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As correlações entre a Teoria Pura do Direito e a Teoria do Estado de Kelsen

No documento PERLA CAROLINA LEAL SILVA MÜLLER (páginas 89-93)

CAPÍTULO 4 A JUSTIFICATIVA DO PENSAMENTO DE KELSEN

4.2 As correlações entre a Teoria Pura do Direito e a Teoria do Estado de Kelsen

A Teoria Pura do Direito propõe o desvendamento do que seja puramente jurídico, sem qualquer influência ontológica da filosofia, da política ou de qualquer outra ciência. Desta forma, permite que se estabeleça, através de uma relação de pertinência da norma jurídica ao sistema que está inserida, o fundamento de validade do Direito, dentro de si mesmo, sem qualquer apoio em juízos valorativos quanto ao conteúdo normativo.

Com tal proposição, Kelsen pretendeu retirar da ciência do direito qualquer conhecimento em relação às razões que dariam um fundamento de validade de cunho político- filosófico ao Direito.

Assim, ainda que formal, a ciência jurídica idealizada por Kelsen é capaz de emitir proposições descritivas válidas sobre o Direito, apontando as possíveis molduras normativas que mantêm uma correlação lógica de pertinência com o sistema normativo, apontando, assim, as regras de direito.

Porém, é neste ponto que se tem a necessidade de recorrer ao conjunto do pensamento de Kelsen, para entender que a criação do direito não pára nas revelações feitas pela ciência do direito.

O processo de formação do direito, de sua criação, vai além do formalismo da ciência pura, para adentrar outras formas de conhecimento, inclusive as emotivas, uma vez que, para Kelsen3, ao “[...] describir el Derecho mediante las reglas de derecho, la ciencia jurídica no ejerce la función correspondiente a la autoridade legal.” Segundo Kelsen4:

[...] la autoridad legal competente, no la Ciencia del Derecho, es quien decide si en un caso determinando una conducta dada es legal o ilegal. Los juicios acerca de la Justicia no pueden ser comprobados objetivamente. No es posible incluirlos dentro de la Ciencia del Derecho. Los juicios acerca de la Justicia son juicios de valor morales ou políticos [...].

Portanto, o processo de criação do Direito não está imune à valoração, à axiologia. Esta apenas não fundamenta nem está contida na Ciência do Direito, que cuida apenas da descrição de seu objeto.

O próprio pensador vienense firmou que

Es imposible decidir de un modo racional y científico entre dos juicios de valor que se oponen. En último término, deciden nustro sentimiento, nuestra volundad, no nuestra razón; el elemento emocional de nuestra conciencia, no el racional, es el que decide en este conficto. 5

É justamente a partir das proposições descritivas que a ciência puramente jurídica revela que o legislador ou aplicador do direito, no momento de criação da norma jurídica, irá exercer um ato de vontade, de cunho político-ideológico, optando pela regra jurídica que se mostre a mais adequada ao seu pensamento, o qual estará, certamente, impregnado de toda sorte de influências filosóficas dos diversos campos do conhecimento.

A teoria kelseniana, portanto, debita ao homem a responsabilidade de afirmar o que é justo ou injusto, tarefa diante da qual este se acovarda, delegando-a ora a Deus, ora ao Estado, ora ao próprio Direito, para, depois, sentir-se confortável em atribuir-lhes carência ética, quando ético deveria ser o homem. Kelsen chama o homem à consciência do dever:

3 KELSEN, Hans. ¿Qué es justicia? Barcelona: Ariel, 1992. p.269. 4

Ibid., p. 150-151. 5 Ibid., p. 39-40.

Deste modo el relativismo impone al individuo la árdua tarea de decidir por sí solo qué es bueno y qué es malo. Evidentemente, esto supone una responsabilidad muy seria, la mayor que um hombre puede asumir. Cuando los hombres se sienten demasado débiles para asumirla, la ponen en manos de una autoridad superior: en manos del gobierno o, en última instancia, en manos de Dios. Así evitan el tener que elegir. Resulta más cômodo obedecer una orden de un superior que ser moralmente responsable de uno mismo. Una de las razones más poderosas para oponeerse apasionadamente al relativismo es el temor a la responsabilidad personal. Se rechaz el relativismo y, todavia peor, se interpreta incorrectamente, no porque sea poco exigente moralmente, sino porque lo es demasiado. 6

Kelsen, em sua filosofia, reconhece que a natureza humana inclui impulsos egoístas, violentos e anti-sociais, que devem ser socialmente controlados. Por tal motivo, o criador do direito, enquanto homem que é, pode ver-se tentado – como muitas vezes ocorre, a exaltar seus sentimentos mais recônditos e socialmente indesejáveis. Neste cenário de considerações, à Ciência do Direito atribui-se uma função limitadora da ação do homem, enquanto julgador ou legislador, sem que esta limitação, contudo, signifique anulação de sua vontade.

Diria-nos Kelsen7: “Frente a la violencia y el egoísmo originario, la normatividad; frente al editor de las normas, la democracia.”

Portanto, é neste ponto, no momento de criação do direito, que Kelsen liga à ciência do direito sua concepção política de Estado, a fim apontar que a criação da norma jurídica é um ato político, que se submeterá ao império da democracia.

Observe que a Ciência é independente da Política, mas o inverso não deve dar-se:

Aunque la Ciencia deba separarse de la Política, la Política no debe separarse de la Ciencia. Evidentemente, um gobernante, para lograr sus fines, pude usar como médios los resultados que le ofrece la Ciencia [...] Pero, como ya se há dicho, la Ciencia no puede determinar el fin último de la Política. 8

A democracia, para Kelsen, não só é o meio mais hábil para coexistência harmônica dos valores e, portanto, termômetro da aceitação das normas jurídicas postas, como também é o único ambiente propício ao florescimento de uma verdadeira ciência:

Dado que la democracia, por su naturaleza intrínseca, implica libertad, y la libertad implica tolerância, no existe forma de gobierno alguna que sea más favorable a la Ciencia que ella. La Ciencia solo pude properar en un clima de libertad. Y este clima de libertad no depende únicamente de una libertad

6 KELSEN, Hans. ¿Qué es justicia? Barcelona: Ariel, 1992. p. 59-60. 7

CORREAS, Óscar. El otro Kelsen. In: ______. (Comp.). El otro Kelsen. 2. ed. México: Coyoacán, 2003. p. 37. 8 KELSEN, 1992, op. cit., p. 262-263.

externa, es decir, de su independência respecto a cualquier tipo de influencia del libre juego de argumentos y contraargumetnos. Ninguna doctrina puede ser abolida en nombre de la Ciencia, ya que el alma de la Ciencia es la tolerancia. 9

O Kelsen do senso comum dos juristas contemporâneos, que é frio e apologista do dogmatismo técnico-formal e do desprezo das mazelas da realidade social, não parece ser o mesmo Kelsen que, ao falar de quem seja o homem que reverencia a democracia, mais que filosofa, poetiza, afirmando ser:

Aquella persona en quien la experiencia de sí mismo no es tan fundamental ni tan rotundamente diferente de las demás experiencias, las experiencias de los demás [...] Es el tipo de personalidad... el tipo de hombre que, al mirar hacia el outro, oye una voz dentro de sí que le dice: ése ere tú... experimenta al outro... como un igual y un amigo, y no se siente único, sin comparación y sin igual. 10

Os críticos da ‘pretensiosa’ cientificidade do Direito Positivo em Kelsen, defensores da tomada de atitudes, pelo e fora do Direito, que resultem na maior eficácia e efetividade da aplicação da justiça identificada com os interesses das maiorias11, não parecem ter lido um Kelsen igualmente proclamador da Democracia como cenário da discussão e participação sociais:

El princípio vital de toda democracia, por lo tanto, no es, com se ha supuesto a veces, la libertad económica del liberalismo, porque puede dar- se tanto en una democracia socialista como en una liberal, sino más bien la libertad religiosa y de conciencia, el principio de tolerância y, más especialmente, la libertad de la cinecia, conjugada con la creencia en su posible objetividad. 12

O senso comum dos juristas contemporâneos furta da Teoria Pura do Direito e da Teoria do Estado kelsenianos o viés ético-político que lhes é próprio e sustentam que é justamente este viés que a cultura jurídica atual parece carecer13, deixando “[...] oculto el Kelsen que hace precisamente eso que le reclaman: hablar del derecho como espacio político, donde se enfrentan clases sociales, partidos y concepciones del mundo.” 14

9

KELSEN, Hans. ¿Qué es justicia? Barcelona: Ariel, 1992. p. 62. 10

CORREAS, Óscar. El otro Kelsen. In: ______. (Comp.). El otro Kelsen. 2. ed. México: Coyoacán, 2003. primera pte. cap. 2. p. 52.

11 WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Acadêmica, 1995. p. 170.

12 CORREAS, op. cit., p. 53 13

WOLKMER, op. cit. 14 CORREAS, op. cit., p. 14.

No documento PERLA CAROLINA LEAL SILVA MÜLLER (páginas 89-93)