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VESTIBULARES COMUNITÁRIOS: PROCESSOS, METODOLOGIA E EXPERIMENTOS EM FOCO

No documento Alfabetização e Letramento: volume II (páginas 97-106)

Foi desenvolvida pesquisa longitudinal em uma turma de curso pré-vestibular comunitário do Movimento Humanista sediado no Centro Tecnológico da UFRJ na Ilha do Fundão. O experimento, que durou um semestre, voltou-se para os conflitos entre fala e escrita e suas repercussões ao ensino. Procurou-se romper a tendência tradi- cional, introduzindo os princípios imanentes aos empregos linguísticos que, naturalmente, seus usuários processam de forma inconsciente, especialmente quando não dominam o discurso acadêmico escrito, de maior prestígio, com estrutura textual própria e empregos de cons- truções linguísticas ajustadas ao cânone. É importante salientar que o professor de língua materna deve ter a preocupação de promover a inclusão social e, desde muito cedo, colocar seus alunos em contato com diferentes registros, gêneros e estilos formais.

Realizou-se, também, um questionário sociocultural para tomar conhecimento mais completo do perfil dos alunos. Foram selecio- nadas algumas variáveis julgadas relevantes para a análise dos dados: faixa etária; conclusão ou não conclusão do ensino médio; monitoramento ou não monitoramento em relação aos fenômenos linguísticos tomados para análise.

Os experimentos foram executados dentro do ambiente de pré-vestibular, com a necessária autorização coordenação do curso e o consentimento dos alunos, embora não tivessem conhecimento dos aspectos linguísticos em exame. Os pesquisadores acompanharam o trabalho como professores da turma e procederam às testagens em tempo real. Selecionaram para exame alguns processos variáveis que tendem a migrar da fala para a escrita, redundando em construções grafemáticas erradas, bem como marcas entonacionais e de pausa que, por vezes, devem ser registradas, outras vezes, não devem ser marcadas na escrita.

A escolha por abordar o emprego variável do pronome de terceira pessoa, na escrita, em função acusativa em posição pós-verbal, deu-se pelo fato de o clítico átono praticamente ter desaparecido na fala, continuando, no entanto, a ser a variante prestigiada, cujo uso é

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98 recomendado em estilos formais (OMENA, 1978). Conforme encon-

trado nos resultados da turma monitorada, há evidências da migração do ele acusativo da fala para a escrita observada como se segue:

(1a) Eu encomendei um bolo. Vamos cortá-lo? (clítico átono em função acusativa)

(1b) Eu encomendei um bolo. Vamos cortar ele? (clítico tônico em função acusativa)

O fenômeno da concordância verbal foi também tomado para o experimento, com vistas à confirmação da pressão de algumas variáveis sobre a escrita. A distância entre o verbo e o núcleo do sintagma nominal, a inversão da posição direta (SVO) em outras posições (VSO ou OVS) “criam” um campo propício para a não concor- dância, tal como na fala (NARO; VOTRE, 1996). Têm-se, então: ordem com distância/ordem sem distância, deslocamento e ordem como variáveis focalizadas, como nos exemplos (2a) e (2b).

(2a) Carlos, que adora jogar futebol com seus amigos, pensa em jogar no Flamengo.

(2b) Carlos, que adora jogar futebol com seus amigos, pensam em jogar no Flamengo.

Sob perspectiva da Sociolinguística Educacional, que propõe metodologia orientada para se trabalhar o universo variacional da língua com problemas no letramento (BORTONI-RICARDO, 2003; LABOV 1972; MARCUSCHI, 2001; MOLLICA, 2003), partiu-se do pressuposto de que a heterogeneidade linguística, tal como a homogeneidade linguística, não é aleatória, mas regulada e motivada por variáveis internas e externas ao sistema das línguas. Existem condições específicas que operam para favorecer ou desfavorecer o uso de uma ou de outra forma variável em contextos diversos,

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99 tanto na fala quanto na escrita, sendo que há processos que não

migram por princípios de retração (MOLLICA, 2010). Note-se que Marcuschi (2001)Nlança a proposição de uma visão não dicotômica das relações entre oralidade e escrita, postulando um contínuo fundado nos gêneros textuais em que se manifesta o uso da língua no dia a dia, partindo do pressuposto de que falar e escrever bem não é ser capaz de adequar-se às regras da língua, mas de usar as estruturas linguísticas adequadamente para produzir efeitos de sentido pretendidos em situações diferenciadas.

Os experimentos consistiram em apresentar o modo inovador de aplicação de dinâmicas pedagógicas. A título de exemplificação, apresenta-se aqui duas experiências descritas passo a passo. Tendo por base a meta estabelecida, considera-se importante, no primeiro contato com a classe, conscientizar os alunos de que a relação entre fala e escrita não é dicotômica. Sendo assim, em sala de aula, foi discutida a coexistência de textos falados que apresentam muitas marcas da língua escrita, modalidade em geral mais planejada, normatizada, na mídia televisiva especialmente, em contexto de telejornal. Contudo, pesquisas vêm comprovando a existência de textos não tão planejados, alguns deles até imprecisos e carentes de contextualização, tal como um bilhete pregado em porta da geladeira, com a mensagem “Fui! Volto cedo se der”, exemplo bem extremado para fins de compreensão didática neste artigo.

Todas as aulas foram ilustradas com exemplos contextualizados e próximos à realidade dos alunos. A fim de elucidar a discussão, duas caixas foram desenhadas no quadro: uma representando a fala e outra, a escrita, refletindo, dessa forma, que os recursos dos textos falados e escritos provêm, a título de exemplificação, ora de uma caixa, ora de outra, a depender do efeito de sentido pretendido numa dada situação.

A dinâmica consistiu em conscientizar os alunos, enquanto falantes/usuários, acerca da influência da fala na escrita e o uso adequado do português padrão no âmbito da concordância verbal. Inicialmente, tentou-se, ao máximo, não se deter à Nomenclatura Gramatical Brasileira. Durante a exposição, apoiando-se na carga gramatical que cada falante adquire da língua no decorrer dos anos escolares, selecionamos trechos de produções textuais elaborados pelos próprios alunos:

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(I.) “A sociedade é muito influenciada pelas más notícias que lhe são passadas pelo rádio ou televisão e se fecham, se enganam sem se dar uma chance de viver num mundo melhor, onde elas próprias puderam construir e perceber que as aparências enganam”.

Segundo pesquisas sociolinguísticas, o falante do português tende naturalmente a fazer concordância da esquerda para a direita (quando a oração é construída na ordem canônica), seguindo uma gramática já internalizada. Sabemos que os contextos caracterizados com distância entre o verbo e o núcleo do sintagma nominal e com a inversão da ordem direta VSO ou OVS constituem inversão da ordem canônica do português e cria um campo propício para a não concordância.

(II.) Carlos, que adora jogar futebol com seus amigos, (pensa ~ pensam) em jogar no Flamengo.

(III.) Os pais de Pedro (adora ~ adoram) levá-lo para passear.

(IV.) Paula e Maria (passou ~ passaram) as férias em Brasília.

(V.) Caiu com o enorme vendaval de ontem árvores e telhas.

Os experimentos sobre concordância verbal incidiram, predo- minantemente, nas diferenças naturais que os falantes de língua portuguesa encontram. A ordem invertida entre sujeito e verbo e a distância entre os elementos das sentenças foram destacados preferencialmente nas propostas pedagógicas durante as aulas.

No que concerne a usos de pronomes, a escolha por abordar o emprego variável do pronome de terceira pessoa, na escrita, em função acusativa em posição pós-verbal, deveu-se ao fato de que o clítico átono praticamente desapareceu na fala (segundo resul- tados de pesquisas sociolinguística voltadas para a fala); no entanto, continua sendo variante prestigiada, cujo uso é recomendado em estilos formais (OMENA, 1978).

Busca-se, no acompanhamento longitudinal da turma escolhida para pesquisa, estimular a sensibilidade dos alunos em relação à variação estilística. Os educandos foram levados a perceber diferenças

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101 de estilos formal e informal, enfocando-se o uso do pronome de

terceira pessoa ele em função acusativa em (a) textos orais informais e em (b) textos argumentativos. Exemplos: (a) Amanda está lá fora. Vamos chamar ela? (b) Os hambúrgueres fazem parte dos hábitos alimentares dos jovens. Embora comê-los não seja saudável.

Os alunos foram submetidos a um teste diagnóstico em que completavam as sentenças propostas que poderiam ter as seguintes possibilidades de uso sempre salientadas por pesquisas acadêmicas (OMENA, 1978). Vale observar que os exemplos a seguir estão dispostos em gradação estilística, do mais formal ao mais informal:

eu encomendei um bolo. Vamos cortá-lo (clítico átono);

eu encomendei um bolo. Vamos cortar o bolo. (SN) + (v);

eu encomendei um bolo. Vamos cortar 0 (posição vazia);

eu encomendei um bolo. Vamos cortar ele (clítico tônico).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste texto, enfocaram-se questões referentes à transferência da fala para a escrita. Os resultados da pesquisa, em classes de vestibu- lares comunitários ou mesmo durante todo o Ensino Fundamental e Médio, possibilitam atestar que:

(a.) tanto maior o grau de oralidade quanto mais difícil o registro canônico na escrita;

(b.) estratégias de ensino e de aprendizagem que levem em conta a relação fala/escrita favorecem a apropriação da norma culta.

É relevante, portanto, insistir na importância de a escola desen- volver usos linguísticos monitorados, tanto na escrita quanto na fala. A pesquisa demonstra que é relevante a intervenção cuidadosa por

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102 parte do docente bem qualificado, seja em classes seriadas, seja

em EJA, seja em cursos preparatórios, ao ingresso de sujeitos que pleiteiam a formação de nível superior.

Pesquisas de mesma natureza mostram-se procedentes e urgentes. O diálogo entre teoria básica no mundo acadêmico e os desdobramentos aplicados constitui políticas afirmativas, aguardadas há muito nos países em desenvolvimento, dado que promovem inclusão social por meio de domínios distintos e adequados à linguagem falada e escrita. O conflito entre fala e escrita é dissolvido se praticada diretriz pedagógica adequada, de forma sistemática, subsidiada por orientações de pesquisas teórica e descritiva das construções linguísticas em diversos contextos de uso.

O esforço de Políticas Públicas tem procurado corrigir as distor- ções históricas no âmbito educacional em nosso país. Ainda persiste um longo caminho a percorrer, no sentido de diminuir o fosso entre a oralidade e a escrita. O desafio de todos é o de transferir o letra- mento social para o letramento escolar e vice-versa, proporcionando maior número de brasileiros conscientes e atores de distintos papéis na matriz social contemporânea.

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6ª SEÇÃO

Letramento literário e

No documento Alfabetização e Letramento: volume II (páginas 97-106)