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Vivenciar papéis em uma nova realidade

No documento MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 82-87)

Ao se tratarem questões ligadas à imigração e ao relacioná-las com a constituição de identidades, propõem-se também noções de personagem sugeridas por Ciampa (2006). O personagem não perde a relação com o papel em que atua. Numa linguagem dramatúrgica, somos atores sociais quando desempenhamos papéis sociais determinados. Porém, eventualmente, além de simples ator, cada um pode construir sua personagem, com maior ou menor criatividade, tornando-se assim também autor. De alguma maneira, esta noção de personagem contém sempre algum grau de transgressão, porque assim se deixa de seguir simplesmente o que é convencionalmente posto. É uma transgressão que ao mesmo tempo exige criatividade, pois, ao abandonar o convencional, há que haver originalidade. “Logo, uma identidade concretiza uma política e dá corpo a uma ideologia” (CIAMPA, 2006, p.10).

Almeida (2005) acrescenta que a interpretação de papéis viabiliza a participação do indivíduo em seu meio social uma vez que aprender um papel implica na aquisição de elementos cognitivos e afetivos, embutidos também de normas, valores e emoções

83 vinculados ao papel interpretado. Fonseca, 1988 citado por Almeida (2005, p. 56) salienta: “o desempenho de papéis entranha-se em nossa existência cotidiana até o nível de formas extremamente diluídas (...) estruturam pontualmente nossas ações, até os níveis mais sutis.”

Pensando-se o fenômeno migratório à luz da identidade de papel desempenhada pelo imigrante em sua condição no novo país, é importante destacar-se como este imigrante virá a alcançar o desenvolvimento da sua identidade do EU (emprestamos este conceito de Habermas, 1983). Na leitura de Pescatore (1989), a identidade do eu tratada por Habermas, coloca o sujeito se descobrindo como alguém independente dos papéis que desempenha e que, justamente assim, se torna pessoa, passando de uma identidade a partir do desempenho de papéis, para uma identidade do EU- a ação adquire nova forma: Na fase em que adquire a identidade do eu, o sujeito é capaz de compreender e aplicar normas reflexivas e a partir de princípios, distingue autonomia de heteronomia. Porém, nem todos chegam à identidade do eu, pois é a identidade de papéis colocada pela sociedade que muitas vezes se mantém. A identidade de papéis pode ser mantida e estimulada, ganhando forma de identidade pressuposta, por vezes associada a uma trama que prende o indivíduo à repetição e assim, à mesmice de seu personagem que o impede de alcançar a mesmidade.

Ao refletir acerca de tais questões, inspira-nos mais uma vez, Ciampa (2003) quanto ao sentido da vida, a ser entendido como luta ininterrupta e incansável pela emancipação humana:

A identidade, individual ou coletiva é sempre a história de nossa metamorfose em busca de emancipação que nos humanize. A emancipação, que dá o sentido ético à metamorfose, pode ser impedida ou prejudicada pela violência, pela coerção, invertendo a metamorfose como desumanização. É assim que se revela a natureza intrinsecamente política da identidade. A destruição, a degradação e a indignidade de pessoas e grupos são formas de metamorfose, em última análise, provocadas pelo modo heterônomo por um poder interiorizado subjetivamente e- ou apenas- exteriorizado objetivamente. Ou seja, quase sempre, senão sempre, há um conflito político que se estabelece entre a pretensão de uma identidade social, de um lado, como auto-afirmação e hetero- reconhecimento de um projeto emancipatório e, de outro, hetero-afirmação de um projeto coercitivo ou de dominação. (p.3)

84 O autor entende a metamorfose humana como progressiva e infindável concretização histórica do vir-a-ser humano, que se dá sempre como superação das limitações das condições objetivas existentes em determinadas épocas e sociedades (CIAMPA, 2012). É desta forma, no enfrentamento e na superação das dificuldades, que seres humanos podem nascer e renascer para a vida. A partir da compreensão do processo de metamorfose enquanto construção das personagens pode-se vislumbrar a questão da emancipação enquanto resultado das metamorfoses do eu.

Metamorfosear pode ser entendido como reconhecer-se e ser reconhecido como humano auto determinar-se (CIAMPA, 2012). O projeto emancipatório está relacionado ao momento histórico e social, bem como, com a inserção do indivíduo nestes. O desenvolvimento da identidade nestes âmbitos estará ligado ao projeto de emancipação individual, mas também com suas relações ao longo da vida.

(...) a identidade pessoal não pode ser entendida como fenômeno meramente individual, mas acima de tudo relacional. Ela se constitui a partir de nossas relações sociais, definindo, consequentemente, nossa localização na sociedade. (CIAMPA, 2003 p. 8).

Como as experiências migratórias marcam a vida dos sujeitos? Além disto, questiona-se a condição de opressão muitas vezes vivenciada por estrangeiros em suas experiências cotidianas no novo país de residência e a influência disto na constituição de suas identidades.

Poderia esta condição colaborar com o surgimento de possibilidades emancipatórias na luta por sobrevivência e melhores condições de vida? Na busca pelo descobrimento do mundo, realização de sonhos e vivência de liberdade, qual é o significado de ser um imigrante? Propõe-se ir além, pensando-se a condição específica destes sujeitos: O que significa estar preso a uma condição da qual não se pode fugir e nem se pode negar: - a própria origem! Como se configura o futuro a partir desta condição posta? Desta forma, como se dá a constituição da identidade do imigrante? Como ela é elaborada em seu cotidiano e por que compreender este processo é relevante?

85 Pescatore (1989) explica que, na busca da concepção de si mesmo, o sujeito recolhe em si valores que constituem o ambiente social e integra as concepções que os outros têm dele. Esta busca por si mesmo e a necessidade de inventar o que deve ser, caminha junto à internalizações sociais ocorridas desde a infância e com consequentes papéis assumidos e desempenhados até então. Logo, ao migrar, o sujeito traz uma concepção de si que deverá ser de alguma forma reestruturada no novo país, de acordo com a nova realidade e também com o novo papel que desempenha.

Sayad (1998) ao explanar a condição do imigrante traz reflexões que contemplam as colocações supracitadas:

(...) contradição fundamental, que parece ser constitutiva da própria condição do imigrante, impõe a todos a manutenção da ilusão coletiva de um estado que não é nem provisório nem permanente, ou, o que dá na mesma, de um estado que só é admitido ora como provisório (de direito), com a condição de que esse “provisório” possa durar indefinidamente, ora como definitivo (de fato), com a condição de que esse “definitivo” jamais seja anunciado como tal. E, se todos os atores envolvidos pela imigração acabam concordando com essa ilusão, é sem dúvida porque ela permite que cada um componha com as contradições próprias à posição que ocupa, e isso sem ter o sentimento de estar infringindo as categorias habituais pelas quais os outros pensam e se constituem os imigrantes, ou ainda pelas quais eles próprios se pensam e se constituem (...). (p.46)

De acordo com o autor, a sociedade daria a devida importância (lê-se existência) aos imigrantes apenas quando constituem um “problema”, ou seja, quando não mais fazem aquilo que se espera deles (trabalhar, por exemplo), ou mesmo quando começam a buscar participação na vida social em contextos de atuação política. Desta forma, pensa-se o imigrante situado entre o ser e o não ser social61. Em resposta a tal

61

Em evento intitulado “Desigualdades, deslocamentos e políticas públicas na imigração e refúgio” discutiram-se políticas públicas relacionadas às questões dos imigrantes e refugiados. Neste debate foi feita a relação entre imigrantes e a loucura. A palestrante, Professora Felícia Knobloch discutiu sobre a loucura como sendo o grande tema em saúde pública nos anos 80 e 90 e atualmente, o imigrante é colocado junto ao “status” de louco, uma vez que é visto em todas as instituições por onde passa como portador da síndrome stress pós-traumático, e assim enquadrado como sofredor de um problema mental originado pelo “trauma da imigração.” Parte-se do pressuposto que a imigração em si será sempre problemática, ocasionadora de grandes problemas para o indivíduo e sociedade. Os desdobramentos disto para a identidade do sujeito, bem como, os impactos emocionais são enormes. (Simpósio Desigualdades, deslocamentos e políticas públicas na imigração e refúgio. 8 e 9 de novembro, 2013. Memorial da América Latina. Coordenação: Miriam Debieux Rosa, Sandra Luzia de Souza Alencar, Taeco Toma Carignato, IIana Mountian, Luiz Palma).

86 problemática gerada pelo entorno, o indivíduo pode responder com a mesmice de seu personagem, encarnando o que dele se espera.

Ainda nas palavras deste mesmo autor:

(...) é por fim, a sociedade de imigração que, embora tenha definido para o trabalhador imigrante um estatuto que o instala na provisoriedade enquanto estrangeiro e que, assim, nega-lhe todo o direito a uma presença reconhecida como permanente, ou seja, que exista de outra forma, que não na modalidade de uma presença apenas tolerada, consente em tratá-lo, ao menos, enquanto encontra nisso algum interesse, como se esse provisório pudesse ser definitivo ou pudesse se prolongar de maneira indeterminada. (SAYAD, 1998, p.46)

Com a desculpa do uso do etnocentrismo para descrever qual imigrante é “educável”, ou “consertável” ou “evoluível”, sobretudo quando este é reforçado por aqueles que estão na posição de dominantes é assim todo o incentivo ao discurso proferido sobre todas as iniciativas moralizantes às quais os migrantes são submetidos.

Salienta-se a inter-relação que se pode fazer entre os estudos de identidade e suas contribuições para a compreensão das relações migratórias, trazendo a junção destas idéias para o que se entende constituir-se de um amplo projeto de Psicologia Social; Traduzido nos dizeres de Guareschi et al. (2003, p. 32):

Uma das marcas da Psicologia Social, tomada como um projeto mais amplo é a importância que esta deve dar ao contexto onde se dá a ação social, ao foco localizado e historicamente específico, à atenção às especificidades e particularidades articuladas a uma conjuntura histórica determinada, produzindo, então, pesquisas e teorias engajadas nas práticas e lutas sociais e nas diferenças culturais que constituem e são constituídas através das relações das pessoas. O interesse central da pesquisa dentro da área da Psicologia Social é perceber intersecções entre as estruturas sociais, os grupos sociais, a cultura, a história e as relações que as pessoas constroem e passam a ser construídas por elas (...).

Finalmente, a importância da concepção de identidade, junto aos fenômenos migratórios, proporciona a criação de novas formas do coletivo e também propicia a reflexão acerca dos modos de socialização dos indivíduos em um mundo globalizado. Lembrando que o conhecimento do sujeito deve ser deste em movimento, possuidor e também buscador de possibilidades emancipatórias e que se faz conhecer, necessariamente, por sua subjetividade.

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Capítulo 3

Anamorfose e o sujeito imigrante: usos do conceito na compreensão

No documento MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 82-87)

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