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Noções preliminares sobre Ética e Moral

No documento PERLA CAROLINA LEAL SILVA MÜLLER (páginas 70-75)

CAPÍTULO 3 O PAPEL DA ÉTICA E DA MORAL NO PENSAMENTO DE

3.1 Noções preliminares sobre Ética e Moral

Um dos maiores desafios da Filosofia é a análise da conduta humana. Desde os tempos mais remotos da antiga Grécia, o homem se questiona sobre o valor da ação humana, indagando quais seriam aquelas condutas consideradas corretas ou morais, e, principalmente, quais as razões que levam o homem a se conduzir segundo a moralidade e, enfim, como o homem deve agir.

Tais questionamentos filosóficos estão abrangidos pelo problema ético, ou seja, este é o objeto que a Ética pretende conhecer enquanto campo de estudo da Filosofia.

Sob uma perspectiva crítica da filosofia enquanto juízo do saber, tem-se a Ética como uma das disciplinas filosóficas, ao lado da lógica e da estética.

Como disciplina filosófica, a Ética é essencialmente especulativa e jamais será normativa, característica esta exclusiva do seu objeto de estudo, qual seja, a Moral.

A Ética, como doutrina filosófica, ocupa-se da conduta humana, e como tal, pretende o estabelecimento do comportamento ético, considerado, portanto, essencialmente bom ou dentro da perspectiva da moralidade.

Possui, assim, um conteúdo valorativo, no sentido de ‘atribuir’, ao seu objeto de análise – o comportamento humano – a qualificação de bom ou mau, podendo se dizer que é, assim, a doutrina do valor do ‘bem’.

A Ética também possui um aspecto científico, quando se foca no conhecimento das normas morais, procurando identificá-las e conceituá-las através de métodos epistemológicos próprios.

Por sua vez, a Moral é conjunto de normas de conduta que se apresentam como corretas, boas e que retratam a essência do bem. É, pois, a princípio, de índole puramente prática, passível de revelação pela experiência, caracterizando um conjunto de regras aceitas pelo costume.

A moral, portanto, apresenta-se no campo normativo, como um conjunto de regras ou leis que ditam como deve se guiar a conduta humana, enquanto a Ética se ocupa justamente de atribuir valor às condutas humanas, verificando se são boas ou más, bem

como se compromete a perquirir as razões que fazem o homem conduzir-se por tais regras morais.

Dentro da proposta de analisar as razões que fazem com que o homem se conduza de acordo ou não com regras morais, a Ética assumiu, durante a evolução do pensamento humano, vários conceitos filosóficos, tendo sido alvo de explanação de vários pensadores, desde a Antiguidade.

Platão já buscava conceituar a Ética considerando-a como subordinada à metafísica. Para este filósofo, a noção de Bem buscado pela Ética encontrava-se no mundo das idéias, atingível pela elevação da alma, através da razão do homem. Era, pois, no mundo das idéias onde se encontrava a verdade permanente e imutável sobre o Bem.

A Ética, segundo Platão, é tida como a busca pela prática das Virtudes da alma, determinadas pela natureza da própria alma do homem, sendo estas virtudes identificadas e atingidas pela razão, através da contemplação do mundo das idéias. É, portanto, através da contemplação do mundo das idéias que o homem consegue atingir a verdadeira virtude, a prática do Bem, como forma de vida que leva à inteligência e ao prazer buscados pelo homem.

Platão dividia a alma em três partes, a saber, a razão (cabeça), a vontade (peito) e o apetite (baixo-ventre), partes estas que deveriam ser dirigidas para a busca de suas respectivas virtudes: a inteligência, a coragem e a temperança.

Atuando como um todo harmônico pelo alcance das três virtudes, o homem se eleva e atinge a prática da quarta e suprema virtude: a Justiça.

Aristóteles, por sua vez, tentou organizar a Ética como uma disciplina filosófica, procurando identificar os problemas morais que atingem o homem e que devem ser superados para se alcançar a felicidade e o sentimento de realização pessoal.

Para tal empenho, Aristóteles cria a idéia da medida justa da virtude, pela qual procura identificar a virtude sempre em comparação com seus extremos contrários. Assim, o homem virtuoso seria aquele que consegue, através de uma sabedoria prática, escolher o melhor para si e para os outros, pautando-se pelo equilíbrio e harmonia entre os excessos e as definiências das condutas.

Desta forma, Aristóteles acredita que a virtude estaria na escolha do homem em relação ao seu modo de agir, posto que lhe seria possível identificar a prática do bem, através da razão e de seu dicernimento, como sendo aquela que se apresenta como um meio termo entre dois vícios, um caracterizado por falta e outro por excesso de uma qualidade. Por exemplo, a coragem poderia ser identificada como uma virtude que se encontra entre a temeridade (falta) e a audácia (excesso).

Mais tarde, Santo Agostinho e São Tomas de Aquino irão reviver os conceitos de Ética em Platão e Aristóteles, respectivamente.

Santo Agostinho traz a idéia de elevação da alma para a compreensão da virtude, que, porém, diferentemente de Platão, seria revelada por Deus. Assim, a ascensão ao mundo das idéias de Platão é substituída pela necessidade de ascensão até o Criador, que revelaria as virtudes ao homem, as quais lhe permitiriam a conquista da felicidade.

São Tomás de Aquino, por sua vez, estabelece que a contemplação das ações dos homens permite verificar as virtudes que levariam ao caminho de Deus, sendo este o último fim do homem.

Na Filosofia moderna também encontramos vários pensadores que utilizaram-se dos conceitos de Platão e Aristóteles para definir suas idéias sobre Ética. Porém sem escapar às definições de virtude e prática do Bem para alcançar os fins esperados pelo homem, como a felicidade, o prazer, o sentimento de realização pessoal, ou mesmo a harmonia e o equilíbrio da vida em sociedade. Até aqui, os filósofos concordavam em um aspecto: que a prática do bem e da moralidade era conduzida por interesse do homem, ou seja, para se atingir um determinado fim.

Não obstante, surgiram novas idéias sobre Ética, que lhe deram uma outra concepção, deixando de entendê-la simplesmente como uma busca a determinada finalidade, através da prática do bem, para atribuir-lhe, ainda, a tarefa de perquerir quais forças que levam o homem a agir moralmente.

Portanto, são duas as principais concepções desta disciplina filosófica, sintetizadas nas adjetivações que lhes concorrem, quais sejam, ‘ética do fim’ e ‘ética do móvel’.

A primeira cinge-se na análise do fim visado pela conduta humana, enquanto que a segunda aprecia os motivos do comportamento do homem ou das forças que o determinam, sendo certo que, em um ou outro caso, a idéia de ‘bem’ é sempre presente.

Deste modo, ora o ‘bem’ é identificado com a idéia de ‘felicidade’, como feito por Platão e Aristóteles na Antiguidade e por Hegel na Era Moderna; ora é coincidente com a noção de ‘prazer’ ou de ‘desejo’, a teor das concepções de Hobbes e Locke no advento do Renascimento.

Para esta corrente filosófica, é o fim almejado pela conduta que guia a ação humana. O homem dirige seus atos em busca de um bem maior. Portanto, é este bem maior que determina a conduta como moral, seja ele Deus ou a felicidade do homem.

Por sua vez, a segunda concepção de ética traz como marca característica a mudança de enfoque com relação à conduta humana, analisando-a sob o ponto de vista dos motivos ou causas que conduzem a ação do homem para o bem.

Esta corrente filosófica conhecida como ética do móvel, analisa a questão da ação humana sob o enfoque subjetivo, ponderando sobre as forças que conduzem o homem, não interessando o fim como direção da ação, mas como consequência de uma conduta moral.

Nesta concepção de ética, a razão aparece como autoridade final para a moralidade, sendo a vontade humana o objeto de estudo filosófico. Questiona-se aqui o porquê de se conduzir moralmente e não para que devo me conduzir moralmente.

O homem é, pois, colocado no centro de análise filosófica, devendo as normas morais serem fruto da razão humana e não conduzidas pelo fim que se pretende, seja ele qual for (a felicidade, o bem, o prazer ou mesmo a busca de Deus).

Immanuel Kant é quem irá propor um grande avanço no estudo filosófico da ética, ao estilo da ética do móvel, quando publica sua segunda obra de grande repercussão, qual seja, a “Crítica da Razão Prática”.

Após empreender seus esforços para responder a primeira grande pergunta da Filosofia (O que posso conhecer?) Kant empenha-se em responder uma segunda grande questão: O que devo fazer? 1

Kant acreditava que a moral não poderia ser apurada com fundamento na experiência, ou seja, na observação dos costumes ou qualquer outra forma empírica de verificação de seu conteúdo, pois não estava sujeita ao princípio da causalidade comum aos fenômenos. A moral, para o filósofo prussiano, seria estabelecida puramente pela razão, como reguladora da ação.

A ação, para ser considerada moral, deveria partir de um sentido de dever ditado pela razão, não se admitindo como conduta moral aquela ação praticada por um interesse ou por obediência a uma lei coercitiva ou costume imperativo. Antes disto, a conduta moral deve ser livre de qualquer influência externa, sendo praticada de forma que aquela ação possa ser tida como lei de conduta para todos os homens.

Kant descreve duas classes de mandamentos que dirigem a ação humana: os imperativos hipotéticos, que estão subordinados a uma condição, como um castigo ou uma recompensa capaz de guiar a conduta; e os imperativos categóricos, que comporiam a base da moralidade, sendo puramente determinados pela razão, que identifica tais imperativos como

1 Posteriormente, Kant iria escrever sua obra “Crítica do Juízo”, pela qual dirige sua especulação filosófica para a resposta da terceira grande pergunta: Qual o destino da coisa e do homem? Assim, Kant fecha sua trilogia que define o que chama de “criticismo transcendental”, pelo que ficou conhecido como o “filósofo das três críticas”. KANT, Immanuel.

aqueles que se enquadram na máxima expressa por Kant: “Aja como se a máxima de sua ação fosse para tornar-se pela sua vontade uma lei natural geral.”2

Desta forma, os imperativos categóricos idealizados por Kant são construídos pela pura razão e identificam uma conduta como moral quando enquadrada ao imperativo categórico estabelecido pela razão para que aquela determinada ação ocorra.

A noção de imperativo categórico criada por Kant para justificar a prática de uma conduta moral assume nítido cunho metafísico, além de um caráter absoluto, o que vai ser, mais tarde, combatido por Hans Kelsen, que, apesar de ser considerado neo-kantiano, rechaça a idéia da existência de imperativos categóricos absolutos capazes de conduzir a ação humana de forma a moldá-la à moralidade.

Dentre os filósofos neo-kantianos da Escola de Marburgo, Hermann Cohen é quem influenciará de forma mais decisiva o pensamento kelseniano, ao tratar das bases filosóficas da ética e da formação do Estado, aproveitando-se de conceitos kantianos encontrados, principalmente, na obra intitulada “Crítica da razão prática”.

Cohen colabora com a teoria que será formulada por Kelsen ao realizar uma identificação entre o Estado e o Direito, propondo a necessidade de se encontrar uma unidade sistemática que domine todas as normas supostas como Direito positivo vigente.

Todavia, ao avançar nos conceitos de imperativos categóricos para fundamentar, através de juízos metafísicos de lógica transcendental, alguns princípios absolutos de caráter ético-normativos, o pensamento de Cohen foi prontamente rechaçado por Kelsen, o qual, por sua noção relativista, não aceitou tais princípios éticos como absolutos e como pressupostos de validade do sistema normativo.

Aliás, não é demais relembrar que, no campo das virtudes éticas, a Justiça é ‘a’ virtude por excelência.

Segundo Kelsen, justamente por variar ao infinito, a Justiça, enquanto virtude última, não é passível de apreensão em sua totalidade pelo homem, pelo que, para ele, afirmar, como feito por Platão, que a Justiça é a felicidade, nada mais seria do que iludir o problema, posto que restaria igualmente sem resposta a pergunta acerca do que é felicidade. Porém, um valor que foge à razão humana não pode, para Kelsen, ser o fundamento de validade da ordem jurídica.

Portanto, embora se tenha buscado conceituar a Ética como proveniente da razão humana e embasada em princípios permanentes e absolutos, tal tarefa não prosperou, posto

que ora as definições criadas se pautavam em conceitos metafísicos irrascíveis ao homem, provenientes de uma divindade ou de uma razão plena não constatável pela experiência, ora partiam de um conhecimento emocional e, portanto, subjetivo sobre as condutas morais.

É justamente a falta de um conceito passível de dedução racional, que leva Kelsen a sustentar a existência de um relativismo inerente aos conceitos éticos formulados pela Filosofia, em especial o conceito de Justiça, os quais seriam imprestáveis, por tal motivo, a definir uma moral absoluta e imutável em relação ao tempo e ao espaço em que constatada.

No documento PERLA CAROLINA LEAL SILVA MÜLLER (páginas 70-75)