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30 Valsa com Bashir: Subjetividade, Memória e Geopolítica no Documentário Contemporâneo

Os teóricos do cinema estão corretos ao apontar as sobreposições es- tilísticas entre o cinema ficcional e o não-ficcional. Mas equivocam-se ao tornar este fato como indicativo da inexistência de uma distinção entre a ficção e a não-ficção (...). O seu erro é de caráter lógico. Pre- sumem que, se não há diferenças estilísticas entre os filmes ficcionais e não-ficcionais, então não existe diferença alguma. Mas trata-se de um grosseiro non sequitur, porque não previram a possibilidade da existên- cia de outras diferenças que não estilísticas ou formais, em função das quais pode-se traçar a distinção. (Ibdem:78)

Valsa com Bashir, enquanto exemplo desse hibridismo no cinema contemporâneo, suscita reflexões neste âmbito filosófico preconizado por Carroll e seguido por outros teóricos como Plantinga, Bruzzi e Patricia Auf- derhaide. Entretanto, este estudo não pode abrir mão das proposições mais pragmáticas elaboradas por Nichols – também por Gauthier – para compreender o filme israelense sob o ponto de vista institucional, dos processos de produção e também das estruturas. Acredita-se que, no contexto da presente análise, ambas tendências teó- ricas são complementares e permitirão conceituar com mais precisão a obra ora estudada.

O discurso da sobriedade

Boa parte das reflexões de Bill Nichols sobre o documentário procurou evidenciar esta cinematografia como sendo uma legítima fonte de conhecimento, apresentando situações e eventos reconhecíveis dentro da- quilo que é partilhado como experiência comum das pessoas. “Um bom documentário estimula discussões sobre o seu tema, não sobre si próprio (...) ... filmes documentários levantam uma rica variedade de questões historiográficas, legais, filosóficas, éticas, políticas e estéticas ”7, (1991:X).

Nesse sentido, o autor entende que o documentário é um tipo de expressão que tem parentesco com outras formas não-ficcionais do que ele chama de “discursos da sobriedade”8 (Ibdem:4), quais sejam: economia, po-

lítica, diplomacia, educação, religião, entre outros. São todos discursos que, segundo ele, mantém uma relação direta, imediata e transparente com o mundo histórico e a experiência comum, atuando, na maioria das vezes, como veículos de dominação e consciência, poder e conhecimento, desejo e vontade.

Assim, Nichols contrasta o documentário e a ficção utilizando metáforas psicanalíticas: A ficção estaria no ter- reno do ID, caracterizando-se pelo irracional, desejos inconscientes e significados latentes. Já o documentário fun- cionaria no âmbito do Ego e do Superego, ou seja, acerca das questões sociais sobre as quais somos conscientes. Nichols entende que o documentário não oferece um caminho cênico direto ao inconsciente tal como a ficção e, ao mesmo tempo, teria a capacidade de tornar imageticamente tangível as retóricas, ideologias e utopias.

Usando a analogia de Nichols, pode-se dizer que Valsa com Bashir é um filme estruturado no âmbito do ID, já que seu tema principal é a memória, tendo seu enredo organizado em torno dos traumas, sonhos, alucinações e sentimentos dos personagens, todos representados imageticamente com o poderoso auxílio da animação. Por outro lado, o filme israelense não deixa de atuar no mundo social consciente, já que procura explicar didati- camente os fenômenos relacionados à memória e, mais que isso, apresenta a realidade pouco conhecida dos

7 “A good documentary stimulates discussions about its subject, not itself. (…)… documentary films raise a rich array of historiogra- phic, legal, philosophic, ethical, political, and aesthetic issues.”

soldados israelenses – membros do exército conhecido como mais bem preparado do mundo, o Israeli Defense

Forces (IDF) -, com seus traumas, culpas e angústias de, no caso, terem participado de forma auxiliar do mas-

sacre de civis palestinos nos campos de refugiados de Sabra e Chatila em Beirute.

Retornando ao pensamento de Nichols, apesar de não ter dúvidas quanto ao vínculo do documentário com os tais discursos da sobriedade – o que lhe conferiria, inclusive, um status de superioridade moral perante a ficção -, o autor reconhece que o filme não-ficcional acaba por não ser encarado no mesmo nível de seriedade dos demais discursos, que são geralmente expressados por meio de ensaios, livros, relatórios ou revistas científicas.

O problema residiria no fato de que o documentário é construído por imagens. Por mais que se consiga, por meio da imagem fotográfica e da captação do som direto, replicar com fidelidade aquilo que representa, o documentário nunca deixou de ser visto com desconfiança. “As imagens podem fascinar, mas também distraem. O poder produtivo e interpretativo vive nas palavras”9, (1991:5) afirma Nichols.

Além dessa missão ontológica que aproxima o documentário dos discursos da sobriedade, Nichols elenca outras distinções que, em tese, o separaria da ficção. Uma delas está no processo de trabalho dos realizadores: o diretor do documentário tem menos controle sobre aquilo que filma. Segundo Bordwell e Thompson (Apud Nichols, 1991:13), “tipicamente, o diretor do documentário controla apenas algumas variáveis da preparação, da filmagem e da montagem (...), enquanto outras (ex. cenário, luz, comportamento dos personagens) são pre- sentes mas geralmente incontroláveis.”10

Nichols discorda desse argumento, já que entende existir um controle muito sofisticado dos realiza- dores do documentário, muitas vezes caracterizado por uma não-intervenção que permite que a equipe praticamente não seja notada – caso clássico do cinema direto e do cinéma vérité. Sem contar que produ- ções contemporâneas, cujo objetivo não é transmitir uma realidade transparente, têm tanta intervenção do realizador quanto nas obras de ficção.

Seja por meio de reencenações, manipulação de imagens de arquivo, gravações em estúdio – com luz e som ajustados -, parte da produção contemporânea mantém os processos de filmagem e montagem sob estrito controle. É o caso de Valsa com Bashir. Além do diretor ser o protagonista do filme, o que assegura um imenso poder de intervenção, a obra é marcada por reencenações de todas as cenas oníricas, referentes à subjetividade dos personagens, e também de duas entrevistas – com Ori Sivan e Carmi Ca’an – nas quais os personagens não quiseram ser filmados e foram interpretados por atores profissionais. Todas as cenas foram gravadas em estúdio. Sem contar a animação, feita sem o auxílio da rotoscopia, o que garantiu total controle sobre a luz, cores e cenários apresentados, bem como sobre o movimento dos personagens.

“O que o documentarista não consegue controlar inteiramente é o seu assunto básico: a história”11, lembra

Nichols (Ibdem: 14). Tal premissa também vale para Valsa com Bashir. Embora tenha havido um controle na seleção dos entrevistados que auxiliaram no processo de recuperação das memórias de Ari Folman, o fato desencadeador do trauma, tanto dele como de outros personagens, é imutável: o massacre de refugiados pales- tinos nos campos de Sabra e Chatila.

9 “Images may fascinate but they also distract. Productive and interpretative power resides in words.”

10 “Typically, the documentary filmmaker controls only certain variables of preparation, shooting, and assembly (...) whereas others (e.g., setting, lighting, behavior of the figures) are present but often uncontrolled.”

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