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137DA CRISE AMBIENTAL AO AMBIENTE COMUM: BEM VIVER

No documento DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA (páginas 136-146)

Claudiomar Bonfá58 Daniel Rubens Cenci59

RESUMO: Pretende-se com o presente trabalho aprofundar o conhecimento sobre a crise ambiental, a ideia do desenvolvimento sustentável e o Bem Viver. Parte-se da hipótese que a ideia de desenvolvimento sustentável não é capaz, nos moldes atual, de garantir a preservação do planeta para as futuras gerações, ao contrário da ideia do Bem Viver. A partir de revisão bibliográfica e método hipotético dedutivo será aferido o conceito de crise ambiental, bem como, se a ideia do desenvolvimento sustentável concebido no Relatório Brundtland, consistente no uso racional e sustentado dos recursos naturais é capar de preservar, eficazmente, o meio ambiente para presente e futuras gerações. é realmente eficaz para a preservação. Igualmente, aferir se essa capacidade é encontrada na ideia do Bem Viver. A conclusão é que este, por sua convivência harmônica com o meio ambiente – à mãe Terra –, é a alternativa.

Palavras-chave: Bem Viver. Crise ambiental. Desenvolvimento sustentável. Pachamama.

INTRODUÇÃO

Após o início da Idade Moderna a humanidade passou por significativas experiências políticas, sociais, econômicas, a forma que passou a se enxergar no mundo e às suas relações para com a natureza, sempre à busca do desenvolvimento da humanidade fundada no conhecimento científico surgente e na razão humana.

O presente trabalho adota do método hipotético dedutivo, com emprego da abordagem qualitativa, a partir de pesquisas bibliográficas para aprofundar os conhecimentos sobre as causas e consequências dessa relação do homem com a natureza, pois acredita-se que esse processo alterou significativamente a forma com que o homem passou a enxergar e relacionar-se com a natureza como sendo mera fonte inesgotável de recursos à disposição da satisfação dos interesses econômicos e que esse foi o fator gerador do que conhecemos como crise ambiental, problema que será enfrentar no primeiro capítulo.

A opção alternativa à crise ambiental foi a ideia do desenvolvimento sustentável para assegurar a exploração dos recursos naturais de forma controlada de sorte a salvaguardar o planeta e ecossistema.

Na prática, a ideia não foi capaz de ecologizar a economia, ao contrário, possibilitou ao interesse econômico capitalista neoliberal precificar e capitalizar os recursos naturais e prosseguir no processo de apropriação e degradação.

A partir dessa premissa, é possível que a conciliação do homem com a natureza capaz de garantir a coexistência harmoniosa que a exploração dos recursos naturais em nome do desenvolvimento econômico seja afastada para dar lugar a um processo de não exploração, de uma relação de colaboração recíproca, de respeito recíproco, capaz de preservar o ecossistema do planeta para a atual e futuras gerações, seja a prática do Bem Viver, que será abordado no último capítulo.

58Mestrando em Direitos Humanos pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI. Espe- cialista em Didática do Ensino Superior pela Faculdade de Ciências Biomédicas de Cacoal – FACIMED. Especialista em Direito Eleitoral pela Escola Superior de Advocacia – ESA. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Rondônia – UNIR, Campus de Cacoal. Advogado. E-mail: adv.bonfa@hotmail.com.

59 Doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Paraná – UFPR, Mestre em Direito pela Univer- sidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, Professor dos Programas de Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos e Mestrado em Sistemas Ambientais e Sustentabilidade. Coordenador do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Justiça Social e Susten- tabilidade. E-mail: danielr@unijui.edu.br

1 A CRISE AMBIENTAL

A partir da teoria de Locke (1994) de que o homem se torna proprietário60 de tudo aquilo que alterar do estado comum da natureza com a sua força de trabalho, o homem passa a ser proprietário da caça, da pesca, dos frutos colhidos e da terra cultivada61. A burguesia capitalista, segundo Marés (2003), tratou de se apropriar desta fundamentação teórica para justificar o direito de acumulação de propriedade, inclusive daquela produzida pela força de trabalho alheia, mediante a contratação. Assim, a relação homem eurocentrista x natureza sofre um processo de transformação. As necessidades de exploração dos bens naturais necessários à subsistência da humanidade começam a dar lugar à exploração por interesses econômicos, de acumulação de bens e de capital, especialmente metais nobres e pedras preciosas, florestas, etc. A natureza passa a ser vista somente como a “fonte provedora” e inesgotável de recursos e riquezas.

Segundo Cenci (In: CENCI e SCHONARDIE, orgs. 2014, p. 21), a dimensão do sagrado se volta exclusivamente ao ser humano ao passo que a natureza passa a ser relegada a “objeto a ser dominado pelo homem”. Dessa ruptura teocêntrica de elementos entre homem e natureza aquele é posto pela ciência como “superior à dimensão ecológica e natural”, logo, podendo intervir “sobre os bens naturais para o seu próprio desfrute e felicidade”. Eis a base da crise ambiental.

A Revolução Industrial (1750) alargou a necessidade de matérias primas para alimentar a indústria e, consequentemente, aumentou também a busca de recursos naturais acelerando o processo de exploração econômica do meio ambiente e a sua degradação, mas foi a partir da detonação da primeira bomba nuclear no deserto do México (16/07/1945) que se constatou a “capacidade apocalíptica atingida pelo homem de autodestruição”, conforme relata Estenssoro (2014, p. 61). A publicação, na década de 1960, da obra Primavera Silenciosa, da biológica Raquel Carson62, alertando para as possíveis consequência do uso excessivo de agrotóxicos (elixires da morte, segundo a autora) nos Estados Unidos nas décadas de 1940-50, que poderia destruir o meio ambiente e sua diversidade: o fim da primavera, começaram a revelar os problemas na forma de exploração.

Contribuíram para alavancar as discussões, os “avanços na disseminação da ecologia como disciplina científica” e a publicação de escritos da comunidade científica, “que assumem uma atitude militante diante de problemas relacionados com a crise ambiental”, “o impacto da mídia sobre os primeiros acidentes que geram grandes desastres ecológicos63, o surgimento de um movimento social ecologista e/ou ambientalista contemporâneo” (ESTENSSORO, 2014, p. 61). Estenssoro ainda destaca outros dois fatores históricos: “Dia da Terra”, realizado em 1970, nos Estados Unidos, quando os “cidadãos foram chamados para lutar contra a poluição que os afetava” e a publicação do relatório do Clube de Roma, “Os limites do Crescimento”, em 1972. (idem, p. 60).

O conceito de crise surge, portanto, quando a ideia de progresso é substituída pela incerteza. A crença histórica de que o progresso contínuo, ininterrupto e crescente do bem-estar e da felicidade que a modernidade depositou na racionalidade humana e na capacidade científica para desvendar o mundo e dominá-lo em benefício da sua felicidade” (ESTENSSORO, 2014, p. 53-54) começa a ser confrontada no século XX quando se tornou “impossível ter a certeza de que a civilização está se movendo na direção adequada” (Ob. Cit. p. 54). O grande avanço técnico que produziu o desenvolvimento de uma civilização industrializada também trouxe consequências inesperadas: “a ameaça nuclear, os desastres ambientais, a destruição da camada de ozônio, a possibilidade de esgotamento dos recursos naturais, a poluição industrial, o desmatamento, dentre outros” (Ob. Cit. p. 56).

60 “... sendo este trabalho uma propriedade inquestionável do trabalhador, nenhum homem, exceto ele, pode ter o direito de pertencer de tal forma, ou seja, fazer parte dele, que ninguém mais possa ter o direito sobre eles, antes que ele possa usufruí-los para o sustento de sua vida” (Locke, 1994, p. 42).

61 Antes, norteado pela fé cristã, cultivava a ideia de um Deus que criou a Terra e tudo o que nela existe e os entregou ao ser humano, a quem incumbiu o direito de usufruir de todos os recursos naturais disponíveis. Praticar a caça, a pesca, colher os frutos da natureza e desmatar florestas para o cultivo eram, assim, um “direito natural” segundo a concepção de São Tomás de Aquino e outros teóricos ligados ao cristianismo.

62 Obra citada por Estenssoro (2014, p. 72) e cuja resenha encontra-se disponível em https://portal.unisepe.com.br/unifia/

wp-content/uploads/sites/10001/2018/09/085_PRIMAVERA-SILENCIOSA-uma-resenha.pdf, acesso em 10 ago. 2020.

63 Vale do Meuse, Bélgica (1930), provocando a morte de 60 pessoas; Londres, Inglaterra (1952), “A Névoa Matadora”, que ocasionou mais de quatro mil mortes; Baía de Minamata, Japão (1954), lançamento industrial de várias toneladas de mercú- rio no oceano.

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Estenssoro (2014, p. 59) considera como o grande marco que colocou o problema ambiental como pauta na agenda pública mundial foi a realização da 1.ª Conferência sobre o Meio Ambiente Humano realizada em Estocolmo em 1972, organizado pela Organização das Nações Unidas, pois

Naquela ocasião afirmou-se formalmente que o mundo estava enfrentando uma crise ambiental global e que a partir desse momento ações conjuntas seriam iniciadas para superar este problema, criando, entre outras medidas, o Programa das nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA).

Cenci (Ob. Cit., p. 23) faz coro com Estenssoro quanto ao marco do reconhecimento mundial do problema ser a Conferência de Estocolmo, eis que foi nessa que os Estados participantes afirmaram que

... o mundo poderia enfrentar uma crise ambiental global, decorrente da forma predominante de vida alcançado pelos seres humanos. Apontou-se que por ignorância ou omissão a humanidade vinha causando danos potencialmente irreparáveis ao meio ambiente terrestre, bem natural do qual dependia a vida e o bem-estar humano, assim como todo o processo de vida na Terra.

Foi a partir deste momento histórico que os países membros da Organização das Nações Unidas (ONU), mesmo aqueles não atingidos diretamente por algum desastre, reconhecem que a ação humana estava ge- rando alterações no meio ambiente (inclusive atmosfera e oceanos) que ultrapassavam às suas próprias fronteiras e com impacto negativo sobre toda a biosfera, à fauna, à flora e à espécie humana. Nesta condição, reconhecem o dever de buscar soluções em articulação internacional entre todos os Estados. Cenci (Ob. Cit., p. 29-30) fundamentando-se em Soares (2003) aponta-na como “marco referência da tomada de consciência da importância de os Estados estruturarem uma legislação ambiental na qual as questões econômicas não causem danos irreparáveis o meio ambiente”. Daí nasce o Direito Ambiental Internacional64, com o “reconhe- cimento de que o meio ambiente é único e para todos os povos, independentemente dos limites de um país ou continente” (Ob. Cit., p. 30-31), não podendo ser discutido e tratado isoladamente por cada país ou nação.

Entre Estocolmo e Rio ocorreu um encontro das Nações Unidas em Nairóbi (1982), quando foi criada a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente, a qual veio a apresentar, após 4 anos de trabalho, o Relatório Brundtland, onde apareceu a primeira vez o termo “desenvolvimento sustentável”, (Ob.

Cit., p. 34). Nestas duas décadas, segundo Cenci (Ob. Cit., 2014, p. 35) as catástrofes ocorridas65

“comprovaram que as medidas que estavam sendo tomadas para a preservação do meio ambiente foram insuficientes para evita-los”, demonstrando que as soluções globais capazes de evitar catástrofes de tamanha magnitude dependiam de ações de todos os países, o que levou à convocação da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO-92).

Se há mais de 6 (seis) décadas a discussão científica acolhida nos debates e Conferências da Organização das Nações Unidas demonstra a crise ambiental e a necessidade de preservar o sistema ambiental no qual estamos inseridos, por que ainda estamos poluindo e degradando o Meio Ambiente?

Estenssoro (2014, p. 29) considera que a questão ambiental é, antes de tudo, uma questão política. A nossa distinção entre as demais espécies e entre nós mesmo é que agimos de acordo com a nossa consciência, nossa “permanente criatividade e invenção” o que nos leva a entender e enfrentar os problemas de maneiras diferentes e é exatamente aí que começam os problemas políticos. “Nenhum progresso técnico ocorre sozinho e nenhum diagnóstico de ecologia ou ciências da terra, isolado irá resolver a crise ambiental” (Ob. Cit., p. 31) enquanto diferentes grupos humanos têm realidades ambientais locais distintas, têm rendas discrepantes, têm desigualdade social acentuada entre os grupos – e dentro do próprio grupo –, com necessidades próprias. Daí não ser possível negar que a tecnologia, as Ciências Naturais e outras dão uma importante contribuição para o conhecimento do fenômeno da crise mundial, mas é possível afirmar que “a crise ambiental é fundamentalmente um fenômeno político e sua solução só será possível no campo da política” (Ob. Cit., 2014, p. 31).

A discussão sobre a crise surgiu nos Estados Unidos, como vimos, quando o governo norte

64 Contudo, somente na Conferência do Rio de Janeiro, em 1992, foi empregada pela primeira vez a expressão “Direito Ambiental Internacional” (Ob. Cit. p. 32).

65 Seveso, Itália (1976), considerado o maior acidente industrial da Europa; Canadá (1978), com a queda do satélite artifi- cial Cosmos 924, espalhando radiação; petroleiro Amoco Cadiz, no Mar do Norte (1978); Bhopal, Índia (1984), vazamento em uma fábrica de pesticidas, o que causou o lançamento de substâncias tóxicas e letais na atmosfera; Chernobyl, Ucrânia (1986), explosão de um reator nuclear. matou cerca de 80 mil pessoas por radiação, dentre outros.

americano manifestou interesse sobretudo visando encontrar soluções para garantir a “segurança dos Estados Unidos”. Estudos e relatórios oficiais chegaram à grande conclusão de que o “perigo” para o meio ambiente era o acelerado crescimento populacional nos países de terceiro mundo. Estenssoro (2014, p. 107) indica o relatório elaborado pela Comissão presidida por John D. Rockefeller, em 27 de março de 1972, que destacava: “Buscamos e não encontramos nenhum argumento econômico convincente para a contínuo crescimento da população. A saúde de nosso país não depende dela, nem a vitalidade dos negócios nem o bem-estar das pessoas em média”.

Outro documento secreto (que veio a público em 1980), elaborado pelo Conselheiro de Segurança Nacional e Secretário de Estado, Henry Kissinger, citado por Estenssoro, indica os números e a origem das preocupações: o Terceiro Mundo e o seu crescimento demográfico, conforme se afere do fragmento do relatório colecionado pelo autor:

(...) O efeito é que a população mundial se duplica a cada 35 anos, em vez de a cada 100 anos [...]

O segundo aspecto novo da tendência populacional é o contraste entre os países ricos e pobres.

Desde 1950, a população dos países ricos tem crescido a uma taxa de 0,5% a 1% ao ano, enquanto que nos países pobres a taxa seja de 2% a 3,5% por ano (duplicando-se em 20 a 35 anos). [...] são danosas para a estabilidade interna e as relações internacionais de países em cujo progresso os EUA estão interessados, criando assim problemas políticos e inclusive de segurança nacional para os EUA [...]66 (ESTENSSORO, 2014, p. 108).

Em outro relatório, também citado e parcialmente transcrito por Estenssoro (2014, p. 110-111),

O mundo no ano 2000. Relatório ao Presidente”, confeccionado a partir de estudos desenvolvidos por Gerald O. Barney, constou:

[...] As tensões demográficas, ambientais e impactos sobre os recursos naturais se intensificam cada vez mais e determinarão a qualidade de vida humana em nosso planeta. Essas tensões já são fortes o suficiente para negar a muitos milhões de pessoas a satisfação das necessidades básicas, tais como alimentação, moradia, saúde e emprego, bem como a esperança de qualquer melhora.

Ao mesmo tempo, a capacidade de carga do planeta, a capacidade dos sistemas biológicos para fornecer recursos para satisfazer as necessidades humanas se deteriora. [...]

Observa-se, nos documentos mencionados, a preocupação em conter o crescimento populacional nos países do Terceiro Mundo para combater a escassez dos recursos naturais e não a preocupação de abster- se de práticas poluidoras nos países de Primeiro Mundo. Estenssoro observa que o crescimento e a indus- trialização dos países do Terceiro Mundo é o que representa a crise ambiental na percepção do governo americano (e seus aliados ricos). Essa percepção pode ser demonstrada na seguinte equação de Estenssoro:

O crescimento da população do Terceiro Mundo + industrialização do Terceiro Mundo + planeta finito + possível expansão comunista = esgotamento = desequilíbrio do ecossistema = ameaça à qualidade de vida e segurança americana e do Primeiro Mundo. (ESTENSSORO, 2014, p. 111).

Essa ideia difundida trouxe o controle de natalidade como medida para combate-la. Alguns países subdesenvolvidos, inclusive da América Latina, chegaram a aderir à ideia de controle de natalidade por acreditarem que a origem do subdesenvolvimento era o largo crescimento populacional e não perceberam que se tratava de uma estratégia de sua espoliação pelos países ricos. Mas alguns países pobres resistiram à ideia e reivindicaram que os maiores poluidores – os ricos – deveriam arcar com os custos da recuperação e de reduzir e eliminar práticas poluidoras e, ao mesmo tempo, não aceitaram renunciar ao seu próprio desenvolvimento. O impasse prevalece com a predominância do interesse econômico – e de desenvolvimento –, ou seja, eminentemente político, sobre o interesse ambiental. Exemplo desse impasse foi a Conferência RIO+20, realizada em junho de 2013, na busca do desenvolvimento sustentável que, para Cenci (in: CENCI e SCHONARDIE, orgs. 2014, p. 42)

[...] tal evento não atingiu os reais objetivos, uma vez que as divergências de interesse entre os países desenvolvidos e os países denominados emergentes acabaram por gerar um documento final limitado a inúmeras intenções e o adiamento das definições e decisões práticas de proteção ambiental em âmbito internacional que seriam efetivamente assumidas por todos os países.

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Segundo Guimarães e Fontoura (2012, p. 19) a Conferência Rio+20 poderia ser melhor classificada como Rio-20, “uma vez que não produziu avanço significativo algum em relação à Rio-92, exceto o de manter o desafio do desenvolvimento sustentável na agenda de preocupações da sociedade” em um verdadeiro “divórcio entre discursos e compromissos concretos por parte dos governos”. Ou seja, marcou a capacidade dos atores de “antecipar, perceber e comunicar” os problemas enfrentados pelas mudanças ambientais ao mesmo tempo que evidenciou a “incapacidade para ‘atuar’ em sintonia com o discurso, cujo problema está, segundo os autores, “na vontade [na falta de vontade] política para ‘agir’” (Ob. Cit., p. 30).

Destacam ainda Guimarães e Fontoura (2012, p. 30) a interferência de interesses de setores,

“como revelam as situações do setor privado versus movimentos sociais ou países desenvolvidos e países em desenvolvimento”. E nesse sentido afirma Araújo (2016) que

a problemática da crise está relacionada à dependência dos países subdesenvolvidos diante dos países desenvolvidos e porque as trocas comerciais são muito desiguais, o que perpetua a pobreza e a miséria dos países subdesenvolvidos e pobres, sendo também responsáveis pela degradação ambiental dos ecossistemas mundiais de importância fundamental para a sociedade global.

Portanto, a questão não é só política, como também é o reflexo dela na própria sociedade incapaz de solucionar os problemas de desigualdade entre as nações e as desigualdades existentes dentro da própria nação, especialmente pelo fato de o poder da sociedade, sobretudo das classes menos favorecidas, “não tem conseguido se estabelecer frente aos interesses do poder econômico, sempre representado e aliado ao Estado”. Se o “Estado representasse a sociedade e executasse de fato as ações de interesse coletivo social, alguns problemas sociais seriam ao menos amenizados.” (ARAÚJO, p. 62), assim como também seriam amenizados os problemas ambientais, eis que o agir dos Estados neste aspecto também é influenciado pelo poder econômico e não pelo interesse da população.

2 IDEIA DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: NÃO ENFRENTAMENTO DA CRISE AMBIENTAL A partir da consciência da crise ambiental, conforme retro, surgiu a percepção de que a apropriação da natureza em nome do desenvolvimento econômico estava em oposição à necessidade de preservação dessa natureza, mas que a preservação era necessária. Esse antagonismo representou um óbice ao discurso – e aos objetivos – econômico liberal, pois a ideia de preservar o meio ambiente como garantia de sobrevivência da própria humanidade ganhava mais força do que a do desenvolvimento econômico em si.

A partir dessa percepção os fundamentos teóricos e ideológicos que impulsionavam e legitimavam o crescimento econômico perdem força em face da questão ambiental. Surge, como novo paradigma, o discurso do desenvolvimento sustentável como equilíbrio entre a economia e o ambiente sustentando ser possível assegurar a manutenção da espécie humana e do sistema planetário em condições ambientais adequadas sem abster do crescimento econômico e do desenvolvimento. A ideia ganhou predomínio na medida em que a economia internacional se globalizava. “A noção de sustentabilidade emerge, assim, do reconhecimento da função de que a natureza cumpre como suporte, condição e potencial do processo de produção”67 (LEFF, 2006, p. 134).

O informe Brundtland68, também intitulado de “Nosso futuro comum”, formulou o conceito de desenvolvimento sustentável “como ‘processo que permite satisfazer as necessidades da população atual sem comprometer a capacidade de atender às gerações futuras’”. A partir desse momento, “a noção de desenvolvimento sustentável converteu-se no referente discursivo e no ‘saber de fundo’ que organiza os sentidos divergentes em torno da construção de sociedades sustentáveis”. (LEFF, 2006).

A economia ecológica, assim, traz um olhar crítico sobre a degradação ecológica e energética resultante do processo de produção e consumo tentando equilibrar a equação. “No entanto, a produção continua guiada e dominada pela lógica de mercado” e a proteção ambiental é “considerada um custo e condição do processo

67 Ainda nesse sentido (LEFF, 2006, p. 114) salienta que “As políticas de desenvolvimento sustentado se inscrevem nas vias de ajuste que a economia neoliberal aportaria à solução dos processos de degradação ambiental e ao uso racional dos recur- sos ambientais; ao mesmo tempo, responde à necessidade de legitimação da economia de mercado, que em seu movimento inercial resiste ao estampido que lhe foi determinado pela sua inércia mecanicista.”.

68 Relatório elaborado em 1987 pela ex-primeira-ministra norueguesa Gro Harlen Brundtland, pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CMMAD).

econômico, cuja ‘sustentabilidade’ depende das possibilidades de valorização da natureza” (LEFF, 2006).

A construção do discurso do desenvolvimento sustentável cumpriu, assim, o papel de afastar da dialética e do imaginário o conceito de crise ambiental e a ideia de um planeta finito, para o predomínio do discurso neoliberal que “afirma que já não existe contradição entre ambiente e crescimento” (LEFF, 2007, p. 22). Porém, a preservação e proteção ao meio ambiente restou imperceptível. Nesse sentido, critica Leff (2006, p. 137)

No entanto, o discurso do desenvolvimento sustentado chegou afirmar o propósito de tornar sustentável o crescimento econômico através dos mecanismos do mercado, atribuindo valores econômicos e direitos de propriedade aos recursos e serviços ambientais, mas não oferece uma justificação rigorosa sobre a capacidade do sistema econômico para incorporar as condições ecológicas e sociais (sustentabilidade, equidade, justiça, democracia) deste processo através da capitalização da natureza.

Não se verificou a ecologização da economia e sim uma nova estratégia capitalista de privatização/

apropriação do meio ambiente transformando-o em mercadoria ao mesmo tempo em que afastou a contradição entre necessidade de preservação ambiental e crescimento econômico. Segundo Leff (2006, p. 139), “O discurso do desenvolvimento sustentável promove o crescimento econômico negando as condições ecológicas” e os “limites e possibilidades de uma economia sustentável.”.

Para o citado autor, a natureza foi incorporada em duas operações: internalizando os custos ambientais do progresso atribuindo valores econômicos à natureza, de um lado, e, ao mesmo tempo, instrumentalizando uma operação simbólica – um cálculo de significado – que recodificou o homem, a cultura e a natureza como formas aparentes de uma mesma essência: o capital (LEFF, 2007, p.

23). Agregada à essa incorporação, também acompanha o discurso de que o mercado, através da precificação, é capaz de contornar os problemas e, pelo progresso, reduzir as desigualdades de desenvolvimento e garantir a felicidade de todos. Contudo,

Esse discurso promete alcançar seu propósito sem uma fundamentação sobre a capacidade do mercado de dar o justo valor à natureza e à cultura; de internalizar as externalidades ambientais e dissolver as desigualdades sociais; de reverter as leis da entropia e atualizar as preferências das futuras gerações” (LEFF, 2007, p. 24).

A partir dessa perspectiva de valoração econômica, converte-se a necessidade de preservação em compensação econômica da natureza degradada, como o sequestro de crédito de carbono, o pagamento em pecúnia à comunidade indígena, quilombola ou ribeirinha atingida pelos impactos ambientais decorrentes da construção de uma hidrelétrica, rodovia ou ferrovia. Mas não se abstém da apropriação da natureza e seus recursos naturais; de causar o dano e o impacto ambiental; de reduzir ou eliminar a redução de dióxido de carbono e dos gases que causam o efeito estufa para assegurar a incessante busca do progresso e do crescimento econômico.

Enquanto se promove a apropriação, aplica-se o discurso de causas naturais para justificar os gran- des desastres ambientais decorrentes do superaquecimento global provocado pela emissão de gases poluentes e pela extinção de vegetação (secas, incêndios, desertificação, furacões, inundações) ou do desparecimento de espécies – pela completa destruição do seu habitar ou por uso indiscriminado de agro- tóxicos – que por sua vez, permite a proliferação de outras espécies maléficas ao ambiente e ao próprio homem (nuvens de gafanhotos, por exemplo). Com a classificação desses eventos como “desastres natu- rais”, camufla-se a verdadeira causa que são as alterações climáticas e no ecossistema e no planeta terra.

Outro problema decorrente da valoração e precificação da natureza é exatamente a de converter um valor ambiental em um valor econômico – e depois fazer esse valor econômico corresponder ao valor de preservação ambiental – ante a impossibilidade de se converter em pecúnia o valor ambiental e social do ar que respiramos, do equilíbrio ecológico e da qualidade de vida proporcionada pelo sistema ecológico planetário equilibrado.

Quando se indeniza – se é que podemos chamar de indenização – os povos próximos ao empreendimento o sistema de valoração/precificação não leva em consideração – e nem precifica – os impactos causados às espécies locais e nem ao restante da humanidade que também serão impactadas em sua qualidade de vida pelas alterações climáticas. Nesta perspectiva, o poder econômico espolia toda a humanidade na medida que se apropria de recursos que antes beneficiava a

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