• Nenhum resultado encontrado

MECANISMO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS FRENTE AO RETROCESSO SOCIAL

No documento DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA (páginas 86-97)

Laerte Radtke Karnopp27

RESUMO: O artigo trata da extensão da expressão direitos e garantias individuais, como uma das cláusulas pétreas estabelecidas pela Constituição Federal, e do princípio da proibição de retrocesso.

Tem como objetivo discutir a relação entre os dois institutos, considerando, como hipótese, que as cláusulas pétreas são um instrumento para levar a cabo a proibição de retrocesso. Apresenta considerações sobre a tensão entre constitucionalismo e democracia em razão do estabelecimento de cláusulas pétreas, discute a possibilidade de estender a superconstitucionalidade para os direitos fundamentais sociais e, por fim, traz reflexões sobre a proibição de retrocesso, para concluir que ambos institutos se destinam à proteção do núcleo essencial dos direitos sociais, podendo-se considerar as cláusulas pétreas como instrumento da referida proibição. Utilizou-se o método dedutivo e a pesquisa bibliográfica.

Palavras-chave: Direitos Fundamentais Sociais. Cláusulas Pétreas. Proibição de Retrocesso.

INTRODUÇÃO28

No direito constitucional, o instituto das cláusulas pétreas representa os limites materiais ao poder de reforma da Constituição. Esses limites, gestados pelo poder constituinte originário, ao impedirem que a Constituição seja modificada em certos pontos, dão azo ao paradoxo entre um governo limitado pelo direito, no sentido de submeter a vontade política atual do povo às determinações pretéritas do constituinte originário (constitucionalismo em sentido estrito), e um governo do povo (democracia) (BRANDÃO, 2007, p. 6).

Reformar a Constituição de maneira ilimitada e ostensiva poderia, portanto, deturpar o ideal constitucional originário e transgredir o modelo de Estado proposto por quem o fundou. As cláusulas pétreas, se compreendidas como pré-compromissos constitucionais (BRANDÃO, 2007, p. 6), limitam a vontade do povo para afastar a possibilidade de decisões equivocadas que poderiam prejudicar seus reais interesses, ao menos nos pontos mais sensíveis do ordenamento constitucional.

A Constituição Federal de 1988 estabelece os limites materiais do poder reformador no art. 60, par. 4º. O inciso IV, que será objeto do presente trabalho, aponta, como um desses limites, os direitos e garantias individuais, expressão que tem recebido várias interpretações por parte da doutrina no tocante a sua extensão. Numa perspectiva ampliativa, que é a mais largamente aceita pela doutrina29, referido inciso abrangeria não só os direitos individuais, mas também os políticos, os de nacionalidade e os sociais.

Partindo da premissa de que os direitos fundamentais sociais são protegidos pelo princípio da proibição de retrocesso, seria igualmente aceitável afirmar que as cláusulas pétreas (art. 60, par. 4º, IV, CF) seriam um consectário desse princípio, ao se aplicarem a essa categoria de direitos? Essa é a indagação que mobiliza a reflexão aqui proposta.

Na busca de uma resposta, o método dedutivo é o que se afigura o mais apropriado. Para essa abordagem, considera-se, como premissa maior, que os direitos fundamentais sociais recebem a proteção do princípio de proibição do retrocesso; como premissa menor, tem-se que as cláusulas

27 Doutorando em Direito (UNISINOS). Mestre e Bacharel em Direito (UFPel). Licenciado em Letras (UFPel). Auditor Geral (IFSul).

28 Este artigo foi originalmente publicado em Bertoldi, Gonçalves e Nardello (2019, p. 37-59) e adaptado para as normas do VIII Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia.

29 Parece, conforme será exposto no decorrer deste texto, que a interpretação mais ampliativa é capitaneada por Sarlet. De acordo com o autor, para além dos direitos e garantias individuais expressos na Constituição, são assegurados, como cláusulas pétreas, todos aqueles abrangidos pelo art. 5º, par. 2º, da CF, além dos direitos políticos e de nacionalidade (SARLET, 2018).

pétreas visam, igualmente, proteger a efetividade dessa categoria de direitos. Logo, a conclusão seria a de que as cláusulas pétreas são expressão da proteção conferida pela proibição do retrocesso em matéria social, o que constitui a hipótese aventada no presente trabalho.

Para responder à questão suscitada, o texto será dividido em três seções. A primeira trará considerações gerais sobre as cláusulas pétreas em matéria constitucional, expondo a discussão existente na doutrina, especialmente nos textos de Rodrigo Brandão (2007; 2008), acerca do paradoxo entre constitucionalismo e democracia. A segunda ocupar-se-á do problema da extensão das cláusulas pétreas; nessa seção serão apresentados os diversos posicionamentos doutrinários sobre a extensão da expressão direitos e garantias individuais, constante do art. 60, par. 4º, IV, da Constituição Federal de 1988, como cláusula pétrea. Essa parte do estudo será subsidiada pelas reflexões de Rodrigo Brandão (2007; 2008) e de Ingo Sarlet (2018), que possuem relevante produção sobre o assunto. Na terceira seção, por seu turno, será abordado, em breves linhas, o princípio da proibição de retrocesso e sua relação com os direitos fundamentais sociais. Serão utilizados, como principais referenciais, os textos de Ingo Sarlet (2018) e de Victor Abramovich e Christian Courtis (2005; 2011), além das lições do constitucionalista português José Joaquim Gomes Canotilho (2003).

Em conclusão, demonstrar-se-á a relação entre a proteção conferida aos direitos fundamentais sociais pelo princípio da proibição de retrocesso e pelas cláusulas pétreas, avaliando se estas são um consectário daquele princípio, confirmando ou refutando, assim, a hipótese de trabalho.

1 CLÁUSULAS PÉTREAS ENTRE CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA: AS DUAS FACES DA MESMA MOEDA

Os direitos fundamentais assumiram lugar de relevo na Constituição Federal de 1988, passando a integrar, juntamente com os princípios fundamentais, o núcleo essencial formal e material da Carta.

Todo esse movimento se deve, em parte, ao período de autoritarismo que precedeu a construção da vigente ordem constitucional (SARLET, 2015), o que explica a opção do constituinte de 1988 em eleger, pela primeira vez no direito brasileiro, os direitos fundamentais como cláusulas pétreas30, de modo a colocá-los a salvo das maiorias de ocasião.

Antes de adentrar na discussão doutrinária sobre a extensão do caráter superconstitucional aos direitos fundamentais sociais, é oportuno recordar o paradoxo que as democracias constitucionais encerram, segundo o qual há dois compromissos colidentes: “o ideal de um governo limitado pelo direito para a proteção do indivíduo (constitucionalismo em sentido estrito) e o de um governo do povo (democracia)” (BRANDÃO, 2008, p. 452).

Vincular as gerações atuais às decisões de gerações pretéritas poderia, prima facie, sugerir um governo dos mortos sobre os vivos31, impedindo que prevalecesse a vontade política atual em favor de escolhas que já não mais estariam de acordo com as necessidades iminentes. Isto caracterizaria um déficit democrático, retirando da população a capacidade de autogoverno, em nome de um constitucionalismo que estaria a limitar juridicamente o poder político.

Canotilho (2003, p. 1065) aponta como a verdadeira aporia do Estado Constitucional o seguinte problema suscitado pelos limites materiais do poder de revisão: “será defensável vincular gerações futuras a ideias de legitimação e a projectos políticos que, provavelmente, já não serão os mesmos que pautaram o legislador constituinte?”. E oferece resposta no sentido de que, apesar de a geração constitucional fundadora não poder vincular totalmente as gerações futuras às suas determinações, há que se permitir que as constituições cumpram sua tarefa, razão pela qual não é possível que elas sejam integralmente postas à disposição do poder de revisão, especialmente quanto este é do legislador ordinário.

30 A Constituição de 1967 previu, como cláusulas pétreas, apenas a Federação e a República (art. 49, par. 1º, renumerado para art. 47, par. 1º, pela Emenda Constitucional n. 1/1969); a Constituição de 1946 fixou a mesma previsão no art. 217, par. 6º; a Constituição de 1937 não previu cláusulas pétreas; a Constituição de 1934 estabeleceu, como cláusula pétrea, apenas a forma republicana federativa (art. 178, par. 5º); a Constituição de 1891 estabeleceu como cláusulas pétreas “a forma republicana federativa, ou a igualdade da representação dos Estados no Senado” (art. 90, par. 4º); e a Constituição de 1824 não previu cláusulas pétreas (ANDRADE, 2009).

31 Essa expressão é utilizada por Brandão (2008) e remete ao questionamento feito por Thomas Jefferson, que “se preguntaba

89

Assevera o constitucionalista português que, diante de um processo histórico em permanente fluxo, para garantir a continuidade da Constituição, não se admitem nem uma revisão total nem alterações que possam aniquilar a identidade de uma ordem constitucional histórico-concreta (CANOTILHO, 2003), de modo que sua substância deve ser conservada pela reforma.

As cláusulas pétreas têm a preservação da identidade da Constituição como sua razão de ser, caracterizando-se, de acordo com o pensamento de Karl Loewenstein (citado por CASTRO, 2015), como um conjunto de medidas para proteger determinadas instituições e, ainda, princípios e valores inerentes ou imanentes ao texto constitucional, não expressamente contidos em disposições ou instituições constitucionais concretas. Nesse sentido, as garantias de eternidade têm o papel de guardar a obra do constituinte originário, de modo a preservar a identidade ideológica da Constituição.

Alexandre de Moraes (2008), ao tratar especificamente das emendas à Constituição brasileira, destaca o valor integrativo das manifestações do poder constituinte derivado e endossa a possibilidade de alteração constitucional. A revisão constitucional, posto que não admite a ruptura total com a Constituição vigente, permite a integração do texto escrito em tempos pretéritos com os valores sociais, políticos, morais, filosóficos, etc. do presente e do futuro, tendo como balizadoras as cláusulas pétreas, que ancoram as necessárias transformações a sua essência.

David Almagro Castro lembra que a constituição é norma essencialmente aberta, que pretende normatizar os princípios e valores que permitem uma convivência social estável e duradoura. Não é por outra razão que ela (a Constituição), “como reflejo normativo de una sociedad y un tiempo histórico determinados, debe garantizar su adaptabilidad a aquellas mutaciones sociales ampliamente respaldadas por el titular de la soberanía popular” (CASTRO, 2015, p. 271-272).

Apesar de denotar uma interpretação de cunho mais restritivo das cláusulas pétreas ao defender maior amplitude de escolhas constitucionais ao titular da soberania popular e, em outras palavras, alcançar possibilidades mais abertas de reformas ao poder constituinte derivado, o discurso do autor defende o diálogo do texto constitucional com o momento presente e futuro, atendendo as necessidades identificadas pela sociedade no momento atual. Esse processo – reafirmamos – há de se balizar pelas cláusulas pétreas, que estabelecerão os limites materiais desse poder.

Retirar os direitos e garantias individuais do alcance de maiorias políticas de ocasião, positivando- os como cláusulas pétreas (art. 60, par. 4º, IV, da Constituição Federal), foi uma estratégia adotada pelo poder constituinte originário para a proteção do indivíduo, alçando prerrogativas inerentes à dignidade humana acima do poder deliberativo dos órgãos estatais, em especial, do poder legislativo, como poder de reforma constitucional.

No entanto, esse dispositivo foi (e ainda é) objeto de grandes controvérsias no que diz respeito a sua interpretação e à determinação de sua extensão. Esse tema será objeto da próxima sessão.

2 SUPERCONSTITUCIONALIDADE E DIREITOS FUNDAMENTAIS: SÃO OS DIREITOS SOCIAIS CLÁUSULAS PÉTREAS?32

Há correntes de diversas matizes que propõem a delimitação do alcance da expressão “direitos e garantias individuais” como cláusula superconstitucional: duas delas com um entendimento mais restritivo do que sejam esses direitos e uma terceira, que apresenta uma proposta mais ampliativa, contemplando maior número de direitos e garantias. Neste trabalho, nos serviremos da proposta de Rodrigo Brandão (2007; 2008) e de Ingo Sarlet (2018), que apresentam três caminhos extraídos da doutrina para delimitar a extensão dos direitos e garantias individuais como cláusulas pétreas.

A primeira corrente doutrinária defende que assumem a condição de cláusulas pétreas somente aqueles direitos de cunho individual relacionados no art. 5º da Constituição Federal, numa interpretação literal da expres- são “direitos e garantias individuais” (BRANDÃO, 2008, p. 462).Esse entendimento autoriza a admitir que há uma hierarquização entre as diferentes dimensões de direitos fundamentais, privilegiando os de natureza individual.

32 O título desta seção remete ao texto de Brandão (2008), no qual o autor discute a inserção dos direitos sociais, políticos, de nacionalidade e outros, de natureza diversa, no rol das cláusulas pétreas. Por discutir sobre quais tipos de direitos seriam abrigados pelo art. 60, par. 4º, IV, da Constituição Federal de 1988, este trabalho utilizará amplamente a abordagem apresen- tada pelo autor, no intuito de buscar uma resposta à pergunta lançada no título, de modo a introduzir a reflexão aqui proposta.

Nessa perspectiva, estariam excluídos do rol de cláusulas pétreas os direitos sociais (arts. 6º a 11), os direitos de nacionalidade (arts. 12 e 13) e os direitos políticos (arts. 14 a 17), assim como os direitos de expressão coletiva do rol do art. 5º (SARLET, 2018).

Além de retirar direitos fundamentais com relevante conteúdo em dignidade humana da proteção da superconstitucionalidade, a interpretação literal abrigaria, por outro lado, com a intangibilidade, normas de baixa densidade axiológica inseridas no art. 5º, as quais se assemelham a normas infraconstitucionais. Brandão cita os seguintes exemplos: a instituição do júri (inciso XXVIII); a forma de cumprimento de penas privativas de liberdade, que dispõem sobre a existência de estabelecimentos distintos de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado (inciso XLVIII); e as espécies de penas criminais, quais sejam a privação ou restrição de liberdade, perda de bens, multa, prestação social alternativa e suspensão ou interdição de direitos (inciso XLVI) (BRANDÃO, 2008).

A interpretação gramatical do dispositivo em questão é inconveniente, segundo a moderna hermenêutica jurídica, devido a três razões, apontadas por Brandão (2008): (1) a fluidez semântica e a densidade moral dos direitos e garantias individuais, os quais possuem, por tal razão, um conteúdo muito amplo, de difícil delimitação, da qual regras herméticas como as de interpretação literal não dariam conta;

(2) em razão da abertura material do catálogo de direitos fundamentais, operada por meio do par. 2º do art.

5º da Constituição Federal (1988); (3) a imprecisão terminológica do constituinte referente à positivação dos direitos fundamentais do indivíduo, para o que utiliza diversas expressões ao longo do texto constitucional:

direitos e garantias fundamentais (Título II), direitos e deveres individuais e coletivos (Capítulo I do Título II), direitos sociais (Capítulo II do Título II), direitos políticos (Capítulo IV do Título II), entre outros.

Uma segunda corrente doutrinária, ainda favorável a uma interpretação restritiva do art. 60, par. 4º, IV, da Constituição Federal (BRASIL, 1988), advoga que esse dispositivo deve ser interpretado de modo a abranger somente os direitos fundamentais que podem ser equiparados aos direitos individuais do art. 5º.

É o ponto de vista defendido por Gilmar Ferreira Mendes (1997), que sustenta que a condição de cláusula pétrea deve ser restrita somente ao que chama de “direitos e garantias individuais propriamente ditos”.

A dificuldade seria distinguir entre direitos individuais e não individuais. Se fossem considerados como individuais somente aqueles direitos que impusessem ao Estado a função de defesa, especialmente as ditas liberdades fundamentais33, teriam de ser incluídos na proteção das cláusulas pétreas os direitos e garantias passíveis de serem equiparados aos direitos de defesa. Logo, direitos sociais não prestacionais (liberdades sociais) também seriam cláusulas pétreas: é o caso do direito de greve, de livre associação sindical, direitos políticos e à nacionalidade (SARLET, 2018). Nessa perspectiva, restariam excluídos os direitos sociais, além dos difusos e coletivos. A Constituição Federal do Brasil (1988) não apresenta dispositivo que possa sustentar essa interpretação, ao contrário da Constituição Portuguesa (1976)34 e da Lei Fundamental de Bonn (BRANDÃO, 2008).

A terceira corrente doutrinária, por fim, reconhece a superconstitucionalidade ao conjunto dos direitos fundamentais, independentemente de se caracterizarem como direitos de primeira, segunda ou terceira gerações. Essa perspectiva hermenêutica, ao posicionar-se pela indivisibilidade e pela interdependência entre as diversas categorias de direitos, adota como pressuposto a unicidade do sistema de proteção dos direitos fundamentais, uma vez que a dignidade da pessoa humana também é única, isto é, trata-se da existência de um único valor35.

33 Na ótica de Gilmar Ferreira Mendes (1997), apenas as liberdades fundamentais são caracterizáveis como cláusulas pétreas, porque, ao impor ao Estado obrigações negativas (de abstenção), são, ao lado do princípio da separação dos poderes, instru- mento por excelência de limitação do poder estatal.

34 De acordo com Ingo Sarlet, “Solução semelhante foi adotada no constitucionalismo português, no qual há disposição ex- pressa estabelecendo que os direitos análogos aos direitos, liberdades e garantias se encontram sujeitos ao mesmo regime ju- rídico (art. 17 da CRP), destacando-se, nesse particular, a sua condição de limites materiais ao poder de revisão da Constituição (art. 288 da CRP), o que se aplica, inclusive, às assim denominadas liberdades sociais (na condição de direitos análogos), ainda que constantes no capítulo dos direitos econômicos, sociais e culturais. Entre nós, à míngua de um regime jurídico diferencia- do expressamente previsto na Constituição, tal entendimento não poderá prevalecer, já que não encontramos – conforma [sic]

assinalado alhures – qualquer sustentáculo no direito constitucional positivo para justificar uma distinção no que diz com a fundamentalidade dos direitos sociais” (2018, p. 442).

35 Para Cunha e Scarpi, apesar da existência de dois grandes pactos de direitos humanos, a saber o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PICDP) e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), a divisão desses direitos em dois grupos não resiste a nenhum critério de razoabilidade, posto que ambos tutelam o valor da dignidade da pes- soa humana. Segundo os autores, “quando o indivíduo sofre uma injusta lesão a um direito decorrente de sua dignidade, po- de-se afirmar que toda sua dignidade foi afetada. Sendo então verdade que a dignidade é um único valor, sua tutela não pode

91

De fato, na Constituição Federal (BRASIL, 1988), de forma sistêmica, não existe hierarquia entre direitos de defesa e prestacionais; na verdade, o que há é um forte diálogo entre as diferentes gerações de direitos fundamentais, que é marca da indivisibilidade e da interdependência.

Essa característica de interdependência entre as diversas gerações de direitos está de acordo com o atual momento do direito internacional dos direitos humanos e com a posição da Organização das Nações Unidas (ONU), expressa na Declaração de Viena (1993): “Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de maneira justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase” (citado por BRANDÃO, 2008, p. 464).

Ingo Sarlet apresenta uma série de argumentos que se contrapõem à interpretação que retira os direitos fundamentais sociais do leque de cláusulas pétreas e que sustenta que, se o constituinte originário realmente quisesse abarcá-los, o teria feito de modo expresso. Aduz o constitucionalista:

Tal concepção [a que exclui os direitos fundamentais sociais do rol de cláusulas pétreas] e todas aquelas que lhe podem ser equiparadas esbarram, contudo, nos seguintes argumentos: a) a Constituição brasileira não traça qualquer diferença entre os direitos de liberdade (defesa) e os direitos sociais, inclusive no que diz com eventual primazia dos primeiros sobre os segundos; b) os partidários de uma exegese conservadora e restritiva em regra partem da premissa de que todos os direitos sociais podem ser conceituados como direitos a prestações materiais estatais, quando, em verdade, já se demonstrou que boa parte dos direitos sociais são equiparáveis, no que diz com sua função precípua e estrutura jurídica, aos direitos de defesa; c) para além disso, relembramos que uma interpretação que limita o alcance das “cláusulas pétreas” aos direitos fundamentais elencados no art. 5º da CF acaba por excluir também os direitos de nacionalidade e os direitos políticos, que igualmente não foram expressamente previstos no art. 60, §4º, inc. IV, de nossa lei fundamental (SARLET, 2018, 442-443).

O primeiro argumento, referente à inexistência de hierarquia dos direitos individuais sobre os sociais, e o último, que toca à interpretação restritiva das cláusulas pétreas, entende-se, já foram suficientemente repisados neste texto. Não obstante, considera-se pertinente ampliar o segundo, o qual dialoga profundamente com a característica da unicidade dos direitos fundamentais.

A própria Constituição Federal deixa clara a orientação social do Estado brasileiro desde o seu preâmbu- lo: “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvol- vimento, a igualdade e a justiça” (BRASIL, 1988). Há vários outros dispositivos na Carta de 1988 que conjugam os valores da liberdade e da igualdade, os quais não podem ser delimitados de forma tão rígida e estanque.

Nesse sentido, Sarlet (2018) aponta para o fato de que o texto constitucional deixa transparecer que o Brasil é um Estado democrático e social de direito, inclusive em boa parte dos princípios fundamentais, como é o caso dos os arts. 1º, I a III (fundamentos da República) e 3º, I, III e IV (objetivos fundamentais da República).

Afora isso, Vera Lúcia Pereira Resende (2006) argumenta que o inciso IV, par. 4º, art. 60, da Constituição Federal (BRASIL, 1988) menciona como cláusulas pétreas os direitos e garantias individuais, sendo que não há, no decorrer do texto constitucional, nenhum título ou capítulo assim denominado. Isto remete ao Título II, cuja designação é a mais semelhante (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), e que abrange não só os direitos individuais como também direitos sociais e outros.

Em 2004, foi apresentada ao Congresso Nacional, pela Deputada Federal Laura Carneiro, a Propos- ta de Emenda à Constituição n. 313, de 2004 (BRASIL, 2004), que buscava a alteração do inciso IV aqui discutido, para considerar cláusulas pétreas os direitos e garantias fundamentais. O objetivo, segundo a justificativa apresentada na propositura à Câmara dos Deputados, era desfazer a controvérsia dou- trinária à qual a imprecisão terminológica do dispositivo original deu ensejo. Entretanto, a Proposta foi arquivada e tocou à doutrina a missão de delimitar o alcance do dispositivo constitucional.

Assim, entende-se que, se fossem incluídos somente os direitos de liberdade no rol das cláusulas pétreas, pelo fato de representarem direitos a prestações estatais negativas, haveria uma associação absoluta entre direitos de liberdade e direitos de defesa, por um lado, e direitos sociais e direitos de prestação, por outro. Abramovich e Courtis (2005; 2011)36 combatem essa ideia, esclarecendo que,

36 Segundo os autores, todo direito acarreta ao ente estatal um feixe de obrigações positivas e negativas. Daí ser possível falar em “níveis” de obrigações estatais, a exemplo da proposta de Fried van Hoof, para quem “podrían dicernirse cuatro ‘niveles’

de obligaciones: obligaciones de respetar, obligaciones de proteger, obligaciones de asegurar y obligaciones de promover el derecho en cuestión. Las obligaciones de respetar se definen por el deber del Estado de no injerir, obstaculizar o impedir el acceso el goce de los bienes que constituyen el objeto del derecho. Las obligaciones de proteger consisten en impedir que terceros interfieran, obstaculicen o impidan el acceso a esos bienes. Las obligaciones de asegurar suponen asegurar que el titular del derecho acceda al bien cuando no puede hacerlo por sí mismo. Las obligaciones de promover se caracterizan por el deber de desarrollar condiciones para que los titulares del derecho accedan al bien” (ABRAMOVICH; COURTIS, 2005, online).

No documento DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA (páginas 86-97)