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O conhecimento filosófico – o que é Filosofia?

No documento PERLA CAROLINA LEAL SILVA MÜLLER (páginas 35-41)

CAPÍTULO 1 O PENSAMENTO JURÍDICO DE HANS KELSEN

1.5 O conhecimento filosófico – o que é Filosofia?

Ao termo Filosofia foram atribuídas, ao longo da história, diversas significações e, em todas elas, é possível identificarmos alguns elementos conceituais constantes.

Não há dúvidas de que a melhor definição atribuída ao termo foi aquela construída por Platão, para quem Filosofia é o uso do saber em proveito do homem. Em Platão, a Filosofia é a ‘ciência’ em que coincidem o ‘fazer’ e o ‘saber utilizar’ o que é feito, sendo pertinente a metáfora segundo a qual de nada adiantaria saber fazer fogo, se não soubesse utilizar o fogo.

A definição dada por Platão à Filosofia conserva-se, ao menos em essência, em todas as definições atribuídas ao termo ao longo da história, seja na definição de Descartes, de Hobbes, de Kant, de Dewey e mesmo de Wittgenstein.

E a vantagem do conceito elaborado por Platão repousa no fato de nada estabelecer sobre a natureza e os limites do saber acessível ao homem ou sobre os objetivos para os quais ele pode ser dirigido. Neste sentido,

[...] pode-se entender esse saber tanto como revelação ou posse quanto como aquisição ou busca, podendo-se entender que seu uso deva orientar-se para a salvação ultraterrena ou terrena do homem, para a aquisição de bens espirituais ou materiais, ou para a realização de retificações ou mudanças no mundo. 19

Deste modo, qualquer que seja a definição atribuída ao termo Filosofia, as idéias de posse ou aquisição de um conhecimento o mais amplo e válido possível e o uso deste em benefício do homem serão constantes.

Não importa qual a corrente de pensamento filosófico seguida ou defendida, ter-se-á sempre a Filosofia como postura de inquietação e perplexidade adotada pelo homem diante do mistério e do caráter problemático do real, da vida, da natureza, do cosmos.

Filosofar é uma atitude permanente e circular; é a busca da verdade última, mas não plena, posto que o filósofo sempre perseguirá a atualização e crítica desta verdade. O filósofo é um incansável!

Tendo em vista a idéia pacífica – derivada da definição platônica, de que a Filosofia refere-se ao uso do saber acessível ao homem, surge a necessária fixação do juízo de validade deste saber.

Aqui emergem duas tendências que atribuem, à Filosófica, significações deveras diferentes.

A primeira tendência estabelece a origem divina do saber, sendo este uma revelação ou iluminação supraterrena. A validade do saber, assim, não pode ser questionada, competindo à Filosofia aproximar a verdade revelada da compreensão humana, caminho este que levaria à salvação.

Note-se que o trabalho filosófico torna-se um tanto quanto limitado, posto que não pode avançar na direção da contrariedade da verdade revelada. A Filosofia, assim, trabalharia a serviço da conservação das crenças estabelecidas. O saber, como verdade revelada, é

absoluto, imutável. Esta via do pensamento filosófico é seguida por muitos neoplatônicos, pela Patrística e Escolástica e pelas filosófias orientais.

São Tomás de Aquino, por exemplo, partindo da interpretação das obras de Aristóteles, em especial da Metafísica e de sua lógica analítica, sustentou que, com base em princípios auto-evidentes e na verdade revelada por Deus na Bíblia, poder-se-ia erguer um arcabouço de conhecimento de acordo com princípios racionais. 20

Já a segunda tendência estabelece que o saber é uma conquista ou produção do homem. À Filosofia compete a busca e organização do saber. Aqui a Filosofia não encontra obstáculos, comprometendo-se com a investigação em qualquer direção, seja para negar, reformar, manter ou atualizar tradições, mitos e crenças.

Para esta tendência do saber como conquista ou produção humana, a Filosofia adquire papel de destaque, posto que condiciona o saber efetivo (o conhecimento ou a ciência) ao juízo que ela, Filosofia, emite sobre tal saber.

A sujeição do conhecimento, do saber efetivo, ao juízo que dele faz a Filosofia, pode adquirir três vieses diferentes. Num primeiro viés, a Filosofia é tida como único saber possível, submetendo-se a ela as demais ciências, seja como parte, seja como elementos preparatórios.

Sob este aspecto, a Filosofia é o único conhecimento possível – ou ele é filosófico ou não é conhecimento. Aqui a Filosofia é concebida como metafísica, concepção esta adotada, em especial, por Hegel e Husserl.

Sob um segundo ponto de vista, o condicionamento do conhecimento ao juízo que dele faz a Filosofia é de coordenação e unificação de resultados com vistas a um conhecimento genérico. Assim, a Filosofia é concebida como positivista, sendo a concepção propagada por Bacon, Wundt e Dilthey.

Por fim, uma terceira concepção da Filosofia como juízo do saber atribui-lhe a tarefa de avaliação de suas possibilidades e de seus limites em favor do homem, ou seja, identifica a Filosofia como crítica.

De acordo com esta concepção, a Filosofia é vista como a doutrina do conhecimento, o que leva muitos a indagarem se, de fato, poderia ser chamada de conhecimento propriamente dito.

E isto muito bem se verifica nos ensinamentos de Locke, considerado precursor de tal concepção filosófica, segundo a qual caberia à Filosofia “[...] examinar a capacidade da

mente humana e ver que objetos estão ao seu alcance e quais os que estão acima de sua compreensão.” 21

Kant adotou esta concepção de Filosofia como crítica do saber, parecendo partir do conceito construído por Locke, designando por crítica o processo através do qual a razão empreende o conhecimento de si.

Neste campo, são reconhecidas três disciplinas filosóficas: a lógica ou semiótica, referente à interpretação; a estética ou física, referente às coisas como elas são; e a ética ou prática que respeita ao modo de bem dirigir-se para consecução das coisas boas e úteis.

A Escola de Marburgo foi defensora do conceito de Filosofia como crítica do saber, ressalvando seus expoentes (Cohen, Cassirer e Natorp) que a Filosofia só tem real valor quando vinculada à ciência, o que, de forma alguma, compromete sua suprema importância, a teor do pensamento platônico (de nada adianta um saber se se desconhece seu uso em favor do homem).

Então influenciado pelo pensamento filosófico que dominava a Alemanha do início do século XX, Kelsen atribui um significado crítico à Filosofia como juízo do saber.

Kelsen identifica, portanto, um papel relevante para a Filosofia, sobretudo quanto às indagações pertinentes ao Direito, entendendo que caberia a esta justamente a realização de juízos de valor quanto às revelações da Ciência do Direito. Assim, a ciência jurídica limitar- se-ia a definir as possibilidades jurídicas pertinentes ao Direito Posto, e a Filosofia, partindo da análise destas possibilidades reveladas pela ciência, realizaria verdadeira axiologia, auxiliada por toda sorte de conhecimentos possíveis sobre o Direito.

Esta conclusão é de suma importância para o entendimento da teoria desenvolvida pelo jurista vienense, pois esclarece um ponto crucial na obra de Kelsen, ignorado por seus críticos, que o atacam justamente por concluírem, de forma equivocada, que sua visão do fenômeno jurídico estaria limitada a uma análise puramente formalista do Direito.

Na realidade, o que fez Kelsen foi identificar, em um primeiro momento, o que é o direito, através de uma análise puramente científica e, portanto, submetida a métodos lógicos de verificação e comprovação. E, em um outro plano de análise, de cunho filosófico, possibilitou um juízo valorativo do que foi revelado pela ciência, como sendo jurídico.

Desta forma, entendendo a Filosofia como crítica do saber, Kelsen atribui a esta o papel de emitir juízos sobre o conhecimento científico revelado pela ciência jurídica, cabendo, nestes juízos de cunho filosófico, toda sorte de influências de outros campos científicos, ou

mesmo da aplicação de um conhecimento emocional e valorativo, o que permite ao jurista um julgamento de como deve ser o Direito.

E Kelsen identifica, em sua teoria, o momento de incidência deste julgamento filosófico como sendo o de criação da norma jurídica, o que será melhor explicado no decorrer deste estudo. Mantém-se, deste modo, a pureza e neutralidade da ciência jurídica enquanto se apuram as possibilidades jurídicas dadas pelo Direito Positivo, reservando o papel de avaliar e julgar tais possibilidades à Filosofia que, por sua vez, apoiará o legislador ou o aplicador do direito no momento de criação da norma jurídica.

Por outro lado, torna-se pertinente a discussão a respeito dos métodos atribuídos à Filosofia, quais sejam, sintéticos ou analíticos.

As filosofias sintéticas criam conceitualmente seu objeto, o que fazem sem impor condições para tal processo criativo. Tal método sustenta que a validade de seus resultados depende exclusivamente de sua própria organização interna, dispensando a comprovação ou confirmação de tais resultados por procedimentos independentes dela.

As Filosofias de Hegel e Spencer são sintéticas por excelência.

“Essa concepção atribui ao procedimento filosófico a produção de seu objeto, tomando como objeto o infinito, o Absoluto ou Deus, que resolve ou anula em si todos os fatos ou todas as coisas finitas.” 22

As filosofias analíticas, por seu turno, reconhecem a existência de dados, os quais ela, filosofia, descreve ou analisa. Tais filosofias não criam seu objeto, mas buscam sua resolução nos elementos que permitem sua compreensão.

A Filosofia de Kant é analítica, cuidando o filósofo em questão de diferenciar o método analítico da filosofia do método sintético da matemática. Kant asseverava que a matemática pode construir seus conceitos por dispor de uma intuição pura, espaço-temporal. Já a Filosofia não dispõe de uma intuição pura, senão de uma intuição sensível, de modo que “[...] os objetos da F. [Filosofia] devem, pois, ser dados e por isso só podem ser analisados, e não construídos, pelo procedimento filosófico.” 23

Os precedentes kantianos parecem repousar na filosofia de Locke.

Importante destacar que as concepções analíticas, consideram a filosofia como atividade humana e, portanto, limitada em termos de alcance e validade. É característico a toda filosofia analítica a consideração de um ‘problema’, elemento que, se não é inexistente nas filosofias sintéticas, é, ao menos, secundário.

22

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 454. 23 Ibid., p. 455. (grifo nosso).

Assim, para esta concepção, parte-se inicialmente de um problema concreto, revelado de modo empírico, para depois, sobre ele, se realizar todo o esforço filosófico, emitindo juízo valorativo sobre aquilo que é conhecido, ou seja, apreendido pela razão humana.

É analítica a filosofia de Wittgenstein, que a concretizou na análise lingüística do conhecimento, afirmando dever a filosofia atentar apenas ao que pudesse ser vertido em uma linguagem repleta de sentido. Assim, todo enunciado que não possuísse um sentido lógico em relação ao mundo empírico deveria ser desprestigiado.

É por tal motivo que a filosofia de Wittgenstein repele os enunciados metafísicos, que, por não poderem ser verificados mediante as regras da experiência, não se traduzem em enunciados repletos de sentido, pois escapam ao que pode ser conhecido pelo homem de forma absoluta.

Esta concepção filosófica analítica de Wittgenstein influenciou sobremaneira o chamado Círculo de Viena, que fez propagar as idéias filosóficas conhecidas como positivismo lógico no início do século XX, o qual, baseado nas proposições wittgensteinianas, propagava uma filosofia pautada na análise dos enunciados propostos pela experiência empírica.

A Filosofia Kelseniana, como já visto, foi fortemente influenciada pelas idéias de Wittgenstein, principalmente pelo Círculo de Viena, podendo se afirmar que o jurista vienense segue uma tendência filosófica analítica.

Todavia, a postura filosófica de Kelsen não chega aos extremos propostos por Wittgenstein, que afirmou, como ressaltado por Fábio Ulhoa Coelho24, que “[...] sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar.”

Kelsen não nega exatamente a existência de um conhecimento sentimental, emotivo, pelo qual se atribui juízo de valor a determinado objeto, através de uma razão intuitiva, apurada através dos sentidos. O que Kelsen afirma é que tais juízos não podem ser tidos como absolutos, posto que impregnado de subjetivismo, variando conceitualmente, dado o seu relativismo.

Para o jurista vienense, o que não é admissível é a influência destes juízos valorativos, advindos de um conhecimento emocional, dentro de uma análise científica do Direito, que requer uma metodologia tendente a resultados absolutos e imutáveis, o que certamente não seria possível com a influência de conceitos relativos alcançados pelos juízos axiológicos, apurados através de um conhecimento sensitivo.

No documento PERLA CAROLINA LEAL SILVA MÜLLER (páginas 35-41)