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104 Valsa com Bashir: Subjetividade, Memória e Geopolítica no Documentário Contemporâneo

Ética e auto-referencialidade

Expor o trauma de soldados que participaram de uma “guerra iniciada pelo meu país, uma invasão brutal de um estado vizinho”15 (Folman, entrevista ao Cahiers Du Cinéma, junho de 2008: 30), apontar a responsabilidade, ainda

que secundária, do governo israelense no sombrio episódio classificado como genocídio pela ONU, e reconhecer a tragédia dos refugiados palestinos ao compará-los aos párias judeus durante a II Guerra Mundial.

Se aos olhos dos que estão acostumados a acompanhar o desenrolar do conflito Israel-Palestina por meio da cobertura enviesada e maniqueísta da mídia, o filme Valsa com Bashir demonstra coragem e revela a complexidade da sociedade israelense no trato da questão, para muitos, sobretudo entre os que moram lá, a premiada obra peca em termos de contextualização e, principalmente, em dar voz às vítimas de fato do massacre: os palestinos.

Para Dave Saunders, “Valsa com Bashir é crítico ao governo de Israel, mas não oferece conclusões políticas concretas, preferindo navegar de maneira elétrica pelo labirinto de experiências em direção ao ponto central de uma barbaridade sem sentido, que foi tornada possível, basicamente, por jovens inocentes, confusos e me- drosos” 16 (2010: 170). Já Anthony Lane questiona: “Qual é o conforto dado aos parentes das vítimas de Sabra

e Chatila (...) pelo fato de que alguns conscritos que estavam presentes e nada fizeram são agora livres para articular, até tornar lírica, sua dor interna?” 17 (Apud Saunders, 2010: 170).

O israelense Raz Yosef lembra que “a única maneira para que Folman mostrasse interesse para com as vítimas palestinas foi criando uma conexão com as vítimas judias” 18 (2011:153). O pesquisador entende que Valsa com

Bashir, assim como boa parte da produção cinematográfica que trata dos traumas e do conflito Israel-Palestina, são falhos em mostrar o outro ponto de vista, focando apenas em apresentar as situações nas quais os próprios israelen- ses figuram enquanto vítimas. Também pecam em apontar os excessos extremados das ações do exército israelense e em “reconhecer a responsabilidade pelos não-judeus vitimados pelo nacionalismo judaico”19 (Ibdem: 145).

Por meio de sua estética única, o filme examina criticamente a repres- são da memória do diretor acerca do massacre (...) e as implicações éticas de um trauma que nós não queremos ver e que nós preferiríamos ter esquecido. (...) Entretanto, Folman tira vantagem da responsabi- lidade ética que lhe foi confiada para contar apenas sua traumática história, sem dar a narrativa traumática palestina um espaço indepen- dente para si. O trauma de Folman, enquanto testemunha das atroci- dades, permanece central no filme, e é tão poderoso que incorpora o ‘trauma vicário’ dos palestinos. (Ibdem: 16)

O colunista político Gideon Levy, que escreve no jornal Hareetz, de orientação política de centro-esquerda, foi cáustico em suas críticas ao filme, distribuindo uma saraivada de impropérios contra a produção em um de seus

15 “C’était la première guerre initiée par mon pays, une invasion brutale d’un État voisin.”

16 “Waltz with Bashir is critical of Israel’s government, but offers no politically concrete conclusions, preferring to navigate its elec- trifying way through a maze of experience towards a middle-point of barbaric pointlessness made possible by basically innocent, confused, frightened youths.”

17 “What comfort is it to the relatives of Sabbra and Chatila victimns (...) that a few conscripts who stood by and did nothing are now free to articulate, and even lyricise, their internal pain?”

18 “... the only way that Folman can show any interest in the Palestinian victim is by creating a linkage with the Jewish victim.” 19 “... these films does not derive from a desire to confess to any crime or to take responsibility for the non –Jewish victims of Jewish nationalism.”

artigos. O texto – publicado às vésperas da cerimônia do Oscar de 2009, na qual Valsa com Bashir era indicado – classifica a obra como “irritante, perturbadora, ultrajante e enganosa” 20 (Hareetz, 19/02/2009). 21

Levy opinou que o filme até merecia o Oscar pela qualidade artística da animação, mas que também deveria receber “um emblema de vergonha por sua mensagem”22 . “Este filme é extraordinariamente irritante justamente

porque é feito com muito talento”23 , destacou. O colunista não perdoou o fato de Folman sequer ter mencionado a

violenta ofensiva do IDF contra a Faixa de Gaza, reduto do grupo extremista Hamas, no final de 2008 – a “Operação Chumbo Fundido” - em seu discurso de recebimento do Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro.

Para Levy, o filme é um “ato de fraude e dolo”24 , que só serviu para reforçar a “síndrome do nós atiramos,

nós choramos” 25. Para o jornalista, a obra carrega um traço de vitimização, “ingrediente absolutamente essen-

cial no discurso que se produz aqui em Israel.” 26

... apesar de tudo – incluindo a luz verde dada aos nossos lacaios, a Falange, para executar o massacre, e o fato de tudo ter acontecido num território ocupado por Israel – as mãos brutais e cruéis que vertem sangue não são as nossas mãos. Vamos levantar nossas vozes em pro- testo contra a selvageria de Bashir – tipos que nós bem conhecemos. E, claro, um pouco também contra nós mesmos por fecharmos os olhos, talvez demonstrar encorajamento (ao massacre). Mas não: aquele san- gue não é nosso. É deles, não nosso. (Ibdem)

O colunista entende que o cinema israelense é ainda por demais focado em mostrar os judeus enquanto vítimas, “os pesadelos são sempre nossos, só nossos” 27, e sentencia: “Nós ainda não fizemos um filme sobre o sangue do

outro, o qual nós temos derramado e continuamos a permitir que seja vertido de Jenin a Rafah - certamente não seria um filme que ganharia o Oscar”28 . Com menos eloquência, o pesquisador Raz Yosef, endossa a crítica de Levy.

20 “... the film is infuriating, disturbing, outrageous and deceptive...”

21 Todas as referências ao pensamento de Gideon Levy são relativas ao artigo disponível em http://www.haaretz.com/gideon-levy- -antiwar-film-waltz-with-bashir-is-nothing-but-charade-1.270528

22 “… a badge of shame for its message…”

23 “This is an extraordinarily infuriating film precisely because it is done with so much talent.” 24 “… It is an act of fraud and deceit…”

25 “... the ‘we shot and we cried’ syndrome...“

26 … another absolutely essential ingredient in public discourse here...”

27 “We have not yet made a movie about the other blood, which we have spilled and continue to allow to flow, from Jenin to Rafah – certainly not a movie that will get to the Oscars.”

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