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44 Valsa com Bashir: Subjetividade, Memória e Geopolítica no Documentário Contemporâneo

Com equipes menores e praticamente sem restrições de mobilidade, mudou a relação entre o diretor e os personagens do documentário. Assim nasceu um novo approach com a realidade, que ficou pejorativamente conhecido como fly on the wall (mosca na parede).

O filme ‘ideal’ então se tornou uma possibilidade: ele poderia ser feito em qualquer lugar, e não apenas mais num ambiente controlado como os estúdios; não precisava de mais luz do que aquela disponível (...); podia captar o som ao mesmo tempo em que ocorria na realidade, sem a necessidade de ser recriado em estúdio.13 (Barsam, 1992: 302)

A obsessão em representar uma percepção direta da realidade, não mediada, levou os realizadores dessa escola a renegarem muitas das tradições do filme documentário estabelecidas até então. Segundo Winston, a novidade le- vou a se questionar se toda a produção anterior ao cinema direto poderia ainda ser classificada como documentário (2000:25). Narração em off, reencenações in loco ou em estúdio, didatismo, não respeito à cronologia dos fatos, uso de trilha sonora, de gráficos ou de animações, passaram a ser medidas abominadas pela nova tendência.

O filme fundador do cinema direto nos Estados Unidos Primárias – Kennedy e a campanha presidencial

de 1960 (Primary, EUA, 1960, 53 min). A obra foi dirigida por Robert Drew – com o auxílio de outros reali-

zadores que se destacariam no estilo, como Richard Leacock e Albert Maysles -, jornalista que entendia que o estilo de narração no documentário e nos programas jornalísticos da TV era uma espécie de continuação da linguagem do rádio, só que com o suporte de imagens (Salles, 2005:28).

Em Primárias, a equipe de Drew acompanhou cinco dias de campanha dos dois pré-candidatos do Partido Democrata à presidência dos EUA – Hubert Humprey e John F. Kennedy - no estado de Wisconsin. A presença constante da câmera e a tentativa de tornar-se invisível perante o personagem levou Drew a alcançar feitos como captar a imagem de Humprey dormindo no carro e mostrar, pela primeira vez, a intimidade do casal John e Jackeline Kennedy para o público norte-americano.

Na França, Jean Rouch foi o pioneiro do estilo cinema vérité. Tal escola comungava com o cinema direto o objetivo de mostrar uma realidade sem mediações. Entretanto, não havia a pretensão dos realizadores de passarem desapercebidos diante dos fatos captados. Como diz Barsam, os documentaristas agiam como pro- vocadores das discussões suscitadas frente às câmeras (1992: 303 e 304). A intenção, segundo Gauthier, era fazer um cinema sem atores, o que ele batizou como “non-star system” (2008:9).

Exemplo acabado do cinema vérité é o filme Crônica de um Verão (Cronique d’un été, França, 1961, 85 min). Nele, Rouch e o sociólogo Edgar Morin vão às ruas de Paris perguntar a diferentes categorias de pessoas – migrantes, trabalhadores, estudantes - se elas são felizes. Desta maneira, conseguiram elaborar um retrato original da sociedade francesa da época. “O cinema direto encontrou sua verdade nos eventos disponíveis para a câmera. O cinema vérité era comprometido com um paradoxo: que circunstâncias artificiais pudessem trazer a verdade oculta para a superfície”14 (Erik Barnouw apud Barsam, 1992:304).

O fato é que seja o cinema vérité, mais focado na realidade do banal, seja o cinema direto, que priorizava grandes acontecimentos político-sociais e artísticos, redefiniram o “gênero” documentário e influenciaram profundamente não apenas o cinema como a TV. A prevalência de sua linguagem acabou por colocar em xeque

13 The ‘ideal’ film thus became a possibility: it could be made anywhere, not just in the controlled studio environment; would require no more than available light, and thus avoid the theatrical look of much studio lighting; would have the option to record reality either in color or in ’journalistic’ black and white; and would record sound as it occurred in actually, not as it was recreated in the studio. 14 “Direct cinema found its truth in events available to the camera. Cinéma vérité was committed to a paradox: that artificial circu- mstances could bring hidden truth to the surface.”

iniciativas posteriores que não seguissem a cartilha da transparência total da realidade. Não por outro motivo, o estilo acabou sendo alvo da ira de realizadores e pesquisadores da área de cinema, sendo taxado de ingênuo, utópico, superficial, arrogante, e daí por diante. Sobre isso, pondera João Moreira Salles:

Pode ser. Mas o que a grande maioria esquece é que, até a chegada da turma de Drew (e, honra seja feita, de Jean Rouch na França), o documentário estava em coma profundo. Respirava artificialmente, por meio do uso indiscriminado de recursos extra-imagem: locução, car- telas, trilha. A péssima ideia de que o filme não-ficcional seria antes de tudo um instrumento para ilustração de hordas desinformadas fez o gênero agonizar em salas vazias. Era de esperar, pois ninguém gosta de aula não solicitada. (2005: 31)

O cinema direto e o novo paradigma do documentário

O cinema direto e o cinéma vérité ainda desfrutavam do prestígio causado pelo novo approach realístico quando, em 1964, o pesquisador Peter Graham sentenciou na revista Film Quaterly: “(a escola observacional) não apresenta a verdade, mas a verdade deles. Quanto antes estiver enterrada e esquecida, melhor”15 (Apud

Saunders, 2010: 69). Provavelmente esta foi a primeira crítica contundente ao estilo direto. Mas, ao contrário do que desejava Grahan, tal escola não foi esquecida, muito menos enterrada.

A possibilidade de captar imagens e sons dos fatos, como se a câmera não estivesse ali, deu origem a outros cânones do cinema direto. A idealização da transparência estrita passou a condenar todo tipo de manipulação da imagem. Para Albert Maysles, “num certo sentido, editar é uma ficção, porque, na verdade, você está colo- cando as coisas juntas, está tirando as coisas do lugar”16 (Apud Plantinga, 1997: 10).

Já Jean-Louis Commoli entendia que todas as manipulações geravam um “coeficiente de ‘não-realidade’” no documentário, “um tipo de aura ficcional que se atraca nos fatos e eventos filmados”17 (Ibdem: 10). Mais

15 “(The observational school) present not the truth but their truth. The term cinéma vérité, by postulating some kind of absolute truth, is only a monumental red herring. The sooner it is buried and forgotten, the better”

16 “In a sense, editing is a fiction, really, because you’re putting it together, you’re taking things out of place.” 17 “… coefficient of’ non-reality”’, “ a kind of fictional aura attaches itself to the filmed events and facts.”

Crônicas de um Verão (1961):

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