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40 Valsa com Bashir: Subjetividade, Memória e Geopolítica no Documentário Contemporâneo

rado proveito da habilidade da câmera de registrar e revelar o mundo físico, ele progressivamente criou suas ilusões com a ajuda das técnicas peculiares do meio”7 (Ibdem:32).

Realismo e transparência: a ontologia do documentário

A discussão sobre a ontologia da imagem fotográfica, embora ainda viva - como demonstra Rouillé -, arrefeceu desde a segunda metade do século XX, sobretudo pelo sem número de manipulações e efeitos visuais empregados no cinema de ficção. Mas no documentário tal controvérsia nunca foi superada. Mais que isso, à questão da transparência imagética somavam-se outras como os limites no uso da reencenação, a manipulação das imagens e o respeito à cronologia dos fatos representados. O efeito verdade, o vínculo estrito à realidade, tinha ainda vários outros pré-requisitos na não-ficção.

Entretanto, tais questionamentos não recaíam sobre as obras não-ficcionais dos primórdios do cinema. O fascínio com o realismo da imagem projetada na tela à época era tamanha que neutralizava quaisquer contestações sobre a veracidade daquilo que era representado. A imagem era real demais, não poderia mentir. Não demorou para que o cinema fosse apro- priado pelos estados nacionais, interessados no uso do potencial informativo da imagem em movimento para fins políticos.

Tal movimento se deu, sobretudo, durante as guerras. O financiamento ostensivo de tais produções para fins de propaganda política colocavam a veracidade daquilo que estava sendo representado em segundo plano. As primeiras experiências nesse sentido aconteceram na guerra entre Estados Unidos e Espanha pelo controle de Cuba, em 1898. De acordo com Barsam, boa parte das cenas de combate, como a tomada do Monte San Juan, foram reencenadas em estúdio e apresentadas como verdadeiras, tudo com vistas a potencializar o efeito dramático e, consequentemente, o poder de persuasão do filme perante o público norte-americano (Barsam, 1992: 31 e 32).

O sucesso de tal estratégia incentivou uma verdadeira escalada de produções não-ficionais de viés político. Tal movimento atingiu seu auge durante a I Guerra Mundial, quando os aliados EUA, França e Reino Unido, utilizaram- -nas ostensivamente. Às precárias captações no campo de batalha somavam-se produções em estúdio que dramati- zavam o embate, mostrando o heroísmo das tropas aliadas e a iniqüidade dos alemães – principal nação do Eixo, no qual também lutavam a Itália, a Turquia e o Império Austro-Húngaro. Sanders e Taylor descreveram a estratégia:

O uso de filmes e fotografias para fins de propaganda proporcionavam uma ‘ilusão de realidade’ num tempo em que a crença geral era de que a câmera não mentia. (...) As imagens apresentadas eram, de fato, cuidadosamente encenadas. Enquanto às vezes havia algumas poucas imagens aparentemente realistas de soldados feridos no front, sempre existiam cenas dirigidas em estúdio que visavam mostrar a fadiga acompanhada de alegria. Os ferimentos pareciam recentes e rara- mente eram mostradas imagens e um soldado aliado morto, enquanto alemães mortos eram apresentados com freqüência. Somente as ações das tropas e as vitórias dos Aliados eram exibidas. (...) A intenção de retratar uma moral alta era óbvia, convencer a população civil, tanto internamente como nos países aliados e membros do Império, de que seus esforços eram válidos e estavam produzindo efeitos visíveis no

7 “Yet even though Méliès did not take advantage of the camera’s ability to record and reveal the physical world, he increasingly created his illusions with the aid of techniques peculiar to the medium.”

front de batalha.8 (Apud Barsam, 1992: 33)

Já no final da Guerra, o general alemão Erich Ludendorff, escreveu em seu diário: “A guerra demonstrou a superioridade da fotografia e do filme como meios de informação e persuasão. Infelizmente, nossos inimi- gos utilizaram-se de sua vantagem sobre nós neste campo de forma tão incisiva que nos infligiram grandes estragos”9 (Apud Barsam, Ibdem:37). O fato é que a I Guerra Mundial foi fundamental para consolidar a

produção de não-ficções, já que estimulou a criação de diversos órgãos estatais e fundações que passaram a financiar esse tipo de cinematografia, colaborando decisivamente para o seu desenvolvimento.

Finda a Guerra e suas imagens aberrantes de carnificina, o cinema não-ficcional entrou numa outra fase na qual as produções tornaram-se mais elaboradas e criativas. Foi a época dos filmes de exploração e dos primeiros filmes etnográficos, que diferenciavam-se das produções factuais estilo newsreel e actualités pela maior sofisticação narrativa e de montagem. Foram tais produções que inspiraram John Grieson a criar o termo documentário – o “tratamento criativo da realidade/verdade.”

Ícone deste tipo de cinematografia – para alguns autores, primeiro documentarista propriamente dito da história (Ibdem: 46) – foi o norte-americano Robert Flaherty. A maneira de observar e captar a vida das popu- lações nativas, sempre buscando representar a dignidade humana em seus confrontos contra a natureza, tornou- -se paradigma nas produções não-ficcionais.

O aporte da obra de Flaherty para o desenvolvimento da estética realista não poupou o pioneiro de críticas por conta de seus métodos de trabalho, que incluía o pagamento de nativos para representarem a si próprios – Nanook, protagonista do clássico Nanook of the North (1922) recebeu para seguir as orientações do diretor -, a predileção por mostrar o lado mais exótico em detrimento da verdadeira condição de vida das populações representadas e, o pior, apresentar como correntes rituais que já não eram mais praticados pelos povos.

Em Moana (1926), o ritual de passagem ao mundo adulto pelo qual foi submetido o nativo polinésio que repre- sentava o protagonista, título do filme, um sangrento e angustiante processo de tatuagem, era algo que não era mais praticado por aquela população. Flaherty teve de pagar para obter tal cena, que foi apresentada como “o rito que todo polinésio tem de passar para ter o direto de chamar a si mesmo de homem”10 (Apud Barsam, 1992: 51).

Richard Barsam entende que Flaherty estava mais preocupado em construir uma história, imaginada por ele próprio, baseada na vida dos nativos, do que mostrar a realidade em si daqueles povos. O que não diminuiu o valor inestimável da contribuição do diretor para o aprimoramento de equipamentos e técnicas para filmagens fora de estúdio. “A aparência realística, contudo, não necessariamente produz um filme realista”11 (Ibdem:54).

8 The use of films and photographs for propaganda purposes provided an “illusion of reality” at a time when it was generally believed that the camera could not lie. (…) The images presented were, in fact, carefully staged. While there were often several apparently quite realistic camera shots of wounded soldiers at the front, they were usually staged-managed in order to show fatigue being accom- panied by cheerfulness. Wounds were always freshly dressed and there were rarely pictures of Allied dead, although dead Germans did feature more often. Only Allied troops in action or Allied victories were exhibited. (…) The intention of portraying high morale was obvious, namely to convince the civilian population at home, in allied and Imperial countries that their efforts were worthwhile and producing visible effects at the front line.

9 “The war has demonstrated the superiority of the photograph and film as means of information and persuasion. Unfortunately, our enemies have used their great advantage over us in this field so thoroughly that they inflicted a great deal damage.”

10 “There is a rite through every Polynesian must pass to win the right to call himself a man.” 11 “A realistic ‘look’, however, does not necessarily make a realist film.”

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