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O CASO NUESTRA TIERRA VS. ARGENTINA

No documento DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA (páginas 178-186)

Diogo Vieira da Cunha do Amaral Reis83 Wellen Pereira Augusto84

RESUMO: A proteção do meio ambiente no Direito Internacional se mostra recente e em vias de consolidação. O reconhecimento do ambiente como direito humano é o tema desta pesquisa, na qual toma como marco a construção de um greening, isto é, de adoção de política de proteção do meio ambiente por via reflexa de outros direitos humanos, até que se dê uma efetiva proteção internacional no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, por meio do caso “Comunidades Indígenas Membros da Associação Lhaka Honhat (Nuestra Tierra) vs. Argentina”. O trabalho utiliza desse caminho paradigmático para constatar uma nova tutela jurídica do meio ambiente como direito autônomo, com a interpretação suficiente do art. 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Desse modo, o trabalho auxilia na compreensão e efetivação do meio ambiente como inerente à proteção de outros direitos.

Palavras-chave: Meio ambiente. Direitos Humanos. Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Nuestra Tierra. Lhaka Honhat.

INTRODUÇÃO

A crise ambiental que atravessa o mundo é iminente. Falar isso, não é, como parece, ser alarmista, é observar os fatos que ocorrem no planeta e a relação com o desequilíbrio ambiental causado pelo ser humano. Por isso que, desde meados do século XX, as instituições nacionais e internacionais debatem o tema, na busca de soluções para a crise. O mesmo ocorreu às instituições jurídicas, e por isso o tema tornou-se de extrema relevância para o Direito.

A questão é ainda mais grave quanto à proteção ambiental no sistema internacional de proteção de direitos humanos. Seja no sistema mundial ou onusiano, seja nos sistemas regionais, é notável a necessidade de efetivação de normativas ambientais em seus tratados, ainda que tenha sido relegado a soft law ou a protocolos facultativos aos textos principais desses sistemas. Por isso, a evolução do greening, isto é, é a proteção do meio ambiente de forma reflexa/indireta a partir de outros direitos humanos, é importante marco desta abertura.

Utilizando como recorte o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), será analisada essa forma particular de proteger o meio ambiente a partir da Comissão e da Corte Interamericanas.

Logo após, será analisada a proteção do meio ambiente como direito humano autônomo na Convenção Americana de Direitos Humanos, a partir da novel interpretação no caso “Comunidades Indígenas Membros da Associação Lhaka Honhat (Nuestra Tierra) vs. Argentina”. Defende-se que é um marco histórico-jurídico importante para a caminhada na efetivação de um meio ambiente sadio.

1 A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DO MEIO AMBIENTE COMO DIREITO HUMANO

O caráter difuso dos problemas ambientais levou os sujeitos do Direito Internacional Público a

83 Especialista em Direito Constitucional e Administrativo pela UNIT. Bacharel em Direito pelo CESMAC. Advogado. Membro do Grupo de Pesquisa “Direitos Humanos e Cidadania” (Unochapecó). Email: dvieirar@hotmail.com

84 Pós-graduanda em Direitos Humanos pela UFFS e Direito Constitucional pela ABDConst. Membra do Grupo de Pesquisa

“Direitos Humanos e Cidadania” (Unochapecó). Email: wellen._@hotmail.com

avançar na discussão sobre cooperação cosmopolita em relação à proteção ecológica e ambiental. Em razão disso, ainda que incipiente, os Estados passaram a pactuar compromissos que consideram o meio ambiente o núcleo de exercício de direitos humanos civis, políticos e sociais.

O marco inicial da preocupação ambiental do multilateralismo é a Conferência de Estocolmo, na Suécia, em 1972. Trata-se da primeira conferência mundial, realizada pela Organização das Nações Unidas (ONU), com a temática do meio ambiente, bem como sobre sua importância e a necessidade de proteção e uso dos recursos naturais, seu elo com o desenvolvimento econômico e a característica intergeracional de sua tutela global, o que culminou na Declaração sobre o Meio Ambiente Humano (MAZZUOLI, 2019, p. 1368-1369).

Para Tiago Fensterseifer, é com a Conferência que há reflexo na ordem jurídica e especialmente no Direito Internacional, da ideia de um direito fundamental ao meio ambiente, à qualidade e equilíbrio, enquanto essencial à promoção da dignidade humana e do bem-estar (FENSTERSEIFER, 2008).

A partir disso, a integração da proteção ambiental, tanto em âmbito nacional quanto internacional, deu seus primeiros passos. No plano internacional, tem-se a Convenção sobre a Diversidade Biológica, de 5 junho de 1992, adotada no Rio de Janeiro, a qual tem o intuito de preservação e conversação da biosfera, contemplando diversidade biológica e recursos naturais, de modo que tem caráter intergeracional e, por isso, opta pela “harmonia ambiental” entre as presentes e futuras gerações (MAZZUOLI, 2019, p. 1381).

Da Convenção, surge o Protocolo de Nagoia, adotado no Japão em 23 de outubro de 2010, já assinado pelo Brasil à época da 10ª Conferência das Partes (COP) ou COP 10, e recentemente aprovado na Câmara dos Deputados pelo Decreto Legislativo nº 324/20, aguardando a aprovação pelo Senado e a promulgação no ordenamento interno. O tratado adicional garante a repartição equitativa de recursos genéticos, o que beneficia comunidades tradicionais e protege a propriedade intelectual, patrimônio cultural e aproveitamento dos recursos nessa esfera (CLIMAINFO, 10 jul. 2020).

No mesmo espaço de tempo, durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 4 de junho de 1992 (Rio 92), foi produzida a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) e em 1995 teve início as negociações de seu Protocolo Adicional, o Protocolo de Quioto, o qual teve compromissos a partir de 2008 (NAÇÕES UNIDAS, [s. d.]).

Percebeu-se, desde logo, a necessidade de mitigação e adaptação às emissões de gases que causam o efeito estufa (GEE), criando um mercado de carbono, de compensação entre países desenvolvidos.

Na mesma esteira, em 2015 iniciam-se as negociações do Acordo de Paris, durante a 21ª Sessão da ONU, também voltado às mudanças climáticas, o qual teve tamanha adesão por partes dos Estados, com metas a serem cumpridas até 2030 (NAÇÕES UNIDAS, 2015).

Quanto aos temas interligados ao meio ambiente saudável, tem-se a Convenção de Minamata, a qual trata dos riscos de uso de mercúrio e consequente exposição, a qual teve seu texto final aprovado em 19 de janeiro de 2013, em Genebra (MERCURY CONVENTION, 2019).

No âmbito regional, o Acordo de Escazú, adotado na cidade homônima, na Costa Rica, em 04 de março de 2018, vai tratar sobre o acesso à informação, à participação, à decisões envolvendo o meio ambiente, bem como o fortalecimento da cooperação a fim de proteger o direito de cada um a um ambiente sadio e um desenvolvimento sustentável (NAÇÕES UNIDAS, 2018).

Por sua vez, no âmbito nacional, o direito ao meio ambiente equilibrado e ao desenvolvimento sustentável teve início com a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), promulgada pela Lei nº 6.938/1981, além da Constituição Federal de 1988 em seu art. 225, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), promulgado pela Lei nº 9.985/2000 e a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), promulgada pela Lei nº 12.305/2010.

No entanto, a proteção do direito ao meio ambiental como direito humano interligado aos demais sufragou uma discussão lenta e obstruída pelos interesses econômicos e financeiros dos Estados, não obstante, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), formado por representantes advindos dos Estados-membros da Organização dos Estados Americanos (OEA), também se inseriam na celeuma política e enviesada. Basta rememorar que os países latino-americanos são, em sua expressiva maioria, países considerados em desenvolvimento, e essa catalogação impediu o reconhecimento de aplicação imediata de direitos sociais.

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2 A CONSOLIDAÇÃO DE UM SISTEMA DE PROTEÇÃO DE DIREITOS HUMANOS NA AMÉRICA E A QUESTÃO DO MEIO AMBIENTE

A criação de um Direito Internacional dos Direito Humanos permitiu a ascendência de sistemas regionais de proteção, tal como o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, composto pela OEA, Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e Comissão Interamericana de Direitos Humanos, os quais admitem dispor de instrumentos para a efetivação de direitos humanos no continente.

Ainda que de natureza subsidiária, os sistemas internacionais de proteção formam princípios e diretrizes de adoção pelos Estados, em âmbito interno, como promoção de um desejo comum do direito internacional e da comunidade internacional, que é precisamente a efetivação de direitos fundamentais (MAZZUOLI; TEIXEIRA, 2013).

Corrobora com esse entendimento sobre o sistema, a professora Flávia Piovesan, ao compreender o sistema internacional como uma garantia de proteção adicional dos direitos humanos em caso da ineficiência da proteção nacional, além de consagrar padrões protetivos mínimos como paradigma para ordenamentos jurídicos internos (PIOVESAN, 2013, p. 67).

No entanto, as normas relativas ao meio ambiente sadio não eram consideradas exigíveis, o que tornava frágil a proteção de direitos humanos relativos. Isso é agravado pela ausência de força jurídica dos documentos internacionais relativos ao meio ambiente, tendo em vista ter natureza de soft law, isto é, funcionam como orientações morais aos Estados, contudo, não os vinculam e impedem sanções em caso de descumprimento de tais normas. Não havia, assim, qualquer sistema de proteção do meio ambiente (ou de outros direitos de solidariedade) ou organização intergovernamental criada para promovê-la (MAZZUOLI; TEIXEIRA, 2013).

O maior desafio do direito internacional ambiental é, pois, implementar e dar cumprimento ao arcabouço de normas ambientais internacionais. Pelo reconhecimento desta dificuldade, surge o mecanismo do greening, utilizado como forma de compensar a ausência de um sistema internacional focado na proteção do meio ambiente e, também, com a intenção de buscar a almejada efetividade do direito ao meio ambiente equilibrado.

Entende-se por greening o mecanismo empregado pelos tribunais internacionais com fim de combater a falta de vinculação dos tratados relativos ao meio ambiente, por meio de uma interpretação

“ecologizada” de outros tratados, especialmente os relativos a direitos civis e políticos, é dizer,

“escrever verdes por linhas tortas” (MAZZUOLI; TEIXEIRA, 2013).

Greening ou “esverdeamento” é, portanto, a proteção, pelos órgãos jurídicos internacionais, de preceitos ambientais, como forma de proteger o ser humano, que se dá sobre direitos como a vida, a propriedade e até a liberdade religiosa. Trata-se de compensar os defeitos do sistema internacional em relação a direitos ambientais, uma vez que, internacionalmente, estes, por si só, não são capazes de gerar lides e/ou punições aos Estados, mesmo quando tais sujeitos assinam compromissos e posteriormente os descumprem. Em outros casos, como no sistema interamericano de direitos humanos, questões ambientais não são citadas nos documentos principais85, cabendo ao próprio greening suprir essa ausência.

Uma outra corrente compreende problemas em se reconhecer a proteção do meio ambiente por via reflexa, isto é, apenas se demonstrada a tutela concernente aos demais direitos – civis, políticos, sociais ou culturais (MAZZUOLI; TEIXEIRA, 2013).

A ausência de uma conexão, ou seja, o resguardo do meio ambiente como um bem em si mesmo, gera a rejeição de uma queixa ou petição proposta no Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Trata-se de instrumentalização da natureza, eis que haverá tutela e se alcançará proteção somente quando a natureza estiver atrelada à violação de direitos do homem. Esse entendimento, portanto, é questionável, e atualmente ganha força a corrente contrária, de que deve haver proteção da dignidade de outras formas de vida além da humana (SARLET; FENSTERSEIFER, 2013).

Porém, diante da falta de uma forma mais eficaz de tutela, essa é, por enquanto, a melhor maneira de resguardar violações ao meio ambiente. Mazzuoli e Teixeira demonstram que o greening

85 Em se tratando da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) somente há previsão de tema ambiental em seu Protocolo Adicional, também chamado de Protocolo de San Salvador, especificamente em seu artigo 11, concluído em 1988 (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 1988) e promulgado pelo Brasil em 1999 (BRASIL, 1999).

é o meio mais apropriado, atualmente, para defender direitos que per si não têm proteção (MAZZUOLI;

TEIXEIRA, 2013).

Percebe-se, desta maneira, a importância do greening no movimento internacional, uma vez que, apesar de suas vicissitudes, contribui de forma a diminuir a lacuna jurídica existente no sistema internacional em termos de salvaguarda dos direitos relativos ao ambiente.

Para além do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, o greening é aplicado também no Sistema Europeu e até no sistema global, representado pela Corte Internacional de Justiça. O sistema europeu é visto como mais expansivo, já que envolve o meio ambiente numa seara pluritemática (MAZZUOLI; TEIXEIRA, 2013). Ressalta-se, por isso, que os órgãos interamericanos não estão isolados na aplicação desse mecanismo, uma vez que há uma tentativa global de alcançar um meio ambiente equilibrado em matéria de direitos humanos.

Tanto a Corte quanto a CIDH utilizam-se do greening para “esverdear” a Convenção, sendo que a maioria dos casos diz respeito a direitos de comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas. Essa “timidez” é motivo de críticas, já que limita bastante os casos que serão avaliados (MAZZUOLI; TEIXEIRA, 2013).

Na Comissão, cita-se o caso “Yanomami v. Brasil”, decidido no ano de 1985, e que foi o primeiro caso de “esverdeamento” da Convenção, no qual, reconhecendo a omissão do governo brasileiro, decidiu-se que a construção de uma rodovia em seu território violava diversos direitos da comunidade indígena, dentre eles, a vida, a liberdade, a segurança, a saúde e o bem-estar. O órgão interamericano recomendou ao Estado a delimitação e demarcação da Reserva Indígena Yanomami, bem como adoção de medidas sanitárias preventivas e curativas para garantir a vida e a saúde dos indígenas expostos, dentre outras (COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 1985).

Outros casos tratados pela Comissão que merecem destaque são: “Comunidades indígenas Maia de Toledo v. Belize”, “Povo Indígena Kichwa de Sarayacu e seus membros v. Equador” e “Comunidades indígenas Ngöbe e seus membros do Vale do Rio Changuinolá v. Panamá”. Na decisão de Maia de Toledo v. Belize, a Comissão recomenda que o Estado em questão repare dano ambiental causado nas terras dessa comunidade por madeireiras. Dessa forma, os instrumentos da CIDH devem ser interpretados e aplicados de acordo com a evolução do direito internacional em matéria de direitos humanos. Embora não haja menção expressa, diante de tudo que já foi exposto, pode-se colocar o greening como exemplo – dos mais notáveis – dessa construção.

Em todos esses casos percebe-se como a Comissão protege a própria noção de meio ambiente equilibrado, a partir dos direitos “não-ambientais” dos povos indígenas e outros, ressaltando, ainda, a forte interrelação existente entre as diversas espécies de direitos, sobretudo com a natureza, base da vida e da própria subsistência do homem.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), por sua vez, cuida de situações parecidas com as da Comissão, relativas a povos indígenas e comunidades tradicionais, como os casos “Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni v. Nicarágua”, “Moiwana v. Suriname” e “Comunidade Indígena Sawhoyamaxa v. Paraguai), os quais tiveram direitos violados pela força do interesse econômico e pela atuação arbitrária ou inércia do Estado (MAZZUOLI; TEIXEIRA, 2013).

Os direitos protegidos são os mais variados, como propriedade coletiva86, vida, saúde, integridade pessoal. A Corte inovou, de mesmo modo, ao reconhecer o dano espiritual, diante da chacina cometida pelo exército de um Estado contra uma comunidade indígena e por macular suas terras. Nota-se que

“[…] a Corte Interamericana tem demonstrado um notável esforço de vincular temas ambientais a questões de proteção de direitos humanos” (MAZZUOLI; TEIXEIRA, 2013).

No mesmo sentido observa-se pela atuação da Comissão, um esforço que deve ser apreciado, visto que busca a garantia de direitos com inúmeros textos, mas pouca aplicação em âmbito internacional, como se dá com os direitos ambientais.

Em meados do ano de 2017 foi criada a Relatoria Especial sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (REDESCA), a qual atua no âmbito da CIDH. A partir disso, entendeu-se a ampliação da proteção de direitos humanos pela via da Comissão, de modo que é possível aprofundar esses direitos de maneira transversal, permitindo, ainda, o desenvolvimento de uma dogmática específica em matéria de DESCA (PIOVESAN; ANTONIAZZI; CRUZ, 2020, p. 208-209).

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Um reflexo dessa atuação foi a emissão da Opinião Consultiva nº 23/17 (OC-23/17), de 15 de novembro de 2017, a qual versa sobre meio ambiente e direitos humanos, meio ambiente equilibrado e desenvolvimento. Nessa oportunidade, “a Corte IDH frisou que existe uma interdependência, relação intrínseca e necessária, portanto, indissociável, entre a ideia de direitos humanos, meio ambiente e o desenvolvimento sustentável”. Aliado a isso, reconhece-se que a proteção dada pelo artigo 11 do Protocolo de San Salvador87 estava inclusa no rol de proteção de direitos sociais prevista no artigo 26 da CADH88 (ALMEIDA, 16 mai. 2019).

O fato é que essa interpretação em forma de greening remete à elevação do meio ambiente a direito humano e o esverdeamento das normas protetivas, o que resulta em novos padrões mínimos de atuação judicial dos Estados-membros na interpretação da legislação interna, utilizando como paradigma a própria jurisprudência e opiniões consultivas da Corte IDH e as recomendações da CIDH.

3 O MEIO AMBIENTE NO CENTRO DA PROBLEMÁTICA DE DIREITOS HUMANOS: O CASO NUESTRA TIERRA VS. ARGENTINA

Dando um passo a mais nas decisões da própria Corte, que apenas protegiam reflexamente o meio ambiente a partir de outros direitos a partir do greening, a Corte IDH dá uma sentença paradigmática no caso “Nuestra Tierra”, entendendo o meio ambiente, além de outros direitos, sociais, econômicos e sociais, como exigíveis pela Corte, indo além da sua interpretação habitual do artigo 26 da CADH.

Trata-se do caso “Comunidades Indígenas Membros da Associação Lhaka Honhat (“Nuestra Tierra”) vs. Argentina”, onde uma associação de povos indígenas (Lhaka Honhat), vai à Corte Interamericana em razão da omissão do Estado argentino em garantir e respeitar o direito das comunidades de desfrutarem de suas terras ancestrais, cuja propriedade já tinha sido declarada anteriormente como pertencente a esses povos, mas vinha sendo utilizada por não-indígenas, por criollos.

O caso chegou à Comissão em 1998, a qual emitiu medidas cautelares para assegurar o livre exercício da propriedade comunal e do meio ambiente no ano 2000. Apesar das propostas de soluções amistosas, estas restaram infrutíferas, eis que a Província de Salta desistiu de acordar com a Associação. Diante disso, o caso foi enviado à Corte em 2018.

São 132 comunidades, dividas entre as etnias Wichí (Mataco), Iyojwaja (Chorote), Nivacklé (Chulupí), Qom (Toba) y Tapy’y (Tapiete) que passam a reivindicar a titulação das terras após a redemocratização na Argentina. A Constituição de Salta reconhecia o direito originário desde 1986 e compromete-se a titulá-las em 1991, em nome de todas as comunidades, de modo que assim forma- se a Associação (CARRASCO; ZIMMERMAN, 2006).

O conflito se dá na província de Salta, próximo às fronteiras do Paraguai e da Bolívia, nos chamados lotes 14 e 55 (que totalizavam 643.000 hectares). Desde 1991, a associação reivindica a propriedade, mas o Estado argentino, de acordo com dados extraídos pela Corte, atua de formas diferentes ao longo do tempo, sem garantir o usufruto dessas terras. Como consequência da omissão estatal, diversas atividades dos criollos estavam gerando degradação de recursos naturais e da biodiversidade, como o corte ilegal de madeira, o sobrepastoreio e a criação de gado, contaminando a água em razão das fezes dos animais e violando inúmeros direitos daqueles povos indígenas.

Analisado o caso, a Corte decidiu de forma paradigmática que o Estado argentino, por omissão, violou diversos direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais (DESCA), condenando-o a restituir o pleno uso da terra àqueles povos, devendo também garantir os direitos ao meio ambiente equilibrado, à alimentação e a água potável, devendo o Estado, inclusive, realizar estudos que identifiquem

87 Diz o referido artigo: “Artigo 11. Direito a um meio ambiente sadio. 1. Toda pessoa tem direito a viver em meio ambiente sadio e a contar com os serviços públicos básicos. 2. Os Estados Partes promoverão a proteção, preservação e melhoramen- to do meio ambiente.” (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 1988).

88 Diz o referido artigo: “Artigo 26. Desenvolvimento progressivo. Os Estados Partes comprometem-se a adotar providên- cias, tanto no âmbito interno como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de con- seguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados.” (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 1969).

situações críticas de falta de acesso à água potável ou alimentação, para, assim, criar um plano de ação para garantir tais direitos, com estudos que também fundamentem ações que garantam a não contaminação da água e a não diminuição dos recursos florestais ali localizados.

De certo modo, o direito à identidade cultural foi prejudicado diante da incessante violação de direitos ambientais, à alimentação e à água, eis que o território sagrado para os povos originários foi degradado, malversado e tornado moeda de troca sem a consulta às comunidades locais, nem estudos de impacto ambiental.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebe-se ao longo do texto o quanto ainda precisa-se percorrer para proteger o direito ao meio ambiente equilibrado e, ao mesmo tempo, o quanto é importante dar essa proteção a um direito essencial à própria existência humana e à vida como um todo.

Desde que o tema começou a entrar em voga, é notável a dificuldade de se efetivar as normas ambientais, que surgem a partir de 1972, com a Declaração de Estocolmo, resultado da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano. Este marco temporal modificou a forma como o Direito passou a ver o meio ambiente nos ordenamentos interno e internacional, porém a questão da efetividade é uma das, ou, talvez, a grande dificuldade no que diz respeito a proteger a natureza.

É por isso que a técnica utilizada por órgãos internacionais, chamada greening, é tão importante na criação de um sistema de proteção internacional ao meio ambiente, uma vez que consegue protegê- lo, ainda que de forma indireta. Greening é, então, a proteção reflexa do meio ambiente a partir de outros direitos dispostos nos tratados internacionais, como vida e propriedade. Esverdeiam-se esses documentos internacionais e efetiva-se, ao mesmo tempo, o direito ao meio ambiente equilibrado, o que no caso do sistema interamericano, já foi feito tanto pela Comissão quanto pela Corte Interamericana.

A Corte Interamericana, porém, deu um grande passo no esverdeamento de suas decisões, uma vez que foi além da proteção ambiental indireta ou reflexa, protegendo o meio ambiente de forma direta, no caso paradigmático “Lhaka Honhat (“Nuestra Tierra”) vs Argentina”, no qual diversos direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais (DESCA) dos povos indígenas foram resguardados pela Corte. Esta, em sua decisão, exigiu diretamente ao Estado argentino que atuasse para parar a violação a esses direitos, a partir de uma interpretação mais ativa do artigo 26 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos.

De forma gradual, a proteção ambiental ganha forças nos ordenamentos jurídicos ao redor do mundo, e, como visto, sobretudo no Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Espera-se que a decisão no caso “Nuestra Tierra” seja um “turning point” nessa proteção, sendo o meio ambiente cada vez mais foco de atenção e de políticas públicas protetivas pelos Estados, sobretudo no que diz respeito aos povos originários, tão conectados com a Natureza quanto com as próprias comunidades.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Raquel Santos de. Opinião consultiva OC-23/17: meio ambiente e direitos humanos.

Núcleo Interamericano de Direitos Humanos, Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 16 mai. 2019. Disponível em: https://nidh.com.br/oc23. Acesso em 04 jul. 2020.

BRASIL. Decreto nº 3.321, de 30 de dezembro de 1999. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais “Protocolo de São Salvador”, concluído em 17 de novembro de 1988, em São Salvador, El Salvador. Brasília, DF, 31 dez. 1999. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/

D3321.htm. Acesso em: 04 jul. 2020.

CEIA, Eleonora Mesquista. A Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e o Desenvolvimento da Proteção dos Direitos Humanos no Brasil. Revista da EMERJ. vol. 16, n.

61, jan/fev/mar, 2013. Disponível em: emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista61/

revista61.pdf. Acesso em: 13 jul. 2020.

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