga na época: o Realismo (Gustave Flaubert, Victor Hugo, Honoré de Balzac – Machado de Assis no Brasil) e o Na- turalismo, cujo expoente mor era o poeta Émile Zola – no Brasil, o ícone do movimento foi Aluísio Azevedo. Mas a corrida pela reprodução translúcida da realidade já havia ganhado contornos obsessivos ainda nos anos 1830, quando, a partir da invenção do daguerreótipo, surgiu a fotografia, “o processo físico e químico que dá a natureza a habilidade de reproduzir a si mesma”2, como caracterizou seu inventor, Louis-Jacques Mandé

Daguerre. A revolução na maneira de se olhar as coisas desencadeada pela fotografia estabeleceu, conforme Trachtenberg, o primeiro parâmetro para se arbitrar o que é realidade (Apud Barsam, 1992:9).

O já citado Émile Zola assim expressou o seu fascínio: “na minha visão, você não pode afirmar ter visto realmente alguma coisa até que você tenha fotografado-a”3 (Ibdem:9). Antes dos irmãos Lumières levarem a

cabo a primeira sessão de cinema, houve um sem número de tentativas de se inventar maquinários capazes de potencializar a vocação realística da fotografia dando-lhe movimento.4

1 ... the radical changes in the structure of society; the disturbance of secular and ecclesiastical power on the Continent as a result of French Revolution, an event which affected the history of the whole world; the subsequent beginnings of a democratic society and a new form of individualism; the consequent fundamental change in the relationship of the artist to society (…). The significance of this new situation, involving the destruction of all links with the past and the emergence of a new freedom for art and the individual artist, is in part obvious: it opened the way for a new view of the world.

2 “a physical and chemical process which gives Nature the ability to reproduce herself.” 3 “In my view, you cannot claim to have really seen something until you have photographed it.”

4 Detalhamento sobre este tema pode ser obtido na própria obra de Barsam, Non-Fiction Film – A Crítical History (1992), e em Machado, Arlindo. Pré-Cinemas & Pós-Cinemas. Campinas: Papirus, 2007.

A imagem fotográfica e a realidade não mediada

O efeito “realidade” da fotografia, consubstanciado no fato de ser alcançado por meio de um processo químico que se dá mecanicamente num aparato industrializado, não apenas exerceu encantamento como alimentou infindáveis debates entre realizadores, acadêmicos e críticos sobre qual seria a vocação, a mis- são ontológica, das então emergentes expressões artísticas: a fotografia e o cinema.

A crença na transparência absoluta da imagem fotográfica sempre esteve alicerçada na aparente constatação de que tratava-se de um processo puramente mecânico, apartado da interferência humana, que alcançava “a equiva- lência sem brechas entre as imagens e as coisas”, como descreve André Rouillé (2009: 161). A possibilidade de a fotografia ter uma função que vá além da documental, permitindo ao fotógrafo expressar sua subjetividade de forma a ultrapassar “os limites do registro”, é ainda um debate inconcluso, por mais que soe anacrônico.

No cinema, o vínculo realista da imagem fotográfica suscitou debates apaixonados entre os que louvavam a possibilidade de “exatidão matemática” e a “precisão inimaginável”5 (Gay-Lussac apud Kracauer, 1997:4) das re-

presentações, e os que viam na manipulação das imagens um caminho para representar os fenômenos da mente humana. Em seu artigo “Ontologia da Imagem Fotográfica”, André Bazin celebrou a fotografia enquanto expressão dotada de maior credibilidade, por conta de sua “objetividade essencial”, diferente das artes plásticas – que para ele se contentavam em alcançar um pseudo-realismo por meio da ilusão das formas (2008: 123 - 125).

Para Bazin, mais que um aperfeiçoamento técnico e material, a fotografia causara uma revolução psicológi- ca, já que satisfazia a obsessão de realismo do homem justamente por excluir esse mesmo homem do processo mecânico de reprodução.

Esta gênese automática subverteu radicalmente a psicologia da imagem. A objetividade da fotografia confere-lhe um poder de credibilidade ausente de qualquer obra pictórica. Sejam quais forem as objeções do nosso espíri- to crítico, somos obrigados a crer na existência do objeto representado,(...) quer dizer, tornado presente no tempo e no espaço. A fotografia se bene- ficia de uma transferência da realidade da coisa para a sua reprodução. O desenho o mais fiel pode nos fornecer mais indícios acerca do modelo; jamais ele possuirá, a despeito do nosso espírito crítico, o poder irracional da fotografia, que nos arrebata a credulidade. (Ibdem: 125 e 126)

O alemão Sigfried Kracauer foi outro a postular que a natureza da fotografia e do filme era revelar a realidade física, o mundo em volta de nós. Kracauer não tinha dúvidas que a inovação estética do cinema era a impessoalidade, a fato de deixar intacto aquilo representado. O realismo, para ele, seria a propriedade específica do meio, situando-o no pólo oposto à pintura. “Em termos de interesse estético, deve-se perseguir a tendência realista sob qualquer circunstância”6, avalia o autor (1997:13).

Embora lamentasse que muitas das experiências consideradas artísticas no cinema fossem justamente aquelas que pervertiam as especificidades do meio, Kracauer não rejeitava a possibilidade de iniciativas cinematográficas mais abstratas e híbridas com as outras artes. Para ele, mesmo as produções mais alternativas aproveitavam-se das características da imagem fotográfica para passar a impressão de verdade. “Ainda que George Méliès não tenha ti-

5 “…mathematical exactness...”, “…unimaginable precision…”

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