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98 Valsa com Bashir: Subjetividade, Memória e Geopolítica no Documentário Contemporâneo

lançamento de sinalizadores que iluminavam o trabalho “sujo” dos falangistas, e posteriormente, o resultado de toda aquela insanidade, como mostrado fotograficamente nos 114 segundos finais da obra, explicam o por- quê do bloqueio traumático.

O relato do jornalista britânico Robert Fisk, com quatro décadas de cobertura dos conflitos do Oriente Médio pelos jornais The Times e The Independent, reforça o potencial traumático das imagens que abalaram o então jovem soldado de 19 anos. Fisk chegou a Chatila na manhã seguinte à primeira noite do extermínio contra os refugiados palestinos.

... o fedor em Chatila provocava ânsia de vômito. Mesmo com os mais grossos lenços, nós sentíamos o cheiro. Após alguns minutos, nós co- meçamos a cheirar como os mortos (...) Quando chegamos a cem, pa- ramos de contar os corpos. Em cada viela havia cadáveres – mulheres, homens, jovens, bebês e avós – caídos juntos em desordenada e terrí- vel profusão, no local onde tinham sido esfaqueados ou metralhados. (...)... havia mulheres jogadas em casas com suas saias rasgadas até à cintura e as pernas bem abertas, crianças com gargantas cortadas, filas de homens jovens com tiros nas costas após terem sido alinhados diante de um muro de fuzilamento. Havia bebês – bebês enegrecidos, porque tinham sido chacinados havia mais de 24 horas e seus pequenos corpos já estavam em estado de decomposição – jogados em monturos junto a latas descartadas de ração dos EUA, equipamentos médicos do Exército israelense e garrafas vazias de uísque. (Fisk, 2007:488 e 489)

De acordo com Carl Jung, o trauma é um “acontecimento brusco que prejudica de modo imediato o ser vivo, tal como um choque, o terror, o medo, a vergonha, o desgosto, etc...” (2006: 489). Já Laplanche e Ponta- lis, em seu guia de psicanálise, postularam que trata-se de um afluxo de excitações que excedem a tolerância do indivíduo, bem como sua capacidade de dominar e elaborar acerca de tais excitações.

Acontecimento da vida do sujeito que se define pela sua intensidade, pela incapacidade em que se encontra o sujeito de reagir a ele de forma adequada, pelo transtorno e pelos efeitos patogênicos duradouros que provoca na organização psíquica. (Laplanche & Pontalis, 2001:522)

Outra especialista em trauma, a norte-americana Cathy Caruth, entende que uma das características desse abalo mental é o seu retardamento, dado que “a vítima não consegue compreender ou representar o evento traumático no momento da sua ocorrência, por isso a experiência traumática continua assombrar a vítima repetidas vezes”2 (Apud

Yosef, 2011: 2). Ainda em Caruth, a pesquisadora defende que o trauma é tanto uma “crise de conhecimento como de representação” 3 (Ibdem), que toma forma “por meio de repetidas e intrusivas alucinações, sonhos, pensamentos

e comportamentos ligados ao fato original”4 (Apud Yosef, 2010:317).

O professor de Film Studies da Universidade de Tel Aviv, Raz Yosef, especialista na nova cinematografia israelense, sintetiza a questão do trauma e como ela foi apropriada pela narrativa de Valsa com Bashir. “O trauma é estabelecido por meio de uma relação entre dois eventos: o primeiro não é necessariamente traumático porque quando ocorre ainda está

2 “… the trauma victim cannot grasp or represent the traumatic event at the time of its occurrence, and so the traumatic experience continues to haunt the victim over and over.”

3 “Trauma is thus a crisis of knowledge and representation.”

4 “a response, sometimes delayed, to an overwhelming event or events, which takes the form of repeated intrusive hallucinations, dreams, thoughts or behaviors stemming from the events.”

muito cedo para se compreender seu significado pleno; o segundo pode não ser inerentemente traumático em si, mas faz disparar a memória do evento primário, que só depois tem o significado traumático incorporado” 5 (2011:2).

No caso de Valsa com Bashir, o trauma joga um papel crucial que, como ressalta o historiador Bruno Cabanes vai além do “tema da inocência perdida”6 , comum nos relatos de antigos combatentes (Apud Fatussier, 2009) e em

filmes de guerra como Platoon (EUA, 1986, 120 min), de Oliver Stone, Nascido para Matar (Full Metal Jacket, EUA, 1987, 116 min), de Stanley Kubrick, e Além da Linha Vermelha (The Thin Red Line, EUA, 1998, 170 min), de Terrence Malick. Dois fatores fazem com que o trauma de Ari Folman, causador de seu bloqueio, seja acentuado.

Um deles é o próprio ambiente institucional israelense, envolto em situações de conflito com seus vizinhos árabes desde a fundação do Estado judeu em 1948. Em que pese a comoção nacional causada pelas cenas de horror do massacre de Sabra e Chatila, sempre houve, de acordo com Raz Yosef, uma articulação deliberada das autoridades do país para ignorar a ocorrência do massacre – sobretudo a participação da IDF na carnificina. “Esse evento catastrófico foi excluído da memória nacional coletiva israelense e Folman sentiu o dever pessoal de tentar relembrar esse passado emudecido”7 (2011:1).

Foi a partir da subjetividade de ex-combatentes como Folman – o fenômeno que se repete em ficções como Be-

aufort (Joseph Chedar, Israel, 2007, 131 min) e Lebanon (Shmuel Maoz, Israel, Líbano, França e Alemanha, 2009,

93 min) – que a realidade da Guerra do Líbano, centrada na culpa e sofrimento dos soldados, veio à tona novamente. Como ressalta Yosef, “suas experiências (dos soldados) individuais traumáticas e memórias de guerra foram silen- ciadas e defenestradas da narrativa histórica nacional pela ideologia hegemônica israelense”8 (2010:314).

Ainda no pensamento do acadêmico israelense, Valsa com Bashir “expõe uma profunda ruptura, ou uma traumática descontinuidade, entre o passado e o presente – entre história e memória – e aponta para o declí- nio da memória histórica em Israel” (2011: 4). Tal ruptura é resultado do fenômeno que Paul Ricouer define

5 “… trauma is established through a relationship between two events: a first event that is not initially necessarily traumatic because when it occurs it is still too soon to comprehend its full significance; and a second event that may not be inherently traumatic in itself but does trigger a memory of the earlier, which is only then embedded with traumatic significance.”

6 “thème de l’innocence perdue…”

7 “This catastrophic event has been excluded from the Israeli national collective memory, and Folman feels a personal duty to try and remember the muted past.”

8 “Their individual traumatic experiences and memories of the war were silenced and cast out of the national historical narrative by the hegemonic Israeli ideology.”

Lebanon (2009) é outro filme is-

raelense a tratar dos traumas dos soldados que participaram da guerra em 1982.

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