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82 Valsa com Bashir: Subjetividade, Memória e Geopolítica no Documentário Contemporâneo

pelo público presente na première” (2008). “O autor, cujo primeiro filme remonta ao ano de 1991, alcançou uma obra profunda- mente original, de uma beleza plástica tão grande quanto à força de sua proposta” 9 (Ibdem), afirmou Delage à época.

A saga psicológica do ex-combatente, diretor e protagonista do longa, Ari Folman, empolgou o pú- blico mas também causou perplexidade, tanto por apresentar uma não-ficção animada, tendo como mote fenômenos subjetivos da memória dos personagens, como por tratar de forma pouco usual o conflito entre Israel e Palestina – assunto que será melhor tratado mais a frente.

Folman já havia trabalhado com animação em 2004 ao produzir a série The Material that Love is Made of. Foi neste mesmo período, ao completar 40 anos de idade, que o cineasta recebeu dispensa do exército israe- lense – era oficial da reserva à época e colaborava em produções institucionais para o IDF. Foi-lhe oferecido a oportunidade de participar de sessões de psicoterapia para relatar suas experiências enquanto combatente. Depois de oito sessões de duas horas, Folman concluiu: “foi a primeira vez em 20 anos que eu contei a minha história a mim mesmo”10 (entrevista ao Haaretz Magazine, 13/06/2008: 42).

O diretor – de acordo com relato feito em documentário acerca dos bastidores da produção de Valsa com Bashir 11 - foi em

busca de seus amigos do meio cinematográfico que também haviam servido o exército e viu que muitos tampouco haviam refletido sobre aqueles anos, lembrando-se com dificuldade dos períodos que estavam em combate. Foi a partir do contato com os ex-companheiros de farda, que Folman, posteriormente, foi chamado pelo amigo Boaz Rein para conversar num bar no porto de Tel Aviv e lhe contar seu pesadelo com os cães referentes a seu primeiro dia na Guerra do Líbano de 1982 – episódio que, reencenado, se transformou na mola-mestra de todo o enredo do documentário.

Tal como sugerido no diálogo inicial do documentário (sequência 1), Folman utilizou o processo de confec- ção do filme como complemento ao seu tratamento psicológico:

Foi uma terapia (...) você faz e faz e faz em vez de ficar sentado passivamente em tratamento. Este projeto me ajudou com muitas grandes questões dentro de mim. Ele me colocou através de um processo que foi simplesmente incrível, um processo de revelação e entendimento. De repente você tem consciência de que se tratou. Que você tem a sua história nas mãos. 12 (Ibdem)

9 “L’auteur, dont le premier film remonte à l’année 1991, a réussi une ouvre très originale, d’une beauté plastique égale à la force du propos.” 10 “... this was the first time after 20 years that I had told my story to myself.”

11 Documentário incluído na versão “para colecionador” de Valsa com Bashir lançada na Espanha (Vals con Bashir)

12 It was therapy (...) you do and do and do, instead of Just sitting passively in treatment. This project helped me resolve a great many things within myself. It put me through a deep process that was simply amazing, a process of revelation and understanding. Suddenly you realize that you have treated yourself. That you have taken your story into your hands.

Depoimento de um dos cem ex-soldados que con- taram suas memórias da Guerra do Líbano.

Ao tratar a realização de um documentário sobre a busca de memórias, obscurecidas por conta do trau- ma de presenciar o massacre de Sabra e Chatila, como um processo psicoterapêutico, Folman transformou a produção do longa num exercício de recordação tal como caracterizado pelo filósofo francês Paul Ri- couer (2007:37). A definição de Ricouer dá conta de que a recordação é uma busca ativa, sistematizada, daquilo que ficou esquecido. Diferentemente da lembrança, que seria apenas uma afecção, o surgimento repentino de reminiscências, imagens, que ficam armazenadas naquilo que o mesmo filósofo define como “esquecimento de reserva” (Ibdem: 436).

A busca de Folman foi focada, prioritariamente, na memória coletiva de alguns de seus companheiros de guerra e de outros soldados que foram convidados a prestar seus relatos a partir de um chamamento na internet. Cerca de 100 ex-combatentes atenderam ao pedido da produção do filme e tiveram seus depoimentos grava- dos. Desses, no final, apenas o de Ronny Dayag (sequência 6) acabou incluído na obra.

A recordação foi se dando a partir do compartilhamento das memórias dos outros combatentes, mergulhando, so- bretudo, na subjetividade de suas vivências, sonhos, fantasias, angústias, culpas e alucinações. Como ressalta Fanny Lautissier (2009), a história pessoal de Folman serviu de “pretexto para a formulação de uma narrativa plural, o que vem a se inscrever em um balanço permanente entre memória individual e memória coletiva.” 13

Tal balanço permanente fundamentou-se nas experiências vividas que tanto valorizava Maurice Halbwachs (2006:68), tendo como foco principal seus aspectos mais irrepresentáveis, mais intangíveis. Como ressalta o sociólogo francês, para quem a memória individual e a memória coletiva constroem-se mutuamente, “os atrati- vos ou elementos das lembranças pessoais que parecem pertencer apenas a nós podem muito bem ser encontra- dos em meios sociais definidos e neles se conservarem (...) os membros desses grupos (dos quais não deixamos de fazer parte) saberiam descobrir e mostrá-los para nós, se fizéssemos as perguntas certas” (Ibdem:78 e 79).

A partir das associações possibilitadas pelo recolhimento das outras experiências, Ari Folman foi reconsti- tuindo o período em que estava na guerra. Lembranças dos soldados mortos e mutilados, das horas atirando a esmo num inimigo desconhecido, do ataque a uma criança palestina que atirava com uma bazuca no meio de um pomar, da angústia de retornar de folga para casa e ver como a realidade seguia alheia ao conflito. Lem- branças de sua infância e de sua namorada à época do conflito – inclusive uma alucinação na qual ela parti- cipava de seu próprio enterro (sequência 10). Além da valsa surreal “dançada” pelo companheiro Frenkel no meio de um pesado tiroteio em Beirute, tendo a imagem de Bashir Geymael ao fundo – daí a inspiração para o título do filme (sequência 10).

Ao optar por tal estratégia narrativa no documentário, amplamente focada na subjetividade do protagonista e da maioria dos personagens, Folman acabou naturalmente caminhando para o uso da animação – linguagem com a qual já havia trabalhado. Afinal, como aponta Ward, tais elementos intangíveis “muitas vezes se perdem no sedutor mundo mimético da imagem live action”14 (2005: 89). Ainda no autor inglês, o uso da animação

permitiu ao diretor “tentar documentar o ‘indocumentável’15 (Ibdem: 93).

13 ... avant tout un prétexte à la formulation d’un récit pluriel, que vient s’inscrire dans un balance permanente entre mémoire indi- viduelle et mémoire collective.’

14 “… something that sometimes gets lost in the seductively mimetic world of live action.” 15 “.. an attempt to document the undocumentable.”

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