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A norma hipotética fundamental

No documento PERLA CAROLINA LEAL SILVA MÜLLER (páginas 60-63)

CAPÍTULO 2 PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA TEORIA PURA DO DIREITO

2.3 A norma hipotética fundamental

Para atribuir certa coerência ao sistema normativo, Kelsen estabelece como característica determinante das normas jurídicas a sua validade. Ou seja, para que uma norma jurídica seja considerada como integrante de um sistema jurídico, como sendo Direito, deve ter reconhecida sua validade.

Desta forma, na teoria pura desenvolvida pelo mestre de Viena, o Direito passa a ser considerado como um conjunto de normas válidas em dado momento e em certo espaço, cabendo ao jurista esta investigação quanto à validade da norma.

Por sua vez, o conceito de validade para Kelsen é apenas formal, levando-se em consideração apenas o fato de ser esta norma jurídica enunciada por uma autoridade cuja competência esteja previamente definida por outra norma jurídica. Não se analisa o aspecto valorativo do conteúdo da norma ou sua eficácia no mundo social, bastando que ela tenha sido editada na forma definida por ordenamento jurídico, sendo, pois, vigente.

Nas palavras do próprio mestre de Viena, temos que:

La validez de una norma positiva no es outra cosa que el modo particular de su existencia. Una norma positiva existe cuando es válida, pero se trata de una existencia especial, diferente de la de los hechos naturales, aunque la norma se encuentre en estrecha relación con tales hechos. Para que una norma positiva exista es preciso que haya sido creada por un acto, a saber, por un hecho natural que transcurra en el espacio y en el tiempo. Por outra parte, una norma regula la conducta de los indivíduos; se aplica, pues, a hechos que también transcurren en el espacio y en el tiempo. 18

Kelsen utiliza este recurso empregando uma metodológica análoga à lógica, posto entender que somente é possível verificar se certa proposição normativa é válida ou não, já que

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KELSEN, Hans. Teoria pura del derecho: introducción a la ciencia del derecho. 11. ed. Buenos Aires: Eudeba, 1973. p. 35.

não é possível a utilização da lógica tradicional, para se indagar se certo enunciado prescritivo é verdadeiro ou falso. Eis que, como já explicado, as normas jurídicas não se submetem ao princípio da causalidade, mas tão somente ao princípio da imputação, que não viabiliza uma avaliação de pertinência entre o ato/fato e sua conseqüência, já que no sistema normativo a conseqüência é só esperada.

Desta forma, para concretizar seu empenho epistemológico, o jurista austríaco estabelece um método de análise baseado em uma coerência formal do sistema jurídico, através do qual se busca identificar a validade de uma norma jurídica de acordo com a correlação de pertinência que esta revele em relação ao ordenamento jurídico em que está inserida.

Esta correlação de pertinência, por sua vez, é estabelecida não por uma razão puramente lógica, mas por uma razão de hierarquia.

Sob tal enfoque, é possível perquirir se uma norma é válida quando esta encontra seu pressuposto de validade em uma norma que a antecede, e esta, por sua vez, deve ter sua validade determinada por outra norma imediatamente superior, em uma constante busca de validade e sentido normativo, até se chegar ao pressuposto de validade máximo que é a Constituição.

Kelsen cria, assim, o chamado sistema piramidal de normas, no qual a hierarquia normativa é ditada do ápice da pirâmide onde se encontra a Constituição, com suas normas de aspecto geral e abstrato, para as normas inferiores, que por sua vez dão suporte de validade para as que lhe sucedem, até chegar à base da pirâmide, onde se encontram as normas mais específicas e concretas.

Todavia, ao criar este sistema escalonado de normas, onde uma norma busca sua validade na que lhe é superior, até chegar ao pressuposto máximo de validade do sistema jurídico, que é a Constituição, logicamente nos deparamos com o seguinte questionamento: sendo a Constituição pertencente ao conjunto de normas postas que compõem o sistema jurídico, no último grau hierárquico deste sistema escalonado de normas, qual seria, então, o pressuposto de validade da Constituição?

E Kelsen responde a este questionamento com a idealização de uma norma suposta, para a qual dá o nome de norma hipotética fundamental (Grundnorm).

Na definição do jurista austríaco,

La norma fundamental es así la hipótesis necesaria de todo estúdio positivista del derecho. Al no haber sido creada según un procedimiento jurídico, no es una norma del derecho positivo; dicha norma no es “puesta” sino “supuesta”. Es la hipótesis que permite a la ciencia jurídica considerar al derecho como un sistema de normas válidas. Todas las proposiciones por las cuales esta ciencia describe su objeto están fundadas sobre el supuesto de que la norma

fundamental es una norma válida. Pero esto no significa que la ciencia del derecho afirme la validez de la norma fundamental: se limita a declarar que si la norma fundamental es supuesta válida, el establecimiento de la primera Constitución y los actos cumplidos conforme a ella tienen la significación de normas válidas. 19

Assim, para manter uma coerência às premissas fixadas pelo método científico proposto pela Teoria Pura do Direito, que pressupõe a validade de uma norma jurídica em outra norma jurídica que lhe é superior, Kelsen necessitava manter o fundamento último de validade do ordenamento jurídico dentro de um campo de análise focado estritamente na norma.

É aí que surge a chamada norma fundamental, que para Kelsen não é uma norma posta, mas apenas suposta, pela qual se espera, como pressuposto de lógica-transcendental, que todos os indivíduos pertencentes a determinado Estado respeitem suas normas como válidas, conformando-se aos ditames de referido Estado.

Para construir sua idéia sobre a Grundnorm, Kelsen ampara-se nos pensamentos divulgados pelo neo-kantianismo de sua época, adotando, como pressuposto transcendental, a identidade entre o Direito e o Estado, sendo este, ao mesmo tempo, criador e legitimador do Direito Positivo.

Kelsen parte da premissa de que uma ordem jurídica é constituída por normas criadas pelo Estado, e, sendo assim, somente se poderia imaginar um ordenamento jurídico válido caso aceita a idéia de que o Estado possui legitimidade para criar o Direito.

Este pressuposto de lógica-transcendental, a norma hipotética fundamental, é o que dá validade a todo ordenamento jurídico, consistindo tão somente na idéia abstrata de que existe uma convenção de conformidade dos indivíduos às normas criadas pelo Estado.

Neste ponto, não faltaram críticas à obra de Kelsen, acusando-o de ter contrariado a própria premissa central de sua ciência, pautada exclusivamente sobre a norma posta como única possibilidade de conhecimento empírico, quando admite o emprego de uma pressuposição para fundamentar toda a validade do ordenamento, caracterizada por uma abstração intitulada pelo jurista como norma hipotética.

Kelsen, na realidade, utiliza-se desta abstração, de cunho lógico-transcendental para delimitar o objeto de estudo da ciência do direito às normas jurídica, realizando, assim, um verdadeiro corte metodológico, comum a todas as ciências que se pretendem específicas.

Tárek Moysés Moussallem dá-nos uma grande contribuição para o bom entendimento desta proposta de corte metodológico, ao explicar que,

19

KELSEN, Hans. Teoria pura del derecho: introducción a la ciencia del derecho. 11. ed. Buenos Aires: Eudeba, 1973. p. 139.

Todo saber científico pressupõe um corte metodológico para que se torne possível o estudo do objeto, caso contrário, estudar-se-ia tudo em um regresso

ad infinitum, o que seria incompatível com a pretensão científica.

Veja-se: a Medicina (ciência) estuda o corpo humano posto (corte metodológico); não estuda como surgiu o homem, o que seria campo investigatório de outra ciência (Antropologia). Outro exemplo: a história do Brasil é iniciada com o descobrimento em 1500. Antes dessa data, nada importa à ciência histórica brasileira, exceto que se faça unilateralmente o corte metodológico em 1200.

Corte metodológico é o ato lingüístico delineador da linguagem do objeto de

estudo. Vale ressaltar que a aludida incisão ocorre mediante o processo de abstração, operação lingüística consistente em prescindir partes de um todo.

Ademais, essa separação é medida arbitrária do sujeito cognoscente. Não se encontra sujeita a contestações. É pressuposto espistemológico.

O corte metodológico compõe o que FERNANDO GEWANDSZNAJDER, baseado em IMRE LAKATOS, denomina “núcleo rígido”: “O núcleo rígido é formado por um conjunto de leis consideradas irrefutáveis por uma decisão metodológica, uma convenção compartilhada por todos os cientistas que trabalham no programa”.

Nessa esteira, todo sistema científico trabalha com pontos-limites ou hipóteses-

limites, nos quais se circunscreve a investigação. Parte de um ponto-início

percorrendo até o ponto-fim, localizado na outra extremidade da demarcação. O cientista preocupa-se com o que se circunscreve do ponto-início até o ponto-fim. Não com o depois deste, nem com o antes daquele. 20

É a partir deste corte metodológico – consistente na aceitação a priori de que o Estado está legitimado a criar às normas jurídicas, e de que todos devem respeito às normas ditadas por este Estado – que se pode visualizar um ordenamento jurídico válido e, por conseguinte, analisá- lo em suas relações sistêmicas, identificando seus princípios e pressupostos próprios, enfim, estudando-o como ciência estritamente jurídica.

No documento PERLA CAROLINA LEAL SILVA MÜLLER (páginas 60-63)