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A influência da moral e da ética científica na aplicação do direito

No documento PERLA CAROLINA LEAL SILVA MÜLLER (páginas 82-85)

CAPÍTULO 3 O PAPEL DA ÉTICA E DA MORAL NO PENSAMENTO DE

3.5 A influência da moral e da ética científica na aplicação do direito

A Ética, em uma visão positivista, como já dito anteriormente, pode ser vista como ciência que busca encontrar, através de métodos e princípios próprios, as condutas morais postas, ou seja, aquelas condutas humanas aceitas como moralmente válidas em dada sociedade.

Esta, aliás, é a concepção que Kelsen traz em sua Teoria Pura do Direito, quando trata a Ética em seu aspecto científico, colocando-a ao lado da Ciência do Direito, de forma que a esta caberia o estudo das normas jurídicas postas e àquela a análise de uma moral positiva.

Foi afirmado também que, na visão kelseniana, embora a moral e o direito sejam normas prescritivas positivadas em dado espaço e tempo, tais normas não se confundem, e sim pertencem a ordens normativas distintas, com características próprias. A norma jurídica é posta por autoridades competentes definidas pelo Estado, possuindo força coercitiva amparada no poder estatal, ao passo que as normas morais são introduzidas pela própria sociedade, que ao identificar uma conduta como imoral, prescreve como conseqüência deôntica uma reprovação social, ou de ordem íntima e, pois, subjetiva.

Ressalta-se aqui, a concepção do jurista vienense, segundo a qual somente considerando o Direito como algo distinto da Moral é que se pode emitir juízo a respeito de uma norma jurídica ser ou não condizente com as normas morais, posto que só é possível comparar-se objetos distintos. Melhor dizendo, caso o Direito e a Moral se confundissem, estando o conteúdo das normas morais sobrepostos ao das normas jurídicas ou vice-versa, de forma que um fosse fundamento de validade do outro, somente poderíamos dizer que aquela norma jurídica é sempre moral ou, do contrário, que a ordem moral é sempre jurídica.

Neste sentido, vale relembrar Kelsen14, quando diz que: “[...] gracia a esta condición resulta posible pronunciar un juicio moral sobre un orden jurídico considerado en su conjunto o sobre cualquiera de las normas que lo constituyen.”

Existindo esta separação entre as normas morais e as normas jurídicas, é possível, como dito pelo próprio jusfilósofo austríaco, um juízo de valor sobre a norma jurídica, para que se possa qualificá-la como condizente com a moral ou não.

Todavia, segundo o próprio mestre de Viena, este juízo de valor não tem incidência na análise feita pela ciência do direito, já que a mesma, na forma em que foi idealizada na Teoria Pura do Direito, deve ser isenta de qualquer juízo metajurídico, limitando seu espectro de análise à dogmática jurídica.

Então, como seria possível realizar este juízo valorativo, de cunho ético, no tocante à coincidência ou não de uma norma jurídica com a ordem moral, se para Kelsen a ciência jurídica não seria capaz de realizar tal avaliação?

Em resposta a tal indagação podemos afirmar que um juízo de valor ético, que considera uma norma condizente ou não com a moral, terá lugar no momento de sua criação,

14

KELSEN, Hans. Teoria pura del derecho: introducción a la ciencia del derecho. 11. ed. Buenos Aires: Eudeba, 1973. p. 56.

através da opção realizada pelo legislador ou pelo aplicador do direito, que poderá escolher, dentre as regras de direito possíveis, reveladas pela ciência jurídica, aquela que se coaduna ou, ao menos, não contraria as normas morais apontadas pela ciência ética.

E como este juízo valorativo poderia de fato influenciar a criação da norma jurídica? Para responder a esta indagação, de cunho prático, nada melhor do que recorrermos aos exemplos.

Assim, tomemos como objeto de análise a figura do nepotismo na administração pública.

O nepotismo caracteriza-se pela contratação de parentes por servidores de qualquer dos três poderes do Estado, que detenham competência para contratação de servidor em cargo de confiança.

Veja-se que a contratação de servidor público deve ser precedida por concurso público, que avalia o candidato quanto à sua aptidão para preencher determinada função ou cargo público.

Todavia, existem normas jurídicas postas pelos vários entes públicos, e, portanto, válidas, estabelecendo a possibilidade de se contratar sem concurso público quando se tratar de cargo de confiança. Tais normas, em geral, não proíbem que os cargos de confiança sejam preenchidos por parentes de detentores de mandato político ou cargo administrativo, que exerçam poderes de contratação.

Assim, por não haver norma expressa prescrevendo a proibição quanto à contratação de parentes para preencherem vagas de cargos de confiança, é possível ao intérprete do Direito, ao analisar o caso em questão, concluir que é pertinente ao sistema jurídico uma regra de direito que enuncie ser permitida a conduta de contratar parentes sem concurso público, desde que para cargos de confiança.

Por sua vez, independentemente de qualquer alteração legislativa, é igualmente possível ao jurista considerar que o princípio da finalidade e da eficiência do ato administrativo, inseridos no texto constitucional, possuem como um de seus significados semânticos a proibição do administrador contratar uma pessoa que não possua qualificação adequada para um cargo público, simplesmente por ser seu parente, ainda que o cargo a ser preenchido seja de confiança.

Desta forma, vemos, no exemplo dado, a possibilidade de construção de duas regras de direito embasadas em normas jurídicas válidas dentro do sistema normativo brasileiro, porém antagônicas entre si.

Por sua vez, a sociedade brasileira há muito tempo identifica no nepotismo uma atitude contrária à moral, posto que representa um privilégio do administrador público que visa, através desta conduta, apenas o benefício pessoal e de seus familiares, em detrimento do bem público.

Assim, diante de um caso concreto de nepotismo, não qual se contrata um parente sem qualificação para um cargo de confiança, caberá ao julgador uma opção entre as duas proposições jurídicas que lhe são dadas pela Ciência do Direito.

Neste momento, caso entenda que a situação concreta colocada a julgamento representa uma violação à norma moral posta pela sociedade brasileira, segundo a qual o nepotismo significaria uma atitude não pautada pela ética, poderá o julgador optar pela regra de direito que estabelece a proibição do nepotismo, estando tal proibição contida nos princípios que norteiam a administração pública em geral.

Ao realizar esta opção, o julgador firma um nítido juízo de valor, de cunho ético- político, criando uma nova norma jurídica, individual e concreta, para regular o caso posto em julgamento.

Da mesma forma, o legislador, ao constatar no meio social, através do emprego de um conhecimento ético, que o nepotismo é uma conduta que viola um preceito moral posto pela sociedade brasileira, poderá criar norma jurídica, geral e abstrata, prescrevendo a proibição de tal conduta, inclusive impondo sanções à sua violação.

Portanto, verifica-se através do exemplo dado, ser possível tanto ao legislador, quanto ao aplicador do direito, formular juízos valorativos a partir das molduras traçadas pela ciência do direito, com fundamento em normas morais reveladas por uma ética científica, optando, no momento da criação da norma jurídica, por aquele enunciado prescritivo possível, que se amolda a uma norma moral posta e previamente identificada.

No documento PERLA CAROLINA LEAL SILVA MÜLLER (páginas 82-85)