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PERLA CAROLINA LEAL SILVA MÜLLER

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL

PERLA CAROLINA LEAL SILVA MÜLLER

A POSIÇÃO DA ÉTICA E DA MORAL NA FORMAÇÃO DO DIREITO POSITIVO: uma análise sob a ótica da “Teoria Pura do Direito” desenvolvida por Kelsen

FRANCA 2009

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PERLA CAROLINA LEAL SILVA MÜLLER

A POSIÇÃO DA ÉTICA E DA MORAL NA FORMAÇÃO DO DIREITO POSITIVO: uma análise sob a ótica da “Teoria Pura do Direito” desenvolvida por Kelsen

Dissertação apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para obtenção do Título de Mestre em Direito. Área de Concentração: Direito Obrigacional Público e Privado. Orientador: Prof. Dr. José Carlos Garcia de Freitas

FRANCA 2009

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Müller, Perla Carolina Leal Silva

A posição da ética e da moral na formação do direito posi- tivo : uma análise sob a ótica da “Teoria Pura do Direito” desenvolvida por por Kelsen / Perla Carolina Leal Silva Müller. –Franca : UNESP, 2009

Dissertação – Mestrado – Direito – Faculdade de História, Direito e Serviço Social – UNESP.

1. Direito – Filosofia. 2. Direito positivo. 3. Ética. 4. Moral. 5. Hans Kelsen – Crítica e interpretação.

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PERLA CAROLINA LEAL SILVA MÜLLER

A POSIÇÃO DA ÉTICA E DA MORAL NA FORMAÇÃO DO DIREITO POSITIVO: uma análise sob a ótica da “Teoria Pura do Direito” desenvolvida por Kelsen

Dissertação apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para obtenção do Título de Mestre em Direito. Área de Concentração: Direito Obrigacional Público e Privado.

BANCA EXAMINADORA

Presidente:_________________________________________________________________ Prof. Dr. José Carlos Garcia de Freitas

1º Examinador: _____________________________________________________________ 2º Examinador: ____________________________________________________________ Franca, ______ de _______________ de 2009.

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Dedico ao meu companheiro de mais de uma década, marido e parceiro; parceiro no amor, na profissão, no entusiasmo e afeição pelo Direito e pela vida. Tributo a ele parte do mérito deste trabalho, pelas noites passadas em claro ao meu lado, em gesto de mais pura fidelidade e cumplicidade.

Dedico, ainda, às minhas amadas mãe, vó e irmãs, por professarem a crença de que sou mulher das mais fortes e capazes, preenchendo-me de forças para avançar sempre mais.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, em especial, ao Prof. Dr. JOSÉ CARLOS GARCIA DE FREITAS que, além de um orientador dedicado, brindou-me com afeto paternal e com distinta tolerância; não só dirigindo meus passos, mas caminhando comigo, instigando e incentivando o desenvolvimento das minhas idéias. Curvou-se do alto de seu conhecimento e sabedoria a fim de me abrigar, pequena ante sua grandeza intelectual. Agradeço a honra de tão brilhante mestre e esmerado amigo.

Externo, ainda, meus carinhosos agradecimentos a todos os professores do Curso de Pós-Graduação em Direito da Unesp, que prestaram grande contribuição para desenvolvimento e evolução da minha pesquisa jurídica, em especial à Profa. Dra. JETE JANE FIORATI pelas ativas aulas ministradas.

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“Ningún orden social puede compensar completamente la injusticia de la naturaleza.” (KELSEN, 1992).

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MÜLLER. Perla Carolina Leal Silva. A posição da ética e da moral na formação do direito positivo: uma análise sob a ótica da “Teoria Pura do Direito” desenvolvida por Kelsen. 2009. 102 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2009.

RESUMO

O trabalho visa uma re-apresentação da Teoria Pura do Direito desenvolvida por Kelsen, naquilo que, em particular, envolve a Ética e a Moral no processo de construção e aplicação da norma jurídica, e que está disseminada por toda a obra deixada pelo autor e não apenas em um livro específico. Busca-se dar evidência ao pensamento do jurista austríaco que, intencionalmente ou não, é ocultado ou mesmo negado pela ciência jurídica tradicional, demonstrando os equívocos de sua leitura e deixando vir à tona não só o teórico do direito que tantos conhecem, mas, principalmente, o filósofo-político que pouquíssimos buscaram ou buscam conhecer. É entuito, enfim, demonstrar que, ao contrário do que propagam, Kelsen muito se preocupou com a realização da Justiça, de modo que pretendeu criar uma ciência jurídica pura na medida em impede a qualquer Poder lograr uma justificação jurídica que lhe permitisse sufocar os anseios da maioria, enxergando, no Direito Positivo, um mecanismo da democracia, anti-estadista, porém jamais anarquista ou opressor. Com uma assim ciência jurídica os ideais políticos, religiosos e, no que nos interessa, éticos e morais têm lugar reservado a incidir, não como objeto da ciência jurídica que é a norma, mas como fator de influência do ato de vontade humano criador da norma.

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MÜLLER. Perla Carolina Leal Silva. The position of the Ethics and Moral in the formation of Positive Law: an analysis from the perspective of the "Pure Theory of Law" developed by Kelsen. 2009. 102 p. Dissertation (Master em Law) – Faculty of History, Law and Social Work, State University of São Paulo “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2009.

ABSTRACT

This work aims at the re-introduction of the Pure Theory of Law which was developed by Hans Kelsen in that field that particularly envolves the Ethics and the Morals in the creating process of Law and its application; and which is spread all over the author´s work and not only in one specific book. It seeks highlighting the Austrian jurist´s thoughts which, either intentionally or not, is hidden or even denied by the traditional Science of Law, demonstrating the faults in their reading, and focusing not only on the theorist of law, known by so many, but mainly on the philosopher-politician himself, that only a few attempted or still atempt to know about.Therefore, this work aims at demonstrating that, contrary to what is stated by many, Kelsen was rather concerned about the realization of Justice, in a way that he meant to create a pure Jurisprudence, as it prevents any power from being justified by Law, which would allow it to suffocate the dreams of the majority, interpreting the Positive Law as a democratic mechanism, anti-statist, although never anarchist or oppressive. With such a Jurisprudence, the political or religious ideals, as well as the ethical and moral ones, have their place guaranteed, not as an object of the science of law, which is the legal norm, but as a factor which influences the acts of will that create the norm.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 10

CAPÍTULO 1 O PENSAMENTO JURÍDICO DE HANS KELSEN ... 15

1.1 As influências do pensamento de Kelsen ... 15

1.2 Sobre o Direito Natural e o Direito Positivo... 20

1.3 A idéia de justiça... 26

1.4 O problema do conhecimento para Kelsen ... 30

1.5 O conhecimento filosófico – o que é Filosofia?... 32

1.6 A Filosofia e a Ciência ... 38

1.7 As origens da Filosofia do Direito e da Ciência do Direito ... 40

1.8 O criticismo de Kant ... 44

CAPÍTULO 2 PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA TEORIA PURA DO DIREITO... 47

2.1 O método científico adotado ... 47

2.2 O princípio da imputação ...54

2.3 A norma hipotética fundamental...57

2.4 O sistema do Direito Positivo e o sistema da Ciência do Direito... 60

CAPÍTULO 3 O PAPEL DA ÉTICA E DA MORAL NO PENSAMENTO DE KELSEN ... 67

3.1 Noções preliminares sobre Ética e Moral... 67

3.2 A Ética e a Moral na visão de Kelsen ... 72

3.3 Moral e Direito na visão de Kelsen ... 75

3.4 O ato de aplicação e criação do direito como juízo de valor ético... 77

3.5 A influência da moral e da ética científica na aplicação do direito... 79

3.6 O papel da ética filosófica na criação do direito ... 82

CAPÍTULO 4 A JUSTIFICATIVA DO PENSAMENTO DE KELSEN ... 85

4.1 Kelsen: um teórico do Estado ... 85

4.2 As correlações entre a Teoria Pura do Direito e a Teoria do Estado de Kelsen ... 86

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4.5 A limitação do Poder Político pelo Direito ... 92 4.6 Ética e a Moral: fundamento de validade do Direito ou fator de influência na

aplicação do Direito? ... 95

CONCLUSÃO... 97

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INTRODUÇÃO

Ao trazer à discussão a obra deixada pelo jurista Hans Kelsen, temos que ter em mente a árdua tarefa a que nos dispomos a realizar, posto se tratar de um dos maiores pensadores do século XX e, talvez, o que trouxe para o estudo do Direito, as mais polêmicas considerações, influenciando direta ou indiretamente o debate jurídico dos últimos tempos.

É inegável a repercussão das teorias kelsenianas entre os juristas do mundo contemporâneo, não sendo exagero afirmar que Kelsen representou um divisor de águas para o estudo do Direito a partir, principalmente, da divulgação de sua obra mais conhecida, a Teoria Pura do Direito.

Por tal motivo, a abordagem da obra de Kelsen, apesar de já ter sido alvo de inúmeros estudos realizados em todas as partes do mundo, ainda continua de extrema relevância, principalmente por ter servido de base para muitas teorias tidas como de vanguarda, em verdade releituras da obra kelseniana, como também por ter sido ponto de partida para a confrontação daquelas teorias que tentaram combatê-la.

O jurista cubano, Ramón de la Cruz Ochoa1, resumiu bem a importância do jurista vienense para o estudo do direito, durante a apresentação de um seminário intitulado “Seminario Internacional sobre la obra de Hans Kelsen”, diante a estranheza que poderia causar a realização deste evento justamente em Cuba, onde reinam as idéias marxistas, manifestando o seguinte:

Sé que muchos en Cuba y también en el extranjero se habián preguntado por qué en Cuba un seminario sobre KELSEN. La respuesta para mi es sencilla, KELSEN es uno de los grandes exponentes del pensamiento jurídico del siglo XX; no concibo un jurista medianamente formado e informado que no conozca al menos elementalmente el pensamento de KELSEN, como creo que no puede haber un profesional de las ciencias sociales y políticas que no conozca a MARX, o un psicólogo que no conozca el pensamiento de outro gran austríaco FREUD. Son pensamientos vitales con los cuales se puede estar completamente o parcialmente de acuerdo, o totalmente en desacuerdo, pero no se pueden ignorar a Hombres que hay que leer y releer, estudiar y intepretar sin dogmas de ningún signo y tomar de ellos lo que pueda ser útil para todos aquellos que creemos y luchamos por el progreso espiritual y material del Hombre y de la Sociedad.

1 CRUZ OCHOA, 1992, p. 34-35 apud MANCHEGO, José F. Palomino. Bio-bibliografia de Hans Kelsen. In: KELSEN, Hans. Introducción a la teoría pura del derecho. 3. ed. rev. e cor. México: UNAM, 2002. p. 125-126. Disponível em: <http://www.bibliojuridica.org/libros/4/1956/17.pdf>. Acesso em: 26 jun. 2009.

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Porém, o tamanho destaque alcançado pelo jurista austríaco no cenário mundial gerou certa mitificação em torno de sua obra, propagando, muitas vezes, uma imagem distorcida e limitada de suas idéias, ora devido às críticas cegas de seus adversários, ora aos exageros emprestados à sua obra por seus próprios defensores.

Tal deturpação da obra de Kelsen deve-se à sua tentativa de propor uma ciência do direito diferente de tudo que se via em sua época, distanciando-se tanto dos pregadores do Direito Natural, que procuravam justificar o direito através de concepções metafísicas, como de seus antecessores positivistas, que viam a norma jurídica como única possibilidade do conhecimento jurídico, a qual já seria repleta de um conteúdo valorativo absoluto, dedutível pela razão humana.

Certamente, por representar uma quebra de paradigmas, a obra de Kelsen enfrentou toda sorte de debates apaixonados, que muitas vezes fugiram da própria proposta teórica divulgada pelo jurista, travando-se embates filosóficos distanciados da realidade do objeto estudado.

Não raro, as tentativas do homem em explicar ou apreender a realidade se vêem guiadas por fantasias, desejos e medos, frutos do componente emocional, afetivo do espírito humano. Tal componente afetivo, por vezes, cega-nos, impedindo ver o que realmente deve ser visto.

Neste contexto, é possível constatar que apenas as proposições kelsenianas mais distantes de tudo que se pregava até então é que tiveram maior espaço no estudo jurídico, deixando-se de lado, muitas vezes, a completude da obra de Kelsen, de forma a limitar o alvo das ferrenhas críticas, ou mesmo dos exagerados elogios, a aspectos pontuais do pensamento deste grande filósofo do direito, que foi Hans Kelsen.

Desde sua primeira edição, em 1934, a Teoria Pura do Direito, estudada de forma isolada e dissociada de toda a base filosófica que a cerca, tem sido alvo de árduas críticas, para não dizer de ódio.

O fato desta obra, sem dúvidas a mais famosa de Kelsen, ter procurado distanciar do objeto da ciência jurídica toda sorte de influência ideológica, política ou mesmo de outras ciências, foi certamente o maior motivo de repulsa por parte dos estudiosos do direito.

Acusam o jurista vienense de um reducionismo formalista, o que tornaria o direito distanciado de seus fins supremos, ou mesmo passível de admitir toda forma de poder, mesmo um poder criminoso como o nazista, já que, por meio de uma ciência jurídica despida de juízo de valor, quanto ao bom ou mau, ao justo ou injusto, não se poderia repelir os desvios praticados por um Estado autoritário e amoral.

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Mas tal repulsa, por vezes, é de fácil compreensão. Até o surgimento da Teoria Pura do Direito passava despercebido, ou melhor, fingia-se não perceber, o uso da ciência do direito como elemento de justificação de ideologias políticas, como elemento de legitimação do poder. E isto muito bem foi sintetizado por Kelsen2 no prefácio da primeira edição alemã da Teoria Pura do Direito:

Mis adversarios no admiten que estos dos dominios [direito e política] estén netamente separados el uno del otro, dado que no quieren renunciar al hábito, bastante arraigado, de invocar la autoridad objetiva de la ciencia del derecho para justificar prentensiones políticas que tienen un carácter esencialmente subjetivo, aun cuando de toda buena fe correspondan al ideal de uma religión, de uma nación o de una clase.

E os fervorosos - e igualmente cegos defensores da Teoria Pura do Direito - o fazem com o igual objetivo de justificar suas próprias ideologias também políticas, ao impedir toda e qualquer discussão a respeito do conteúdo do direito, através da má interpretação de sua 'pureza'. Confunde-se aqui a pureza da ciência construída por KelConfunde-sen com a suposta pureza da própria norma jurídica, que, na realidade, é um ato de vontade repleto de influências axiológicas e, inclusive, de índole subjetiva.

Neste ou naquele caso, o que se verifica é uma leitura distorcida da obra de Kelsen, principalmente naquilo que remonta ao papel atribuído à política, ou melhor, à filosofia, como juízo de valor sobre os conceitos formulados pela ciência e suas relações com o direito.

Não conseguem, tanto uns como os outros, enxergar a Teoria Pura do Direito como ensaio filosófico de uma ciência do direito pura – a ciência é que se pretende pura, não a teoria-filosófica que a funda, esta de conteúdo profundamente político.

O que se tenta ocultar através das interpretações tergiversadas da obra de Kelsen é justamente a densa discussão filosófica travada no bojo da Teoria Pura do Direito, acerca do direito e do poder e da necessária purificação da ciência do direito, não como instrumento de legitimação deste ou daquele poder ou ideologia, mas como veículo de realização da justiça, que para Kelsen3 é “[...] a ordem social bajo cuya protección puede progresar la búsqueda de la verdad”, é, enfim, a “Justicia de la democracia.”

Para se entender e alcançar a cientificidade do direito em Kelsen é inafastável compreender seu discurso político-filosófico.

2 KELSEN, Hans. Teoria pura del derecho: : introducción a la ciencia del derecho. 11. ed. Buenos Aires: Eudeba, 1973. p. 11.

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Uma obra assim erguida não pode ser taxada formalista ou fria e, muito menos, fora ou mesmo distanciada do campo filosófico. As próprias palavras de Kelsen4 negam tal pecha: “Yo creo haber acelerado el ritmo de la inevitable evolución de mi disciplina, poniendo em estrecho contacto la provincia algo lejana de la ciencia jurídica com el fructífero centro de todo conocimiento: la filosofia.”

Não há dúvida de que a equivocada visão da Teoria Pura do Direito como um vazio e árido formalismo seja fruto da má compreensão de Kelsen5, que, no Prefácio à 1ª edição, assim se expressa: “Hace casi un cuarto de siglo que emprendí la tarea de elaborar una teoría pura del derecho, es decir, uma teoría depurada de toda ideología política y de todo elemento de las ciencias da la naturaleza.”

O que não se percebe é que a separação do campo da ciência proposta pela Teoria Pura do Direito apenas limita o campo da ciência jurídica, sem jamais se ter pretendido com tal separação extirpar-se do direito, enquanto fenômeno social complexo, a influência volitiva do próprio homem.

Kelsen não cria a “norma jurídica pura”, eis que esta é, como por ele mesmo dito, ato de vontade, ou seja, é criada através de uma decisão política, impregnada por toda sorte de juízo valorativo, inclusive no que diz respeito à justiça e à ética. O que é puro, pois, é a ciência, enquanto focada a descrever seu objeto – o direito – cumprindo sua tarefa precípua de dizer o que é e como é o direito e não como deveria ser, resposta esta reservada à filosofia.

Os críticos de Kelsen não conseguem constatar uma sutil diferença existente entre a afirmação de que um enunciado científico deve abster-se de juízo de valor e a conclusão de que o conhecimento do fenômeno jurídico como um todo, necessariamente passe por tal análise valorativa. Nas palavras do próprio jurista: “Un enunciado que describa al Derecho no debe implicar ningún juicio acerca del valor moral de la ley, es decir, sobre su justicia o injusticia, lo que por supuesto no excluye el postulado de que el Derecho deba ser justo.” 6

Eis o objetivo do presente trabalho: desmistificar a existência de um Kelsen-cientista do direito para apresentar um Kelsen-político-filosófico, que expressamente reconheceu a virtude da justiça como juízo de valor que, apesar de escapar ao conhecimento científico, certamente influencia a criação do direito, como ato de vontade.

4 KELSEN, 1979 apud CORREAS, Óscar. El otro Kelsen. In: ______. (Comp.). El otro Kelsen. 2. ed. México: Coyoacán, 2003. primera pte. p. 35.

5 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 9. 6

Id. Introducción a la teoría pura del derecho. 3. ed. rev. e cor. México: UNAM, 2002. p. 60. Disponível em: <http://www.bibliojuridica.org/libros/4/1956/12.pdf>. Acesso em: 27 jul. 2009.

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É, pois, dentro desta visão completa da obra de Kelsen, que procura enxergar todo o fenômeno jurídico, não só do ponto de vista científico, mas também reservando papel de extrema importância para o ato volitivo do criador da norma jurídica, que encontraremos as possibilidades de influência da ética e da moral sobre o conhecimento jurídico.

Por conseguinte, apoiados na filosofia política que embasa toda a obra de Kelsen, tentaremos demonstrar quando e como a ética e a moral exercem seu papel na formação do Direito, e qual a importância desta incidência para tal.

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CAPÍTULO 1 O PENSAMENTO JURÍDICO DE HANS KELSEN

1.1As influências do pensamento de Kelsen

Um pensamento filosófico, para ser bem entendido em suas várias acepções, deve ser contraposto ao ambiente histórico no qual foi fundado, ou seja: para ser possível alcançar a mais ampla completude de uma teoria filosófica, é necessário adentrar os conceitos e idéias preexistentes a sua concepção. Isto porque o pensamento humano, por ser sempre dinâmico, tende a adotar pontos de partida baseados no conhecimento da realidade já dominado pelo homem, contrariando-o, mostrando suas falhas ou, ao contrário, aprofundando seus conceitos, a ponto de verificar novas concepções.

Deste modo, para se conhecer profundamente o pensamento exposto nas obras de Kelsen, estabelecendo suas reais bases e conceitos, torna-se imperioso buscar conhecer o momento histórico em que constituídas suas teorias, visando descobrir as influências que motivaram a postura filosófica adotada.

Nascido em 1881, na cidade de Praga, Kelsen inicia seus estudos logo no começo do século XX, sendo contemporâneo a muitos grandes pensadores, mantendo contato com destacados filósofos de sua época. Há relatos de que tenha freqüentado ou ao menos tido acesso aos debates filosóficos realizados pelo grupo de pensadores que se reuniam em Viena, conhecidos com Círculo de Viena.

Embora se diga que, a exemplo de Kelsen, Wittgenstein tenha apenas participado indiretamente do Círculo de Viena, suas idéias influenciaram incisivamente o pensamento predominante neste grupo de intelectuais, que viam em seu Tractatus Lógico-philosophicus uma verdadeira linha mestra para a construção de todo o conhecimento científico da época.

E certamente a filosofia analítica de Wittgenstein, difundida pelo Círculo de Viena, iria influenciar o pensamento de Kelsen, principalmente com relação ao problema do conhecimento, do que é possível conhecer cientificamente, ou seja, do que é possível apurar através da razão humana e de demonstrar segundo um método lógico-empírico, passível de ser expresso em definições lingüísticas consistentes.

Wittgenstein chega ao ápice de sua proposta filosófica ao advertir que a filosofia não deveria se preocupar com questões metafísicas que fogem ao conhecimento empírico, não

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sendo passíveis de uma resposta que se possa demonstrar segundo a experiência, chegando a afirmar que a filosofia não deveria se pronunciar sobre aquilo que não se pode falar.

Embora não tenha adotado o mesmo rigor extremo que Wittgenstein quanto às possibilidades do conhecimento, conforme será visto no decorrer deste trabalho, Kelsen certamente foi impulsionado por este pensamento amplamente divulgado pelo Círculo de Viena, levando-o a procurar identificar, dentro do fenômeno jurídico, aquilo que poderia ser conhecido de forma científica, ou melhor, que poderia ser traduzido em uma linguagem vertida em enunciados lógicos.

Esta é uma das razões que levaram o jurista vienense a criar as bases de sua Teoria Pura do Direito, pela qual visou extirpar, da ciência jurídica, as indagações metafísicas que não seriam passíveis de comprovação segundo uma lógica tradicional, pela qual se avalia se determinado enunciado científico é falso ou verdadeiro.

Kelsen admite que o direito positivo, enquanto conjunto de normas jurídicas, não está organizado segundo conceitos de lógica tradicional, posto que não se pode atribuir às proposições normativas a qualidade de verdadeiras ou falsas, mas tão somente a condição de válidas ou inválidas, de acordo com a pertinência ou conformação da norma ao sistema jurídico no qual está inserida.

Porém, a ciência do direito, na concepção que lhe foi dada pela Teoria Pura do Direito, consegue adotar um método lógico de verificação de suas proposições, pelo qual é possível avaliar se uma proposição descritiva da ciência jurídica é verdadeira ou falsa, conforme encontre tal proposição uma correspondente norma jurídica válida no ordenamento jurídico analisado.

Portanto, para manter a coerência lógica das proposições descritivas da ciência do direito, Kelsen propõe a construção de sua ciência apenas sobre o que entende ser seu objeto próprio, qual seja, a norma jurídica.

Outro ponto da teoria kelseniana que sofre forte influência da filosofia analítica de Wittgenstein é, sem dúvidas, o necessário afastamento de questões de cunho valorativo, do âmbito da ciência jurídica. Ora, os juízos de valor, por não se traduzirem em proposições verificáveis segundo uma lógica empírica, somente podem ser conhecidos pela intuição sensorial, ou seja, por um conhecimento emocional, impregnado de subjetivismo, que o torna sujeito a um relativismo conceitual, imprestável à ciência que busca perquirir resultados tendentes a serem absolutos.

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As teorias de Kant, por sua vez, também tiveram forte papel na concepção das teorias kelsenianas, auxiliando o jurista austríaco a desenvolver a metodologia científica revelada por sua Teoria Pura do Direito.

O jusfilósofo Hans Kelsen sofreu forte influência do criticismo de Kant, tanto que, para muitos juristas, Kelsen é conhecido como um neokantiano.

Certamente, uma das maiores influências do pensamento de Kant sobre a obra de Hans Kelsen, por estranho que possa parecer, foi a criação de uma filosofia pautada na idéia de que seria possível o conhecimento a partir de juízos sintéticos a priori, ou seja, através de juízos de lógica transcendental, independentes da experiência.

Esta idéia de existência de juízos lógicos transcendentais ajudou o jusfilósofo austríaco a construir seu conceito de norma fora do mundo da realidade fenomênica, ou seja, fora do mundo do ‘ser’, mas enquadrada em uma outra realidade, a do ‘dever ser’.

E tal influência torna-se clara quando Kelsen estabelece que o Direito não está sujeito ao princípio da causalidade, como as ‘ciência causais’1 estão, mas ao princípio da imputação, pelo qual se estabelece uma conseqüência esperada, mas não necessária, para determinada conduta.

Igualmente amparado na possibilidade de construir juízos sintéticos a priori, Kelsen vai justificar toda a sua teoria normativa em um pressuposto de lógica transcendental, que é a conhecida “norma hipotética fundamental”, idealizada para justificar a validade de seu sistema escalonado de normas, ou melhor, para justificar a validade da Constituição, que, por sua vez, validaria a normas inferiores, dentro do sistema piramidal por ele idealizado.

A noção de metodologia científica utilizada por Kelsen, bem como o isolamento do objeto do conhecimento para viabilizar sua apreensão, tem também suas origens no pensamento de Kant, de onde se extraiu a idéia de pureza do conhecimento cientifico acerca de seu objeto de estudo, o Direito Positivo.

Aliás, vale destacar que o modelo de ciência kelsiniano, ao mesmo tempo que descreve seu objeto, o cria,

1 Aliás, pertinente um parênteses neste momento, para justificar o ponto em que Kelsen se afasta e deixa de poder ser considerado um ‘positivista’.

Sem dúvida o ponto de partida para a construção do conceito de ‘ciência’ em Kelsen partiu do positivismo comtiano, percorreu as doutrinas de Bacon, bebeu da fonte do positivismo filosófico do século XIX, mas deles se afastou de forma deveras profunda quando Kelsen atingiu sua maturidade filosófica: enquanto o positivismo jurídico parte da distinção de ciências sociais e ciência naturais, Kelsen firma a distinção entre ciências normativas e ciências causais, fundamento epistemológico que levará a desenvolvimentos doutrinários profundamente distantes a tais correntes filosóficas, conforme se concluirá adiante.

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É que, segundo Goyard-Fabre, a teoria Pura do direito constrói, metodologicamente e segundo os postulados da filosofia transcendental kantiana, seu objeto de investigação: ‘Hegel acusara Kant de fazer do método um instrumento antes para a constituição do saber do que para sua exposição; pelo contrário, é isso o que Kelsen admira em Kant, chegando a copiá-lo’ (2002:344)

Na realidade, não é apenas a ciência do direito que cria seu próprio objeto, mas também o direito, como sistema de normas, regula sua própria criação por meio de um procedimento formal específico. Isso porque para Kelsen o direito positivo é um sistema dinâmico, que não pode existir senão por sua própria força e em consonância com sua instância específica de fundamentação: a norma fundamental. Anote-se, por oportuno, que o normativismo kelseniano – que Simone Goyard-Fabre chamou de teoria transcendentalista (2002:366) – não se confunde com a teoria autopoiética do direito porque são diferentes os propósitos que animam ambas as propostas teóricas. A Teoria Pura do direito, diferentemente da auopoiésis, orienta-se rumo a um a priori jurídico, arquitetando as próprias condições de sua pensabilidade e remonta, num processo ascendente, à sua última razão de ser (Goyard-Fabre, 2002:366).

[...] é por isso que o momento ontológico do direito tem importância apenas secundária na Teoria Pura do Direito que, como se pode facilmente verificar, privilegia o momento epistemológico. 2

Constata-se, pois, que há uma forte influência dos conceitos filosóficos kantianos na obra de Kelsen, principalmente em relação aos conceitos inseridos por Kant em sua “Crítica da razão pura”.

Tal influência se explica pelo fato de as teorias de Kant terem sido estudadas e aprofundadas mais tarde, e em período contemporâneo ao de Kelsen, pelos filósofos da chamada ‘Escola de Marburgo’, dentre os quais se destacam Paul Nartop, Ernst Cassirer e Hermann Cohen.

A Escola de Marburgo, ao aprofundar o conhecimento desenvolvido por Kant, ficou conhecida como um movimento neo-kantiano, ou denominada como neo-criticismo, reforçando a metodologia científica e o perfil epistemológico da busca pelo conhecimento. Tal fato, certamente, serviu como sugestão para a criação de uma ciência pura do direito, livre de interferência direta de outras ciências, a que Kelsen procurou justificar como uma forma de se evitar o que chamou de sincretismo metodológico.

Neste contexto, Max Weber dá grande contribuição a Kelsen, quando denuncia haver nítida distinção entre o campo de estudo da sociologia jurídica e da ciência do direito.

2

MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Filosofia do direito e justiça na obra de Hans Kelsen. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 81-82.

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Embora Kelsen tenha dedicado várias críticas a Weber, principalmente ao indicar, contrariando-o, a existência de uma dependência lógica da sociologia jurídica da Ciência do Direito, ambos pensadores concordavam que a sociologia jurídica tem seu nítido campo de estudo focado nas questões ligadas ao comportamento social ante a existência do direito positivo, ao passo que à Ciência do Direito cabe o estudo do que é e como é o direito.

Vale lembrar que Weber combateu as correntes propagadas em sua época, principalmente por seus antecessores Herman Kantorowicz e Eugen Erlich, que difundiram as idéias da chamada “Escola do Direito Livre” e do “Movimento Sociológico do Direito”, pelas quais se pregava a concepção de um direito constituído não pelas leis, mas pelos julgadores.

Com base nesta idéia, advertia-se que a ciência jurídica não poderia se pautar somente em relação às leis, como normas criadas pelo legislador, devendo ater-se à constatação empírica do que era decidido livremente pelos julgadores, acreditando ser esta a única possibilidade de conhecimento do direito.

Entendiam estes pensadores que a sociologia jurídica seria a única ciência capaz de estudar o Direito, a partir de dados concretos, posto que se dirigia ao escopo do próprio Direito, que seria a modificação do mundo fático. Desta forma, ao constatar as decisões proferidas pelos magistrados, seria possível apurar o sentido real do Direito.

Weber contrapôs-se a esta idéia, demonstrando que, na realidade, a Ciência do Direito e a Sociologia do Direito possuíam campos diferentes de incidência, não podendo ser justapostas, posto que se dirigiam a objetos distintos. A sociologia jurídica destinava-se a apurar o comportamento humano diante do Direito, pautando-se por um princípio de causalidade próprio do mundo do ‘Ser’, ao passo que a ciência jurídica dirigia-se segundo uma lógica deôntica, ou seja, do ‘Dever Ser’, não se atendo à realidade fática e sim à dogmática jurídica, não se preocupando com a modificação dos fatos sociais provocada pelas normas, mas como são as normas, o que é o Direito e como este se apresenta e se estrutura.

Desta forma, as idéias de Weber ajudam Kelsen a demonstrar os diferentes pontos de vista existentes entre a Sociologia Jurídica e a Ciência do Direito, bem como a nítida distinção entre seus campos de estudo, tornando possível apontar precisamente que a primeira se dirige ao estudo dos fatos, enquanto mundo do ‘Ser’, pautada no mesmo princípio das ciências naturais, qual seja, o princípio da causalidade; enquanto a segunda não se submete ao princípio da causalidade, mas ao da imputação (ou da normatividade), já que se aperfeiçoa por uma lógica deôntica, do ‘Dever Ser’, dirigindo seu foco de atenção exclusivamente para as normas jurídicas.

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Esta distinção metodológica adotada em relação à sociologia jurídica também será tomada por Kelsen para distinguir a Ciência do Direito das demais ciências sociais, como a política, a ética, a psicologia, dentre outras, já que cada uma delas possui seu próprio objeto de estudo e seus próprios métodos de apreensão do conhecimento específico a que se propõe. Deve-se, pois, buscar, para a real compreensão do problema que se quer solucionar, uma pureza metodológica conforme orientado por Kant, a fim de que se possa chegar a conclusões verdadeiramente científicas.

Assim, visando constituir uma metodologia verdadeiramente científica, livre de imprecisões conceituais promovidas principalmente pelo sincretismo metodológico que se verificava nas teorias jurídicas existentes até então, Kelsen identifica o campo de estudo da Ciência do Direito, como sendo unicamente o Direito Positivo, pretendendo excluir do campo de análise da ciência jurídica toda forma de conhecimento que não se atenha ao seu objeto próprio, ou à metodologia própria desta ciência, bem como o que não se possa apreender de forma racional, por meio do emprego de uma lógica tradicional, afastando-se toda sorte de juízos metafísicos.

Certamente é neste aspecto que o jurista vienense se aproxima da corrente positivista do Direito que predominava à sua época, em oposição aos adeptos do chamado Direito Natural, porém, como será visto mais adiante, destoando de forma acentuada dos positivistas tradicionais que o antecederam.

1.2 Sobre o Direito Natural e o Direito Positivo

Durante toda a evolução do pensamento jurídico é notória a dicotomia existente entre as correntes filosóficas que se apóiam em juízos metafísicos, entendendo-se existir um Direito preexistente ao próprio Direito Posto, denominado Direito Natural, e, de outro lado, as correntes filosóficas que afastam tais conceitos preexistentes, fixando a origem e o fim do Direito em si mesmo, ou seja, nas normas jurídicas postas.

Esta dicotomia torna-se extremamente relevante, quando se constata que qualquer teoria dirigida ao estudo do Direito, certamente se aproximará de uma ou outra corrente filosófica. Isto porque, por mais diferentes que sejam as teorias jurídicas propostas, de certa forma passarão pelo questionamento prévio de se aceitar uma justificativa externa ao Direito, considerando válidos alguns conceitos jurídicos preexistente ao Direito Posto, de índole

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metafísica, ou se tais conceitos não poderiam ser considerados existentes para o entendimento do fenômeno jurídico.

O conceito de Ciência do Direito de Hans Kelsen, por mais autêntico que se possa considerar, aproxima-se do positivismo jurídico, já que fixa como premissa uma análise dogmática do Direito, isenta de qualquer juízo metafísico, de índole ontológica, justamente para que possa prevalecer uma análise pura do Direito.

Porém, para que se possa discorrer de forma mais profunda sobre as similitudes ou distinções existentes entre a obra de Kelsen e outras teorias positivistas, ou mesmo para se afirmar o distanciamento de sua ciência dos conceitos fixados pela corrente que prega a existência do Direito Natural, faz-se necessário realizar uma digressão teórica, procurando observar a evolução desta dicotomia entre o positivismo jurídico e a escola jusnaturalista.

Muito embora a distinção dos conceitos de um e de outro já estivesse sendo delimitada desde a Grécia e Roma antigas, o uso do termo ‘direito positivo’ foi, de fato, empregado apenas a partir da era Medieval.

Quanto ao teor de seus conteúdos, Platão e Aristóteles já os delineavam, atrelando seus conceitos à idéia de Justiça, afirmando, principalmente Aristóteles3 (Livro V, capítulo VII, Ética a Nicômaco), que a ‘justiça’ teria uma parte de origem ‘natural’ e outra de origem ‘positiva’.

Para Aristóteles, portanto, natural seria a justiça que mantém em toda parte o mesmo efeito, não interessando o juízo que os sujeitos tenham d’ela (physikón). Portanto, a ‘justiça natural’ se apresentaria, para Aristóteles, universal (no espaço) e absoluta.

Por seu turno, positiva seria a justiça cuja origem não vem a caso, valendo pelo simples fato de ser o que é por convenção dos homens, de modo que, por conseqüência, só tem efeito nas comunidades singulares em que assim foi posta (nomikón díkaion).

Decorre, em Aristóteles, ser a justiça positiva mutável, histórica e relativa (no espaço e no tempo).

Note-se, portanto, que do pensamento grego-clássico, nos é possível retirar elementos qualificadores hábeis a distinguir um ‘direito positivo’ e um ‘direito natural’, muito embora – conforme acima dito – aquela expressão seja de uso mais recente.

Também na Roma Antiga há elementos, nos textos de aludida época, dos quais decorre a dicotomia conceitual necessária à distinção das idéias de direito natural (abarcando a expressão jus gentium) e direito positivo (refletido na expressão jus civile).

3

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2006. (Obra-prima de cada autor, 53).

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Em Roma, a distinção entre jus gentium e jus civile repousa em elementos semelhantes àqueles firmados por Aristóteles, uma vez que o jus gentium não encontraria limitações temporais ou espaciais e derivaria da naturalis ratio (razão natural), ou seja, é direito de todas as nações, posto que constituído por ‘providência divina’.

O jus civile, por sua vez, é particular de cada nação, sendo posto, para si, pelo próprio povo.

Portanto, no pensamento romano clássico a distinção entre direito natural e direito positivo já inspirava o caráter universal e imutável daquele e a particularidade e mutabilidade deste, nas dimensões espaço/tempo, conforme decorria da análise tecida, sobre o tema, por Paulo4 no Digesto.

Ainda no Digesto, Paulo traça distinção decisiva entre direito natural e direito positivo, prescrevendo que aquele estabelece aquilo que é bom em si mesmo, fundando-se, pois, em um critério moral, enquanto deste decorre aquilo que é útil, baseado, portanto, em um critério utilitarista.

Entretanto, é apenas no pensamento medieval que verificaremos o uso da expressão ‘direito positivo’ (jus positivum), conforme acima já salientado.

O pensamento medieval reforçou ainda mais a distinção entre direito natural e direito positivo, ao distingui-los segundo o critério de sua ‘instituição’, sendo este posto pelos homens (postestas populus) e aquele por algo (a natureza) ou alguém (Deus) acima dos homens.

O critério instituidor encontrou espaço dentre todos os escritores da era Medieval, fossem eles filósofos ou teólogos.

São Tomás de Aquino5, em sua célebre Summa Theologiae, estabeleceu diferenciação entre quatro categorias: a lex aeterna (que está na consciência de Deus e excede à razão humana), a lex divina (sendo Deus a lei de si próprio, sua medida); a lex naturalis (revelada por Deus aos homens) e a lex humana, correspondendo, as duas últimas categorias, aos conteúdos do direito positivo e direito natural.

Para São Tomás de Aquino, a lex naturalis – contida pela idéia de direito natural – está entalhada na razão da criatura, do ser e participada por Deus aos homens; enquanto a lex humana é obra do homem, que faz valer, por derivação, a lei natural. Assim, a lex humana só o é enquanto derivação da lex naturalis.

4 Paulo apud BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006. p. 18-19

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No pensamento moderno, entretanto, ganha cada vez mais força a polaridade entre direito natural e positivo, recebendo relevo o critério moral distintivo.

Grócio6 traz reverenciada distinção entre direito natural e direito positivo em seu “De jure belli ac pacis”, afirmando ser o direito natural aquele fruto da ‘justa razão’ (ou ‘reta razão’), sendo seu objetivo mostrar que um ato é moralmente torpe ou moralmente necessário segundo seja ou não de acordo com a própria natureza racional do homem, e um assim ato será vetado ou comandado pela natureza, ou, como queriam alguns, por Deus, enquanto Autor da natureza.

Sendo o Estado a associação perpétua de homens livres, na busca da utilidade comum, o direito positivo é então posto pelo Estado para satisfação da aclamada utilidade comum, sempre tendo em mira o que é bom e justo, como reflexo de um direito natural.

Lembre-se que Platão, na Grécia Antiga, já afirmava que o homem é um ser de relação, de modo que o Estado seria conseqüência inevitável da alteridade humana.

Porém, num momento histórico ainda anterior ao surgimento do Estado Moderno (fins do século XVIII), estabeleceu-se, por derradeiro, outro relevante critério distintivo entre direito natural e positivo, fundado no modus como o homem vem a conhecer as normas de um e de outro daqueles ‘direitos’.

Por aludido critério, o direito natural seria conhecido pelo homem através da razão, sendo, pois, categoria a priori; e o direito positivo seria conhecido através da vontade declarada do Estado (entendido como associação de homens livres). Tais conceitos são visíveis no pensamento de Glück7.

Do que se viu até aqui, cabe ressaltar que, até o fim do século XVIII – portanto, antes do surgimento do Estado Moderno – vigorou a visão dualista do direito, onde a distinção entre Direito Natural e Direito Positivo era apenas hierárquica. Na Grécia e Roma Clássicas, o Direito Natural não foi considerado superior ao Direito Positivo, nem inferior, salientando a incidência deste, segundo o critério de sua particularidade em confronto com a universalidade pregada àquele.

Na Idade Média, o Direito Natural é considerado superior ao Direito Positivo, sendo as normas daquele expressões da própria vontade de Deus.

Desta forma, toda a doutrina do Direito Natural, até então, tinha um caráter religioso mais ou menos acentuado; entretanto, a maior parte de seus pensadores, salvo os de cunho

6 Hugo Grócio apud BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006. p. 20-21.

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eminentemente teológico, buscou distinguir o Direito Natural do Direito Divino, fundando, um ou outro filósofo, sua teoria sobre a natureza, tal como é interpretada pela razão humana.

Porém, a partir do século XIX, com o estabelecimento do Estado Moderno, surge, de fato, um pensamento intitulado de ‘positivismo jurídico’, que passa a difundir uma visão monista do direito, ou seja, o pensamento segundo o qual o único Direito é o Positivo, enquanto que o Direito Natural seria outra coisa que não direito.

Tal pensamento só pode consubstanciar-se em virtude do processo de monopolização da produção jurídica por parte de outra fórmula de Estado: não mais visto como mera associação de homens livres, constituintes de uma sociedade pluralista; mas de um Estado (moderno) cuja sociedade assume visível estrutura monista, não mais ditadora da produção jurídica.

Desta forma, se antes os filósofos e pensadores indagavam a posição hierárquica entre Direito Natural e Direito Positivo; a partir da era moderna a questão debatida é considerar-se ou não o Direito Natural como Direito, sendo este o cenário que contrapõe, a princípio, juspositivistas (para quem não existe outro direito senão o positivo) e jusnaturalistas (vislumbrando o direito natural como autêntico direito, fundamento ou suplemento daquele).

Para os positivistas não seria possível compreender o Direito através de conceitos metafísicos, já que estes, por não serem postos, mas apenas supostos, não seriam passíveis de uma verificação científica, demonstrável através de métodos empíricos.

Por tal motivo, os positivistas viam na dogmática jurídica o único objeto de estudo da Ciência do Direito, eis que as normas jurídicas, por serem verificáveis, poderiam ser testadas e comprovadas através da experiência, e submetidas aos princípios de lógica tradicional.

O Direito, para os positivistas, encontra sua justificação e seu valor em si mesmo, ou seja, os juízos de valor, ligados a idéia de justiça, não poderiam ser buscados fora do campo da dogmática, como fazem os jusnaturalistas, que procuram justificar o Direito através de juízos preexistentes ao próprio Direito Posto, ora ditados por Deus, ora apurados pela própria natureza humana, mas sempre de forma supostamente absoluta e imutável, permitindo-se julgar as normas jurídicas criadas pelo homem como sendo justas ou injustas, boas ou más, morais ou imorais, segundo tais juízos valorativos amparados no Direito Natural.

Assim, de forma contrária aos jusnaturalistas, os adeptos do positivismo jurídico entendiam que a axiologia deveria partir da própria norma jurídica, de forma que os valores lhe seriam implícitos, ou seja, a norma positivada já traria consigo o sentido valorativo escolhido pelo homem, cabendo ao cientista jurídico apenas deduzir tais valores a partir do texto normativo.

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Esta idéia foi ressaltada de forma mais acentuada pela escola da exegese, para a qual não seria possível atribuir à norma jurídica a pecha de injusta, já que toda norma positivada seria sempre representativa do ideal de justiça, devendo, pois, ser seguida fielmente.

Dentro desta perspectiva, ao analisar a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, somos forçados a concluir que esta obra se aproxima diretamente do positivismo jurídico, posto que procura afastar da Ciência do Direito toda influência de elementos que são estranhos ao seu objeto próprio, que é a norma jurídica.

O próprio princípio da pureza prestigiado por Kelsen8 afasta qualquer possibilidade de se aproximar a Ciência do Direito idealizada pelo jurista austríaco das teorias do Direito Natural, pois,

Al calificarse como teoría “pura” indica que entiende constituir una ciencia que tenga por único objeto al derecho e ignore todo lo que no responda estrictamente a su definición. El principio fundamental de su método es, pues, eliminar de la ciencia del derecho todos los elementos que le son extraños.

O professor de filosofia do direito, Fábio Ulhoa Coelho9, define que,

[...] de um modo geral, positivista tem sido considerado tanto aquele autor que nega qualquer direito além da ordem jurídica posta pelo Estado, em contraposição às formulações jusnaturalistas e outras não formais, como o defensor da possibilidade de construção de um conhecimento científico acerca do conteúdo das normas jurídicas. Kelsen é positivista em ambos os sentidos’.

Kelsen afasta-se do Direito Natural por dois pontos relevantes. Primeiramente, por entender que os postulados jusnaturalistas, apenas supostos – já que não verificáveis pela experiência por estarem sujeitos a um relativismo conceitual – escapam aos métodos científicos. Por outro lado, os juízos formulados pelos jusnaturalistas não procuravam descrever o Direito, mas justificá-lo, o que não seria incumbência da Ciência Jurídica, mas da política, ou mesmo da filosofia.

Porém, apesar de entender que o único objeto possível da Ciência do Direito seria o Direito Posto, Kelsen distancia-se de vários juspositivistas que lhe antecederam, que ao propagarem a idéia de que todo o estudo jurídico deveria se pautar na dogmática jurídica,

8 KELSEN, Hans. Teoria pura del derecho: : introducción a la ciencia del derecho. 11. ed. Buenos Aires: Eudeba, 1973. p. 15.

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entendiam ser possível, através da análise exclusiva das normas jurídicas, apurar juízos axiológicos, supondo que a norma jurídica possuía um valor intrínseco, dedutível pela razão humana.

Assim, da mesma forma que Kelsen não admite os juízos valorativos formulados a partir de conceitos metafísicos, também não admite como papel da ciência jurídica a axiologia da norma jurídica.

Em outros termos, o princípio metodológico fundamental kelseniano afirma que o conhecimento da norma jurídica deve necessariamente prescindir daqueles outros relativos à sua produção, bem como abstrair totalmente os valores envolvidos com a sua aplicação. Considerar esses aspectos pré-normativos e metapré-normativos implica obscurecer o conhecimento da norma, comprometendo-se a cientificidade dos enunciados formulados acerca dela. 10 Esta exclusão da axiologia do campo de estudo da Ciência do Direito, que coloca a teoria desenvolvida por Kelsen distante tanto da escola do direito natural como de vários juspositivistas de sua época, é que garante a pureza e neutralidade da ciência jurídica idealizada pelo jurista vienense, marco característico de sua obra e que, por outro lado, rendeu inúmeras críticas.

1.3 A idéia de justiça

De toda a abordagem até aqui tecida, verifica-se que em toda discussão em torno do Direito Natural e do Direito Positivo – e, ainda, no pensamento juspositivista predominante na era Moderna – está presente, de forma direta ou indireta, a questão Ética que traz intrínseca a idéia de Justiça.

O louvor do justo, enquanto belo (e bom) e, portanto, expressão de preocupação de cunho ético e moral, não é peculiar apenas aos filósofos que se expressaram até o surgimento do Estado Moderno e dos filósofos jusnaturalistas pós-Estado Moderno. Também os juspositivistas (aqueles que negam o direito natural como direito) ocuparam-se (e se preocuparam) com a questão da Justiça.

10

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Logo, a perseguição do ideal de Justiça sempre foi o mote das teorias jurídicas, fossem elas de cunho jusnaturalista ou juspositivista. Os pregadores da existência de um Direito Natural utilizam-se da idéia de um Direito preexistente justamente para identificar no Direito Posto o aperfeiçoamento da Justiça, segundo os princípios e conceitos metafísicos amparados nesta concepção de um Direito absoluto e imutável.

Grande parte dos juspositivistas, por sua vez, se empenha para deduzir da própria norma jurídica positivada um valor intrínseco, que igualmente revele o ideal de Justiça, sustentando que a Justiça estaria na própria adequação da conduta humana ao ‘dever ser’ estabelecido pelo Direito Positivo.

Veja-se que a realização, ou encontro, da Justiça é preocupação dos filósofos desde a Grécia e Roma antigas, estendendo-se até nossos dias, por ser elemento necessário à convivência social harmônica e feliz.

Porém, esta busca pela tão aclamada Justiça necessariamente deve passar pelo questionamento natural do que seja Justiça, como defini-la, como conceitua-la, enfim, como encontrar suas possibilidades de conhecimento pelo homem, e mesmo se tal tarefa é realmente possível.

Platão afirmou que a Justiça é a virtude que mantém a harmonia geral. Olinto A. Pegoraro11, filósofo atual que escreveu em seus livros a visão de Aristóteles e Platão sobre a Ética, afirma que “[...] viver eticamente é viver conforme a justiça.”

Na mesma linha platônica, Aristóteles ponderou que a Justiça é a virtude concernente às relações sociais.

Para os romanos, a idéia de Justiça moldava-se no conceito de eqüidade, sendo está uma entidade superior ao jus, que exorbita da esfera jurídica e investe sobre todas as relações humanas. A Justiça, como condição que deve permear as relações sociais, também foi objeto de estudo filosófico de São Tomás de Aquino, ponderando que esta tem por escopo ordenar o homem nas suas relações com os outros homens.

A filosofia tomista de cunho teológico, afirmou ser a fé, a esperança e o amor as virtudes fundamentais da revelação, que iluminam o modelo da ética humana, e considerou, por fim, a Justiça como a totalidade das virtudes, demonstrando o liame que a une à Ética.

Da mesma forma, falar de Ética impõe-nos pensar na Moral, visto ser aquela a essência filosófica desta. Através das normas morais é possível praticar a virtude (ou as

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virtudes), cujos caminhos nos são apontados pelos princípios éticos. A Justiça, portanto, enquanto expressão do bem, é objeto da Moral e objetivo da Ética.

Veja-se que as definições de Justiça expostas por vários pensadores e filósofos de todos os tempos, que trataram de forma específica ou indiretamente sobre o tema, nunca conseguiram conceituá-la em sua plenitude. O que fazem estes pensadores é traçar um perfil ideal do que seja Justiça, geralmente atrelado a outros conceitos igualmente relativos e imprecisos, carregados de subjetivismos, como a idéia de virtude, de bom ou mau, de felicidade.

Isto acontece porque a idéia de Justiça é, na realidade, um juízo de valor, e, como tal, está, por vezes, atrelado à vontade, sendo apurável apenas pelo conhecimento sensorial, melhor dizendo, por um conhecimento emocional e não racional.

Quando se julga que algo é bom ou mau, justo ou injusto, virtuoso ou viciado, se exprime, em verdade, uma opção pessoal, de índole subjetiva e, por isso, relativa.

Para exemplificar este relativismo intrínseco à idéia de Justiça, Kelsen12 utiliza-se, em sua Teoria Pura do Direito, da comparação ente uma ordem jurídica comunista e uma ordem jurídica capitalista, assim ponderando:

El que considera justo o injusto un orden jurídico o alguna de sus normas se funda, a menudo, no sobre una norma de una moral positiva, es decir, sobre una norma que ha sido ‘puesta’, sino sobre una norma simplesmente ‘supuesta’ por él. Así considerará, por ejemplo, que un ordem jurídico comunista es injusto puesto que no garantiza la libertad individual. Com ello supone, entonces, que existe una norma que dice que el hombre debe ser libre. Ahora bien, tal norma no ha sido estabelecida por la costumbre ni por el mandato de un profeta: solamente ha sido supuesta como constituyendo un valor supremo, inmediatamente evidente. También podemos colocarnos en un punto de vista opuesto y considerar que un orden jurídico comunista es justo puesto que garantiza la seguridad social. Suponemos entonces que el valor supremo e inmediatamente evidente es una norma que dice que el hombre debe vivir en seguridad.

Las opiniones de los hombres divergen en cuanto a los valores que han de considerarse como evidentes y no es posible realizar todos estos valores en el mismo orden social. Es necesario, entonces, elegir entre la libertad individual y la seguridad social, con la consecuencia de que los partidários de la libertad juzgarán injusto un orden jurídico fundado sobre la seguridad, y viceversa.

Por el mismo hecho de que estos valores son supuestos supremos no es posible darles una justificación normativa, ya que por encima de ellos no hay normas superiores de las cuales se los pueda considerar derivados. Son móviles de orden psicológico los que conducen al individuo a preferir la libertad o la seguridad, y tienen su fundamento en el carácter.

12

KELSEN, Hans. Teoria pura del derecho: introducción a la ciencia del derecho. 11. ed. Buenos Aires: Eudeba, 1973. p. 59-60.

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El que tiene confianza en si mismo optará probablemente por la libertad, y el que sufre un complejo de inferioridad preferirá sin duda la seguridad. Estos juicios de valor tienen, pues, un carácter subjetivo, porque no se fundan en una norma positiva, sino en una norma solamente supuesta por el que los enuncia.

Verifica-se, portanto, que a idéia de Justiça é obtida através de juízo de valor, que, como tal, está sujeito ao relativismo próprio do conhecimento emocional, de índole subjetiva. Assim, tais juízos de valor tornam-se imprestáveis para a ciência, posto que não é dado ao conhecimento racional, um método capaz de apurar, de forma absoluta, seu completo conteúdo, tendo em vista o fato de este ser justamente um conceito relativo.

Note-se que Kelsen jamais afirmou que se deve renunciar, por completo, ao postulado de que o direito deve ser justo. O que jurista austríaco conclui em sua Teoria Pura do Direito é que tal valoração não cabe à ciência.

Quanto à idéia de Justiça, Kelsen reconheceu tratar-se de um valor absoluto, sendo, portanto, eterna e imutável. Contudo, tratar-se-ia de elemento irascível, ou seja, nenhuma ciência poderia determinar seu conteúdo, variável ao infinito, valendo transcrevê-lo:

Además, la idea de justicia no se presenta casi nunca como un valor relativo, fundado sobre una moral positiva, establecida por la costumbre, y por esta razón diferente de un lugar a otro, de una época a outra. En su sentido propio la idea de justicia es un valor absoluto, un principio que pretende ser válido siempre y en todas partes, independientemente del espacio y del tiempo; es eterna e inmutable. Ni la ciencia del derecho positivo ni ninguna otra ciencia pueden determinar su contenido, que varía al infinito. 13

Deste modo, verifica-se que a preocupação de Kelsen não é simplesmente afastar do Direito qualquer influência da idéia de Justiça ou mesmo de outros juízos de valor. O que pretendeu Kelsen foi distanciar da Ciência do Direito a incumbência de perquirir sobre tais juízos, pela simples razão, de que tais juízos de valor são relativos e, consequentemente, não podem ser conhecidos pelos métodos da ciência – pelo menos pela ‘ciência’ tal como concebida por Kelsen, que tem por objetivo a busca de conceitos absolutos.

13

KELSEN, Hans. Teoria pura del derecho: introducción a la ciencia del derecho. 11. ed. Buenos Aires: Eudeba, 1973. p. 60-61.

(33)

1.4 O problema do conhecimento para Kelsen

A influência dos debates filosóficos travados no final do século XIX e início do século XX, principalmente através do Círculo de Viena e da Escola de Marburgo, como visto, condicionou o pensamento do jurista vienense, Hans Kelsen, a indagar quais seriam as possibilidades de conhecimento científico do Direito.

Tal questionamento revela-se ainda mais relevante para Kelsen, quando se constata o momento histórico vivido por este jurista, que começa a propagar seus primeiros estudos por volta do ano de 1911.

Nesta época o debate filosófico de maior expressão girava em torno dos fundamentos de validade do Direito, indagando-se quais seriam as justificativas de um Direito Positivo. Diversas teorias procuravam justificar o Direito Positivo através dos mais variados pontos de vista, eis que, a todo o momento, davam-lhe enfoques sob perspectivas diferentes, erguidas com base em métodos e conceitos próprios de ciências sociais diversas, as quais não tinham comprometimento com o conhecimento exclusivo do objeto a que se propunham a estudar, qual seja, o Direito.

Margarida Maria Lacombe Camargo14 define bem o momento vivido por Kelsen e as influências filosóficas que colaboraram com a criação de seu pensamento, narrando que o pensamento de Kelsen é visto como influenciado ora pelo neokantismo sudocidental alemão, ora pelo neopositivismo do Círculo de Viena, sob o ponto de vista da filosofia e da teoria do conhecimento, citando Miguel Reale, quando descreve o verdadeiro “caos” vivido pelo Direito na segunda década do século XX, assim manifestando: “A ciência jurídica era uma cidadela cercada por todos os lados, por psicólogos, economistas, políticos e sociólogos. Cada qual procurando transpor os muros da Jurisprudência para torná-la sua, para incluí-la em seus domínios.” 15

É neste cenário que Kelsen inicia a construção de uma teoria capaz de delimitar o campo de conhecimento da Ciência do Direito, tentando conferir alguma autonomia em relação às demais ciência sociais, que tentavam buscar para si a descrição, ou melhor, a justificação do Direito, porém sem êxito, na visão do jurista vienense.

14 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

(34)

Tércio Sampaio Ferraz Júnior16, em prólogo feito à obra de Fábio Ulhoa Coelho, ao se manifestar quanto à Teoria Pura do Direito, esclarece-nos que:

O grande objetivo da obra foi discutir e propor os princípios e métodos da teoria jurídica. Suas preocupações, neste sentido, se inseriam no contexto específico dos debates metodológicos do final do século XIX e que repercutiam intensamente no começo do século XX. A presença avassaladora do positivismo jurídico da várias tendências, somada à reação dos teóricos da livre interpretação do direito, punha em questão a própria autonomia da ciência jurídica. Para alguns, o caminho dessa metodologia indicava para um acoplamento com outras ciências humanas, como a sociologia, a psicologia e até com princípios das ciências naturais. Para outros, a liberação da Ciência jurídica deveria desembocar em critérios de livre valoração, não faltando os que recomendavam uma volta aos parâmetros do direito natural. Nesta discussão, o pensamento de Kelsen seria marcado pela tentativa de conferir à ciência jurídica um método e um objeto próprios, capazes de superar as confusões metodológicas e de dar ao jurista uma autonomia científica.

Foi com este propósito que Kelsen propôs o que denominou princípio da pureza, segundo o qual método e objeto da ciência jurídica deveriam ter, como premissa básica, o enfoque normativo. Ou seja, o direito, para o jurista, deveria ser encarado como norma (e não como fato social ou como valor transcendente). Isto valia tanto para o objeto quanto para o método.

O que Kelsen identifica como princípio da pureza é sem dúvida o ponto de partida epistemológico para construção de sua ciência jurídica. Como dito pelo próprio jurista vienense:

Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objetivo, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental.17

Por outro lado, além do princípio da pureza, Kelsen informa-nos que todo conhecimento científico deve ser neutro, ou seja, não deve emitir qualquer juízo de valor em relação ao objeto de estudo, apenas descrevê-lo.

Portanto, em seu modelo de ciência jurídica, Kelsen estabelece ao lado do princípio da pureza, a neutralidade científica, pela qual afasta da ciência a incumbência de julgar o próprio

16 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Prólogo. In: COELHO, Fabio Ulhoa. Para entender Kelsen. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 15.

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Direito, de a ele atribuir um valor ou mesmo justificar este Direito através de um juízo axiológico.

Kelsen propõe, portanto, dois cortes metodológicos para definição de sua ciência jurídica: a pureza da ciência do direito, decorrente da estrita definição de seu objeto (corte epistemológico) e de sua neutralidade (corte axiológico).18

Todavia, deve ser destacado que esta segregação proposta por Kelsen, que muitos equivocadamente criticam, alegando gerar uma redução da ciência jurídica a um formalismo exagerado, não significa, como pesam tais críticos, um desprezo completo, por parte de Kelsen, dos juízos de valor e dos conceitos e proposições encontrados por outros campos das ciências sociais, que estabeleçam certo grau de conexão com o Direito.

O problema para Kelsen é identificar dentre todos os campos do conhecimento jurídico, aquele que realmente possa descrever o Direito Posto, de forma racional e segundo princípios lógicos, chegando a proposições verdadeiramente científicas, capazes de serem testadas através de uma metodologia própria.

Portanto, através do corte metodológico idealizado pelo jurista vienense, viabilizado através da utilização do princípio da pureza e do afastamento da axiologia da norma jurídica, Kelsen consegue separar de um lado o conhecimento científico do Direito e, de outro, a crítica filosófica deste conhecimento científico, onde se encontra toda sorte de juízos axiológicos ou de outros campos igualmente científicos.

1.5 O conhecimento filosófico – o que é Filosofia?

Ao termo Filosofia foram atribuídas, ao longo da história, diversas significações e, em todas elas, é possível identificarmos alguns elementos conceituais constantes.

Não há dúvidas de que a melhor definição atribuída ao termo foi aquela construída por Platão, para quem Filosofia é o uso do saber em proveito do homem. Em Platão, a Filosofia é a ‘ciência’ em que coincidem o ‘fazer’ e o ‘saber utilizar’ o que é feito, sendo pertinente a metáfora segundo a qual de nada adiantaria saber fazer fogo, se não soubesse utilizar o fogo.

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