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As origens da Filosofia do Direito e da Ciência do Direito

No documento PERLA CAROLINA LEAL SILVA MÜLLER (páginas 43-47)

CAPÍTULO 1 O PENSAMENTO JURÍDICO DE HANS KELSEN

1.7 As origens da Filosofia do Direito e da Ciência do Direito

A Filosofia, assim exposta, busca conhecer todas as coisas que interessam ao homem, dirigindo seus esforços para descobrir a verdade em tudo que existe e, até mesmo, as razões da própria existência.

Dentro desta perspectiva, o homem e suas relações com seus semelhantes destacam-se como as maiores preocupações da Filosofia, desde a Idade Antiga até os dias atuais.

A Filosofia, portanto, sempre indagou os princípios causais ou as razões que guiam a ação humana, de forma a permitir um convívio social harmônico. Neste contexto, é possível perceber que, desde o momento em que o homem se organizou em sociedade, necessariamente apareceram as primeiras regras de conduta, estabelecendo direitos e obrigações ao homem, impondo limites à liberdade individual para permitir o convívio em sociedade.

Tais regras, antes implícitas e de cunho moral, começam, então, a serem ditadas por esta sociedade, adquirindo força coercitiva, dando, assim, origem ao Direito.

O Direito passa a existir como realidade nas organizações sociais, desde as origens das civilizações humanas, tornando-se, a partir de então, objeto de árduo estudo dos filósofos, que

sempre procuraram definir suas origens, seus motivos de existência, bem como os fundamentos que lhe asseguram o respeito social, e, antes de tudo, seus fins supremos.

Ao lado da Moral, o Direito passa a receber justificativas de existência que tinham, inicialmente, um conceito ligado diretamente à noção de Justiça, do bem e do mal, e, sobretudo, de princípios naturais que regem o homem.

É por tal motivo que a Filosofia antiga sempre procurou traçar suas formulações teóricas sobre as normas jurídicas atrelando-as ao justo, numa tentativa dar fundamentação aos comandos impositivos e obrigatórios ditados pelo homem, através de uma correlação a ditames pré-existentes, sejam apontados pela natureza, por uma divindade, ou pela própria razão humana.

Após um crescente amadurecimento histórico é que a Filosofia, que até então se referia ao Direito de forma implícita, ao lado de normas morais, passa a focar estritamente seu objeto de estudo, o Direito e sua relação com o fato jurídico concreto. É aqui que se observa o surgimento de uma Filosofia do Direito, ciente de seus limites próprios, de suas indagações particulares às normas jurídicas e de suas correlações com as ações humanas e as relações sociais.

A preocupação da Filosofia do Direito passa a ser a de justificar a existência do próprio Direito, de um lado esbarrando na existência de um suposto Direito Natural e, de outro lado, na força do Estado como ente criador do Direito, a despeito de suas determinações pré-existentes.

É neste momento que surge uma distinção de idéias entre os filósofos do direito, quanto às origens e pressupostos de existência das normas jurídicas, que ensejará na dicotomia entre o Direito Natural e o Direito Positivo.

Porém, até então, ambas as correntes filosóficas do pensamento jurídico, diga-se, tanto as teorias do Direito Natural como as teorias juspositivistas, procuravam justificar o Direito, definindo sua validade, através da análise de seu conteúdo, atribuindo-lhe juízos de valor, ora amparados na noção de uma justiça pré-existente, ora afirmando que a norma jurídica trazia em si o ideal de justiça almejado pelo legislador e aceito como verdadeiro pelo Estado. Desta feita, tal conteúdo valorativo não podia ser buscado fora da própria dogmática, cabendo ao intérprete da norma a dedução racional de aludido valor.

Neste momento, ambos os enfoques dados pelas escolas do Direito procuravam dar a este uma valoração, ou seja, emitiam sobre o direito um juízo axiológico, preocupando-se em apontar como deveria ser o direito e não como ele realmente era.

Todavia, o papel de descrever o Direito da forma como é apresentado, procurando conhecer as relações existentes entre as normas jurídicas, o modo de criação do direito, bem como os princípios e métodos de compreensão do fenômeno jurídico, passou a exigir um esforço dos juristas no intuito de encontrar um modo racional de realizar tal operação de conhecimento.

Assim, embora já tenhamos, desde os romanos, uma fundação sistemática de uma ordem normativa, com uma metodologia de codificação e uma estrutura racionalmente ligada por princípios, podemos observar uma crescente evolução de uma ciência própria do direito, a partir do momento em que as normas jurídicas são vistas como foco de um exame epistemológico, tencionando encontrar seus princípios de validade.

Nesta perspectiva de estudar o Direito com uma visão estritamente científica, encontrando bases sólidas de fundamentação da validade das normas jurídicas, é que alguns pensadores rechaçam a prevalência do Direito Natural como pressuposto de validade das normas jurídicas, encontrando nestas mesmas e nos fatos jurídicos os únicos objetos suscetíveis do conhecimento científico, surgindo, assim, o positivismo jurídico, que se propõe a encontrar as bases do Direito no próprio Direito Positivo, nas normas jurídicas postas.

É justamente neste ponto que se enquadra o perfil de ciência de Hans Kelsen. A proposta do mestre de Viena é justamente encontrar métodos científicos para se conhecer o que é o direito e como ele se apresenta, colocando, pois, como objeto único da Ciência do Direito, as normas jurídicas.

Seguindo esta proposta, Kelsen vai além do positivismo vigente em sua época, ao propor um verdadeiro corte metodológico, visando extrair do universo de todo o conhecimento dirigido ao Direito aquilo que poderia ser cientificamente apurado.

Este corte metodológico, conforme será visto adiante, importa em definir os métodos e princípios próprios da Ciência do Direito, isolando-a de outras formas de conhecimento relacionado ao Direito, que sejam apurados por métodos próprios de outras ciências. Em seu modelo de ciência jurídica, Kelsen afasta ainda a possibilidade se realizar dentro da ciência juízos de valor quanto às normas jurídica, posto que tais juízos axiológicos possuem uma carga de relativismo, que não se amoldam às exigências de certeza e precisão dos enunciados científicos.

Importa destacar, desde já, que ao realizar o corte metodológico acima referido, Kelsen não pretende negar as outras formas de conhecimento científico ou valorativo sobre o Direito, mas tão somente retirá-los do campo de estudo da ciência jurídica, deixando margem

para que estas outras formas de saber sejam empregadas como crítica às proposições encontradas pela ciência, como típico papel de uma filosofia do direito.

Kelsen, portanto, identifica que o conhecimento científico somente pode emitir juízos de validade sobre o Direito, enquanto caberia à filosofia emitir juízos de valor sobre as proposições jurídicas encontradas pela ciência, em verdadeira crítica ao saber, com toda a sua carga ideológica e valorativa própria da filosofia, que se vale de todo tipo de conhecimento possível para emitir seus juízos, inclusive o revelado por outras ciências.

Norberto Bobbio explica bem esta diferença entre o conhecimento científico e o conhecimento filosófico sobre o Direito, marcante na obra de Kelsen, ao dispor que:

A distinção entre juízo de validade e juízo de valor veio a assumir a função de delimitação das fronteiras entre ciência e filosofia do direito. A atitude do juspositivista, que estuda o direito prescindindo de seu valor, fez refluir à esfera da filosofia a problemática e as presquisas relativas a isso.

O filósofo do direito não se contenta em conhecer a realidade empírica do direito, mas quer investigar-lhe o fundamento, a justificação: e ei-lo assim colocado diante do problema do valor do direito. A filosofia do direito pode, consequentemente, ser definida como o estudo do direito do ponto de vista de um determinado valor, com base no qual se julga o direito passado e se procura influir no direito vigente.

Temos assim duas categorias diversas de definições do direito, que podemos qualificar, respectivamente, como definições científicas e definições filosóficas: as primeiras são definições factuais, ou avalorativas, ou ainda

ontológicas, isto é, definem o direito tal como ele é. As segundas são

definições ideológicas, ou valorativas, ou deontológicas, isto é, definem o direito real tal como deve ser para satisfazer um certo valor. 28

Assim, ao separar o conhecimento científico do conhecimento filosófico sobre o direito, Kelsen não atribui à Filosofia do direito um papel de extrema importância, que seus críticos parecem não ter entendido, que é exatamente a tarefa de julgar o direito criado pelos homens, exercendo verdadeira crítica sobre este objeto do conhecimento, de forma a influenciar decididamente sobre o ato criador do direito.

28

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006. p. 138. (grifo do autor).

No documento PERLA CAROLINA LEAL SILVA MÜLLER (páginas 43-47)