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1.1 CONCEITO DE DIREITO PENAL

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1.1 CONCEITO DE DIREITO PENAL

O Direito Penal é um ramo do direito público e consiste em “um conjunto de normas jurídicas que tem por objeto a determinação de infrações de natureza penal e suas sanções correspondentes – penas e medidas de segurança”1. Essa é a definição de direito penal enquanto um direito positivo ou legislado. A expressão Direito Penal também pode ser utilizada para caracterizas a atividade de interpretação e sistematização do direito positivo que busca estabelecer o alcance, os limites e os objetivos das normas penais, estabelecendo critérios para sua aplicação – ou seja, como Ciência do Direito Penal ou Dogmática Penal. Numa perspectiva que leva em conta a relação do Direito Penal com a Sociedade, “Direito Penal é o segmento do ordenamento jurídico que detém a função de selecionar os comportamentos mais graves e perniciosos à coletividade, capazes de colocar em risco valores fundamentais para a convivência social, e descrevê-los como infrações penais, cominando-lhes, em consequência, as respectivas sanções, além de estabelecer todas as regras complementares e gerais necessárias à sua correta e justa aplicação”2.

1.2 CARACTERES DO DIREITO PENAL

São três as principais características do direito penal: valorativo, finalista e sancionador.3 a) Valorativo: porque tutela os valores mais elevados da sociedade e os dispõe em uma escala hierárquica, valorando os fatos de acordo com a sua gravidade e impondo uma sanção proporcional à gravidade do fato.

b) Finalista: porque tem a finalidade de prevenir lesões aos bens e interesses jurídicos merecedores da tutela mais gravosa disponível ao Estado, que utiliza como meio a ameaça legal de aplicação de sanções de maior poder intimidatório – a pena.

c) Sancionador: por meio da sanção penal reforça a tutela jurídica dos bens já regidos pela legislação extrapenal, de forma que não cria os bens jurídicos, mas apenas acrescenta sua sanção aos mais importantes. Excepcionalmente, entretanto, pode ter caráter constitutivo, protegendo bens jurídicos não tutelados pelas leis extrapenais.

1 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 32. 2 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral (arts. 1º a 120). v. 1. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 19. 3 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 33-4; MIRA-BETE, Julio Fabbrini; MIRAMIRA-BETE, Renato N. Fabbrini. Manual de direito penal: parte geral: arts. 1º a 120 do CP. 26 ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 4-5.

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1.3 FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

Grande parte da doutrina entende que a principal e mais legítima função do Direito Penal é ser instrumento de proteção de bens juridicamente relevantes. São citadas pela doutrina diversas funções do Direito Penal, tais como:

a) proteção de bens jurídicos: não se admite a criação de norma incriminadora que não vise à proteção de um bem jurídico. É a principal função.

b) controle social: a ameaça de penalização de condutas danosas, em teoria, contribui para a paz pública. No entanto, ante a incerteza da efetiva aplicação da norma e da ausência de políticas públicas que visem à redução da criminalidade, não se consegue promover um efetivo controle social.

c) função ético-social: parte minoritária da doutrina entende que o Direito Penal exerce função ética, fornecendo uma base de valores à sociedade. Trata-se, entretanto, da reafirmação dos éticos da sociedade e não da imposição de uma ética não aceita pela coletividade.

d) função de garantia: o Direito Penal também tem como função limitar o poder punitivo estatal, de modo a garantir ao cidadão que não será alvo de arbitrariedades por parte do poder público.

e) função simbólica: é o efeito psicológico que a proibição gera na sociedade. A criminalização de uma conduta vem carregada de um simbolismo que visa produzir um efeito psicossocial nos cidadãos de que o Estado está agindo efetivamente para reprimir determinados comportamentos.

f) função promocional: uma corrente minoritária da doutrina vê no Direito Penal uma função de transformação social, promovendo certos valores sociais. Assim, a criminalização não depende dos valores da sociedade, pois a criação de delitos serve justamente para transformar tais valores.

g) prevenção de vingança privada: o Direito Penal, ao conferir ao Estado o monopólio da pretensão punitiva, exerce o papel de evitar que vítimas façam justiça com as próprias mãos.

h) função motivadora: por meio da ameaça de uma sanção, o Direito Penal motiva os indivíduos a não realizarem determinadas condutas.

1.4 DIREITO PENAL COMUM E ESPECIAL

A divisão entre Direito Penal Comum, que se aplica a todas as pessoas, e Direito Penal Especial, dirigido a uma categoria específica de indivíduos, com certas características específicas. O melhor critério para a distinção utiliza como critério o órgão jurisdicional encarregado pela aplicação. Assim, são Direito Penal Comum: o Código Penal e as leis penais extravagantes, tais como a Lei de Contravenções, Lei de Tóxicos, Lei de Falências etc., que são aplicadas pela Justiça Comum. São Direito Penal Especial: Direito Penal Militar, aplicado pela Justiça Militar, e a lei do impeachment, aplicada pelo Congresso Nacional (alguns autores também consideram o Direito Penal Eleitoral).

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Não se deve confundir Direito Penal Especial com legislação penal especial. Esta é toda legislação penal não prevista no Código Penal, que é a legislação penal comum.

1.5 A CIÊNCIA CONJUNTA DO DIREITO PENAL: DOGMÁTICA

PENAL, POLÍTICA CRIMINAL E CRIMINOLOGIA

Franz von Liszt, penalista alemão, cunhou a expressão “Ciência Conjunta do Direito Penal”, como a integração entre Dogmática Penal, Criminologia e Política Criminal. Estas três, entretanto, apesar de serem complementares, são disciplinas autônomas, com características e objetos de estudo próprios.

a) Criminologia: é uma ciência empírica, descritiva e interdisciplinar que tem como objetos de estudo o crime e suas causas, o criminoso, a vítima e o controle social de comportamentos criminosos. Tem como função, entre outras, apontar os problemas sócias decorrentes da aplicação do Direito Penal, fornecendo dados para a formulação de políticas criminais.

a.1.) Escola Positiva Italiana: a criminologia surge como criminologia positivista (com enorme influência das ciências naturais, como a biologia) e buscava explicar as causas naturais do crime (etiologia criminal), entendendo o crime como uma doença e o criminoso como um doente que poderia ser tratado. Tem como principais expoentes Cesare Lombroso, que desenvolveu a teoria do criminoso nato, indivíduo que seria biologicamente predisposto à prática de crimes; Enrico Ferri, que fundamentava a responsabilidade penal no determinismo social, afastando a tese do livre arbítrio; e Rafaelle Garofalo, que idealizou a teoria psicologicista segundo a qual os criminosos irrecuperáveis deveriam ser afastados do convívio social pela deportação ou pela morte.

a.2.) Criminologia Crítica: a criminologia desenvolveu-se e atualmente as correntes mais populares entendem o crime como um fenômeno social que tem suas causas não em fatores biológicos, mas em problemas e conflitos sociais, de forma que critica a estrutura social, o Direito Penal e o controle institucional de crimes, como a atuação das polícias, por exemplo (esta corrente tem diversas divisões).

a.3.) Criminologia da Reação Social: é uma corrente de origem norte-americana, que entende a sociedade como uma rede de interações sociais que origina símbolos (chamada por isso de interacionismo simbólico). O crime é um desses símbolos criados pela interação social, de forma que o crime não tem existência ontológica (ou natural) e, portanto, o criminoso é alguém que foi etiquetado pela sociedade (teoria do etiquetamento ou labelling approach). Tem como principal expoente Howard Becker.

b) Política Criminal: é a ciência que estuda e sistematiza estratégias para a prevenção e repressão estatal eficiente da criminalidade, de forma a maximizar a segurança pública sem violação de direitos fundamentais dos cidadãos (inclusive o criminoso). As políticas criminais são papel da política e sua implementação, portanto, depende da atuação dos legisladores. Entretanto a Política Criminal enquanto ciência não se trata das políticas concretas existentes em um país, mas do estudo de estratégias para fazer boas políticas

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criminais. Ademais, a criminalização de condutas e aumento das penas não são os únicos meios recomendados pela Política Criminal para a diminuição da criminalidade, sendo preferíveis políticas preventivas e sociais.

c) Dogmática Penal: como já referido, é atividade de interpretação e sistematização do direito positivo que busca estabelecer o alcance, os limites e os objetivos das normas penais, estabelecendo critérios para sua aplicação. Está mais vinculada ao direito positivo do que a Criminologia e a Política Criminal.

2.1 PRINCÍPIO DA EXCLUSIVA PROTEÇÃO DE BENS JURÍDICOS

O Direito Penal tem como principal objetivo a proteção de bens jurídicos, isto é, de interesses ou valores jurídicos dignos de proteção penal. Este princípio determina que uma norma penal incriminadora apenas pode ser criada para proteger um valor ou interesse digno de proteção pelo direito penal, excluindo a possibilidade de criminalização de meras imoralidades, ideologias, crenças pessoais ou ainda por razões religiosas. Atualmente busca-se relacionar o bem jurídico digno de proteção penal com a Constituição, de forma que os valores ou interesses passíveis de tutela pelo Direito Penal devem estar implícita ou explicitamente ancorados no texto constitucional. O princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, portanto, define os possíveis objetos de tutela da norma penal, com o escopo de oferecer limites à atividade legislativa, de forma que não seria possível a criminalização de condutas que não causam lesão ou perigo de lesão a qualquer valor ou interesse jurídico socialmente relevante.

2.2 PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

A legalidade é um princípio consagrado em Direito Penal, manifestando-se no brocardo latino nullum crimen, nulla poena sine lege. O princípio objetiva dar segurança jurídica ao cidadão, para que ele saiba as condutas que configuram crimes e, assim, possa evitá-las. Trata-se de um limite à possibilidade de punição de comportamentos pelo Judiciário, de forma que só podem ser punidos fatos criminalizados por meio de lei. Com isso exclui, por exemplo, a possibilidade de punição de fatos que não estão previstos em lei e a criminalização de comportamentos por meio de outras espécies de atos normativos (como decretos e regulamentos).

O princípio da legalidade penal está previsto no art. 5º, inc. XXXIX, da Constituição Federal com a seguinte redação “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Redação semelhante está prevista no art. 1º do Código Penal. Existe também um princípio da legalidade geral, que aplica-se em geral a todos os ramos do direito, consagrado pelo art. 5º, inc. II, da Constituição Federal, segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Como se percebe, o princípio da legalidade do direito penal é mais restrito, determinando que tanto o comportamento proibido quanto a pena devem

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A partir do conteúdo do princípio da legalidade resta vetada a possibilidade (a) de

retroatividade da lei penal para criminalizar ou agravar a pena de fato anterior, (b) de o costume ou

atos normativos distintos de lei serem utilizados para criminalizar ou agravar penas, (c) de a

analogia ser utilizada para tornar puníveis condutas que não estão criminalizadas por leis ou

agravar as penas de crimes, e (d) de indeterminação dos tipos legais e das sanções penais.

2.2.1 PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE DA LEI PENAL OU DA LEX

PRAEVIA

O princípio da legalidade determina que para um fato seja punido como crime, deve ele estar descrito em lei penal criminalizadora previamente à data do fato. Este princípio está explicitado no próprio texto do citado art. 5º, inc. XXXIX, da Constituição Federal, que dispõe que a lei que define o crime deve ser “anterior”.

Quando se trata de norma penal em branco, somente serão consideradas criminosas as condutas praticadas depois da entrada em vigor da norma complementar (STF, Inq. 1915, j. 05.08.04).

2.2.1.1 IRRETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS GRAVOSA

Como decorrência do princípio da anterioridade, é proibida a aplicação de uma nova lei que criminalizadora ou que aumente a punição de um crime a um fato passado. Caso se pudesse punir um fato por meio de uma lei criada posteriormente (ex post facto) à data de sua ocorrência, a segurança jurídica que se pretende garantir com o princípio restaria esvaziada.

A irretroatividade se aplica também às normas de execução penal (STF, HC 68416/DF, Brossard, 2ª. T., u., 8.9.92). Não se pode, por exemplo, negar o indulto ao delito incluído no rol dos crimes hediondos pela Lei 8930/94, ainda que o Decreto exclua os crimes hediondos, se o fato em questão foi cometido antes da lei nova mais gravosa (STF, HC 101238/SP, Eros Grau, 2ª. T., u., 2.2.10).

A irretroatividade não se aplica às normas processuais penais, que tem vigência imediata (STF, AI 177313 AgR-ED/MG, Celso de Mello, 1ª. T., u., 18.6.96).

2.2.1.2 RETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS BENÉFICA

Já uma nova lei que favoreça ao réu, descriminalizando uma conduta, reduzindo a pena, tornando o cumprimento da penal mais benéfico etc., aplica-se aos fatos anteriores à sua vigência. Neste sentido, o art. 2º, § único, do Código Penal dispõe que: “A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado”. No mesmo sentido, o art. 107, inc. III, do Código Penal arrola como causa que exclui a punibilidade a “retroatividade de lei que não mais considera o fato como criminoso”.

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2.2.2 PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL OU LEX SCRIPTA

A legalidade exigida no Direito Penal é a da lei no sentido formal. Assim, exclui-se desde logo a possibilidade de legitimar-se a existência de um crime bom base em costumes. Além disso, é preciso que haja uma lei elaborada pelo Poder Legislativo Federal, o que faz com que as espécies normativas mais comuns para a criminalização de condutas sejam as leis ordinárias e complementares. Medidas provisórias, leis delegadas, resoluções e decretos legislativos não podem criminalizar condutas. Os tratados e convenções internacionais podem conter mandados de criminalização, entretanto a concreta existência do crime no âmbito interno depende sempre da criação da tipificação da conduta por meio de lei formal.4

2.2.3 PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DE ANALOGIA OU DA LEX

STRICTA

A analogia, ou seja, a aplicação de regra semelhante para caso no qual não haja expressa regulamentação legal é vedada em Direito Penal sempre que prejudicial ao réu, seja para punir um fato que não está criminalizado ou para agravar a punição de crimes existentes – proibição analogia

in malam partem (STF, Inq. 1145, Maurício Corrêa, Pl., u., 19.12.06). Por outro lado, a aplicação de

regra semelhante para caso não regulado expressamente é admitida quando favorável ao réu, restringindo o poder punitivo do Estado – admissão da analogia in bonam partem.

Demais particularidades serão abordadas em tópico posterior dedicado exclusivamente à analogia em Direito Penal.

2.2.4 PRINCÍPIO DA TAXATIVIDADE OU LEX CERTA

O princípio da legalidade exige a descrição da conduta criminalizada não seja genérica ou vaga, de forma que o cidadão não possa conhecer exatamente o conteúdo da conduta proibida. Caso contrário não se realizaria o objetivo de propiciar segurança jurídica.

2.3 PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE

O princípio da culpabilidade determina que apenas podem ser responsabilizados criminalmente agentes quando sua conduta for subjetivamente desvalorosa. É tradicionalmente conhecido pelo brocardo latino nulla poena sine culpa ou por sua variante nullum crimen sine culpa. A constitucionalidade do princípio é extraída do art. 5º, inc. LVII, da Constituição Federal, o qual dispõe que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”.

A partir do princípio da culpabilidade é possível derivar três consequências5: (a) só pode ser punido o agente que tenha agido com alguma vinculação subjetiva em relação ao fato – isto é, com dolo ou culpa –, não sendo admita a responsabilidade objetiva em Direito Penal (essa característica é por vezes abordada como um princípio a parte, chamado de princípio da

responsabilidade subjetiva); (b) o comportamento do agente deve ser reprovável nas circunstâncias

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em que ocorreu, o que é verificado pela imputabilidade do agente, pela possibilidade de compreender a ilicitude do fato (potencial consciência da ilicitude) e pela exigibilidade de conduta diversa; (c) a medida da pena deve sofre influência do grau de culpabilidade do agente (p.ex., um crime doloso deve receber pena maior que um crime culposo e uma mitigação na possibilidade de conhecer a ilicitude do fato deve, igualmente, mitigar a pena). Em relação a esse último aspecto, o art. 59 do Código Penal dispõe expressamente que a culpabilidade é um dos critérios para a fixação da pena.

2.4 PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA

Sendo o Direito Penal o ramo jurídico mais danoso aos direitos fundamentais dos cidadãos, afetando a liberdade individual, deve ser ele guardado para situações de extrema gravidade, quando estejam em jogo bens jurídicos fundamentais para a comunidade e que não sejam passíveis de ser protegidos por meio de outros ramos do Direito. A origem remete à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, cujo art. 8º dispõe que “a lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias...”6. Deste princípio decorrem dois outros: a subsidiariedade e a fragmentariedade do Direito Penal.

2.4.1 O CARÁTER SUBSIDIÁRIO DO DIREITO PENAL OU

PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE

O princípio da subsidiariedade determina que o Direito Penal deve ser subsidiário em relação à outras estratégias de proteção de bens jurídicos. A pena criminal, por ser a sanção mais grave disponível ao Estado, só deve ser utilizada quando outros ramos do direito – como o direito civil ou o direito administrativo – não sejam capazes de proteger suficientemente o bem jurídico.

2.4.2 O CARÁTER FRAGMENTÁRIO DO DIREITO PENAL OU

PRINCÍPIO DA FRAGMENTARIEDADE

O princípio da fragmentariedade determina que o Direito Penal deve apenas lidar com fragmentos de ilicitude. O crime é uma ilicitude qualificada pela gravidade da ofensa (lesão ou perigo de lesão) ao bem jurídico, de forma que a pena criminal só pode ser utilizada quando o fato seja altamente danoso aos valores e interesses comunitários. Por exemplo, tanto um descumprimento contratual como um furto causam ofensa ao mesmo bem jurídico (patrimônio), entretanto apenas o segundo é um crime, isto em razão da maior gravidade do comportamento.

2.5 PRINCÍPIO DA OFENSIVIDADE OU LESIVIDADE

Segundo o princípio da ofensividade, não pode haver crime ser uma efetiva ofensa (lesão ou perigo de lesão) a um bem jurídico. Equivale ao brocardo latino nullum crimen sine iuria. O princípio atua em dois âmbitos: ao legislador determina que não pode criminalizar condutas em

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que não haja previsão de uma lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico; ao julgador determina que deve interpretar os tipos penais de forma a verificar se houve lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado pela norma penal, pois apenas neste caso existe de fato um crime.

A partir da ofensividade discute-se na doutrina brasileira a constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, nos quais o perigo é presumido.

a) Porte de arma de fogo desmuniciada: “É típica a conduta de portar arma de fogo sem autorização ou em desconformidade com determinação legal ou regulamentar, ainda que desmuniciada, ‘por se tratar de delito de perigo abstrato, cujo bem jurídico protegido é a incolumidade pública, independentemente da existência de qualquer resultado naturalístico’” (STJ, HC 328697/SP, j. 15/09/2015).

b) Roubo praticado com arma desmuniciada: “Conforme o atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça, o emprego de arma de fogo desmuniciada tem o condão de configurar a grave ameaça e tipificar o crime de roubo, no entanto não é suficiente para caracterizar a majorante do emprego de arma, pela ausência de potencialidade lesiva no momento da prática do crime” (STJ, AgRg no REsp 1536939/SC, j. 15/10/2015).

2.5.1 PRINCÍPIO DA ALTERIDADE OU TRANSCENDÊNCIA

Como corolário do princípio da ofensividade, tem-se que a lesão ou perigo de lesão deve ser em relação à bem jurídico alheio, sendo impuníveis as lesões a bens jurídicos próprios, como, por exemplo, mutilações ou a tentativa de suicídio. Como exceção, punem-se as autolesões quando cometidas com o fim de fraudar seguro, quando caracteriza estelionato (art. 171, § 2º, inc. V, do CP), ou para criar incapacidade física que inabilite o convocado para o serviço militar, quando caracteriza crime militar (art. 184 do CPM). Frisa-se, entretanto, que em verdade tais exceções não contrariam o princípio da transcendência, uma vez que não se pune as autolesões nesse caso em virtude da ofensa à integridade física do agente, mas em razão da tentativa de usá-la como meio para ofender um bem jurídico alheio.

2.5.2 PRINCÍPIO DA EXTERIORIZAÇÃO DO FATO

Também chamado simplesmente de princípio do fato, determina que não se pode sancionar penalmente condutas internas do agente, isto é, meros pensamentos que não chegam a sair do âmbito da consciência. Exige-se, para que haja um crime, que haja uma exteriorização na forma de condutas concretas que possam gerar ao menos um perigo de lesão a um bem jurídico. Esse princípio relaciona-se com o chamado direito penal do fato, no qual se pune alguém pelo que faz, e que opõe-se ao chamado direito penal do autor, no qual se pune alguém pelo que é.

2.6 PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO SOCIAL

A teoria da adequação social, desenvolvida inicialmente pelo penalista alemão Hans Welzel, determina que um fato que é aceito como normal pela generalidade da sociedade não pode ser crime. Assim, apesar se adequar à descrição legal (tipicidade formal), uma conduta não pode ser considerada materialmente típica quando se estiver de acordo com as práticas comuns da sociedade.

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Como exemplo, é possível citar a colocação de um brinco que, apesar de se adequar formalmente ao tipo penal da lesão corporal e causar uma ofensa à integridade física de crianças, é uma prática socialmente aceita e por isso não pode ser considerada crime de lesão corporal.7

Importante: o STF, no julgamento do HC 104467, j. 08-02-2011 (noticiado no Informativo

615), entendeu não ser aplicável o princípio da adequação social ao art. 229 do CP (“manter, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra exploração sexual, haja, ou não intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente”), sob o argumento de que apenas o legislador pode revogar ou modificar a lei penal em vigor.

2.7 PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

O princípio da insignificância, desenvolvido inicialmente por Claus Roxin, determina que um fato que causa uma ofensa de pouca relevância ao bem jurídico protegido pela norma penal não deve ser considerado crime8. Portanto, assim como na adequação social, embora adequada à descrição legal (tipicidade formal), uma conduta não pode ser considerada materialmente típica quando a lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico é ínfimo, isto porque não a conduta não é suficientemente grave a ponto de justificar a intervenção do Direito Penal. O princípio da insignificância exige uma certa proporcionalidade entre a gravidade do fato e a gravidade da intervenção estatal.

Como exemplo, é possível citar um beliscão ou a subtração de um cigarro, que embora de adequem formalmente aos tipos penais de lesão corporal e furto e causem lesões aos bens jurídicos integridade física e patrimônio, não são considerados crimes em razão da irrelevância da ofensa, restando excluída a tipicidade material.

O STF fixou no HC 84.4121, j. 19/10/2004, relatado pelo Ministro Celso de Melo quatro

critérios para a exclusão da tipicidade material em razão da insignificância: (i) a mínima

ofensividade da conduta do agente; (ii) a nenhuma periculosidade social da ação; (iii) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e (iv) a inexpressividade da lesão jurídica provocada. Tais critérios consolidaram-se na jurisprudência do STF e do STJ.

A insignificância em relação a crimes específicos:

a) inaplicável em crimes praticados com violência ou grave ameaça contra pessoa, como roubo e resistência (v. Informativos STJ 439 e 441);

b) inaplicável ao crime de moeda falsa (v. Informativo STJ 437).

c) inaplicável ao crime de tráfico de drogas (STJ, HC 248652, j. 18/09/2012);

d) nos crimes contra a ordem tributária – como o descaminho – tem sido aceito de forma majoritária quando o valor sonegado não ultrapassa R$ 10.000,00 (STF, HC 114548, j.

7 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral: parte especial. 4. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2008. p. 215.

8 ROXIN, Claus. Politica criminal y sistema del derecho penal. Trad. Francisco Muñoz Conde. 2. ed. Buenos Aires: Hamurabi, 2002, p. 73-74.

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13/11/2012). Obs.: há decisões que aceitam a insignificância no crime de descaminho quando o valor sonegado não ultrapassa R$ 20.000,00 (fundamento: Portaria n.º 75/2012 do Ministério da Fazenda). Precedente: TRF-4ª Região, Apelação Criminal 5006411-19.2010.404.7002, j. 18/12/2012.

e) nos crimes contra a administração pública há decisão do STF admitindo a aplicação (Informativo STF 624).

f) inaplicável ao crime de furto quando há continuidade delitiva e quando há destruição de obstáculo (STF, HC 106.490, dje. 16/08/2012; STF, HC 110.840, dje. 08/08/2012).

g) inaplicável quando o agente tiver registros criminais pretéritos, conforme reiterada jurisprudência (HC 103.506, j. 12/06/2012).

h) em crimes ambientais, o STF já admitiu a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância (Informativo STF 676).

2.8 PRINCÍPIO NE BIS IN IDEM

O princípio determina que não se pode punir alguém duas vezes pelo mesmo fato. Alguns autores9 afirmam que está implícito na Convenção Americana de Direitos Humanos, no art. 8º, n. 4, segundo o qual “o acusado absolvido por sentença transitada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos.” Assim, se não se pode submeter a novo julgamento quem foi absolvido por sentença com trânsito em julgado, com mais razão não se pode julgar novamente quem já foi punido. O ne bis in idem incide também sob a aplicação da pena, de forma que um mesmo fato ou circunstância não pode ser utilizado para fundamentar distintos aumentos de pena.

2.9 PRINCÍPIO DA HUMANIDADE DAS PENAS

Determina que o apenado deve ser tratado com humanidade, de forma que a pena não pode atingir a dignidade humana ou a integridade física dos condenados. O princípio da humanidade das penas está consagrado na Constituição Federal, em diversos incisos do art. 5º:

III- ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

XLVII - não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada (...); b) de cará-ter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis;

XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;

L - às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus fi-lhos durante o período de amamentação”

Também está previsto em tratados internacionais: a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1948, dispõe que “todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal (art. III)” e que “ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante (art. V)”; o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966

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dispõe no art. 7º que “ninguém será submetido a tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Será proibido, sobretudo, submeter uma pessoa, sem seu livre consentimento, a experiências médicas ou científicas”.

Importante: com base no princípio da humanidade das penas, as Cortes superiores, em

algumas decisões recentes, vêm entendendo que o prazo máximo de duração da medida de segurança aplicável aos inimputáveis de trinta anos, em analogia ao art. 75 do CP que define o tempo máximo das penas (STF, HC 107432, 24/05/2011) ou o limite máximo da pena abstratamente cominada ao delito (STJ, 6ª Turma, HC 91602, j. 20/09/2012).

A Súmula Vinculante 11 do STF, que restringe o uso de algemas a casos em que há “receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros” tem influência do referido princípio, prevendo tratamento digno ao preso.

2.10 PRINCÍPIO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DAS PENAS

O princípio da individualização da pena determina que a espécie e a medida da pena devem ser adequadas à culpabilidade do agente e à conduta por ele praticada. Não pode haver aplicação de penas padronizadas, sem consideração das especificidades do crime. Há previsão constitucional no art. art. 5º, inc. XLVI, da Constituição Federal, que prescreve aos legisladores o dever de fixar um método de individualização da pena e fixa espécies de penas que deverão ser adotadas, nos seguintes termos: “a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos”. Também o inc. XLVIII estabelece um dever de diferenciação da execução das penas de acordo com a natureza do crime e as características do agente: “a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado”.

O processo de individualização ocorre em três etapas distintas10: (a) a legislativa, na qual há fixação das espécies de penas e do marco penal (pena mínima e máxima) de cada crime, das qualificadoras e das circunstâncias que podem agravar/majorar ou atenuar/minorar as penas, das hipóteses de substituição, de fixação de regimes etc. – em síntese: do método que deve ser seguido para a fixação judicial da pena; (b) a judicial, na qual os julgadores, obedecendo ao métodos, aos critérios e aos limites fixados pelo legislador e analisando as circunstâncias do caso concreto, fixam a pena; (c) a executiva, nas possibilidades de progressão e regressão de regime, remição, liberdade condicional etc.

Corolário lógico do processo de individualização é a possibilidade de serem condenados a penas diferentes corréus no mesmo feito (STF, HC 70022/RJ, Celso de Mello, 1ª. T., u., 20.4.93; STF, HC 70.900, Moreira Alves, RTJ 157/138), conforme variarem as circunstâncias referentes a uns e outros, até mesmo por aplicação dos princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade, impondo-se a diferenciação para corréus cuja participação no crime foi distinta (TRF4, EIAC 97.04.47112-2/PR, Amir Sarti, 1ª S., m., 2.9.98, DJ 7.10.98).

Não há, entretanto, obrigatoriedade de se chegar a penas diferentes. Podem ocorrer casos em que, idênticas as circunstâncias objetivas e subjetivas, impor-se-á a mesma pena (STF, HC

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70931/RJ, Pertence, 1ª. T., v.u.u., 14.12.93; STF, HC 72.992, Celso de Mello, 1ª T., v.u.u., DJ 14.11.96). Em outras palavras, o fato de se cuidar de um processo de individualização não sugere, necessariamente, apenamento em quantitativos diferentes a diferentes pessoas.

A diferenciação no resultado final dependerá, então, da existência de circunstâncias diversas, devidamente referidas na sentença, não sendo razoável o tratamento diferenciado dado a corréus, no mesmo processo, sem que tenha sido declinado o fundamento para tanto (STJ, REsp. 225.398/PR, Félix Fischer, v.u.u., DJ 28.2.00) ou quando o juiz afirma presentes as mesmas circunstâncias (TRF4, AC 2001.04.01.083970-0, Penteado, 8ª T., u., 11.6.03).

Sobre o tema da individualização da pena, deve-se atentar ainda para a Súmula 471 do STJ: “Os condenados por crimes hediondos ou assemelhados cometidos antes da vigência da Lei n.º 11.464/2007 sujeitam-se ao disposto no art. 112 da Lei n.º 7.210/1984 (Lei de Execução Penal) para a progressão de regime prisional”. Com isso, todo delito que tenha sido praticado antes da vigência da referida lei (ou seja, até 29 de março de 2007 ), seja ele hediondo ou não, terá como requisito objetivo para progressão de regime o cumprimento de 1/6 da pena no regime mais gravoso. Se o delito foi praticado após a entrada em vigência da lei e não for hediondo, terá como requisito objetivo o cumprimento de 1/6 da pena no regime anterior para a progressão; se for hediondo ou assemelhado (tortura, tráfico de drogas e terrorismo), requisito objetivo será de 2/5 (réu não reincidente) ou 3/5 (réu reincidente).

2.11. PRINCÍPIO DA PESSOALIDADE DAS PENAS

Também chamado de princípio da responsabilidade pessoal ou da intranscêndência da pena, determina que apenas o condenado é que pode se submeter à pena. Está previsto no art. 5º, XLV, da Constituição Federal, o qual dispõe que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido”. Não importa a espécie de pena aplicada, se privativa de liberdade, restritiva de direitos, multa ou prestação de serviços à comunidade, não se poderá exigir que outrem que não o réu se submeta a ela, o que não impede a possibilidade de, nos casos de multa ou prestação pecuniária, alguém voluntariamente pague11.

Como se percebe, porém, a própria disposição constitucional excetua duas hipóteses nas quais as obrigações derivadas do processo penal podem passar da pessoa do réu, atingindo seus sucessores: a reparação do dano e o perdimento de bens.

São ainda consequências deste princípio:

a) a extinção da punibilidade pela morte do agente (CP, art. 107, I);

b) a impossibilidade de substituição do condenado por terceiro no cumprimento da pena, ainda que se trate de PSC (STF, HC 68309, Celso de Mello, 1ª. T., 27.11.90).

2.12. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

A proporcionalidade é um princípio geral de Direito que tem por escopo regular a relação entre os meios e fins, com especial aplicabilidade em conflitos entre direitos fundamentais. É

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composta por três subprincípios: (a) a idoneidade ou adequação, que verifica se um meio é idôneo para alcançar o fim que se busca através dele; (b) necessidade ou exigibilidade, que verifica se não existem meios idôneos para alcançar o fim buscado e que causam menos danos aos direitos fundamentais dos cidadãos a eles submetidos; (c) proporcionalidade em sentido estrito, que pondera o valor do direito fundamental sacrificado com o do bem que se pretende proteger.

Em âmbito penal, o princípio da proporcionalidade é importante tanto na análise da existência do crime, pois pode-se considerar que não há ofensa suficientemente grave ao bem jurídico que justifique a consideração do fato como crime, como na aplicação da pena, pois a pena deve ser um meio idôneo, necessário e adequado para a proteção do bem jurídico.

Algumas consequências decorrentes desse princípio são:

a) deve-se analisar a necessidade concreta da pena: o perdão judicial (art. 121, § 5º; art. 129, § 8º) é um caso de análise da desnecessidade da pena em concreto, deixando o julgador de aplicar a pena mesmo diante da culpabilidade do réu;

b) deve-se analisar a suficiência da pena alternativa (substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, na forma do art. 44 do CP);

c) princípio da proibição de excesso (Übermassverbott) ou do garantismo negativo: a proporcionalidade é utilizada como proteção contra os excessos ou abusos do Estado (proibição da pena de morte, por exemplo);

d) princípio da proibição de insuficiência (Untermassverbot) ou do garantismo positivo: a proporcionalidade é utilizada como proteção contra a omissão estatal diante dos direitos fundamentais (punir o crime de extorsão mediante sequestro com pena mais grave que a do homicídio significa violação à necessária tutela do bem vida).

3.1. CONCEITO

As fontes do Direito dizem respeito à origem das normas jurídicas.12 Como o Direito Penal é vinculado ao princípio da legalidade, suas fontes dizem respeito primacialmente à origem da lei penal. As fontes dividem-se em fontes materiais, substanciais ou de produção, que dizem respeito a quem tem competência para a produção de leis penais, e fontes formais, de conhecimento ou de cognição, que dizem respeito ao modo pelo qual o Direito Penal se exterioriza, pelo qual se dá a conhecer.13

12 ESTEFAM, André; GONÇALVES, Victor E. Rios. Direito Penal Esquematizado. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 177. 13 MIRABETE, Julio Fabbrini; MIRABETE, Renato N. Fabbrini. Manual de direito penal: parte geral: arts. 1º a 120 do CP. 26 ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 28.

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3.2. FONTES MATERIAIS, SUBSTANCIAIS OU DE PRODUÇÃO

As fontes materiais, conforme já referido, dizem respeito ao órgão encarregado pela produção do Direito Penal. A Constituição Federal, no art. 22, inc. I, dispõe que “compete privativamente à União” legislar sobre direito penal. Portanto, apenas a União poderá legislar sobre normas gerais de Direito Penal, assim como criminalizar condutas. O § único do art. 22, entretanto, prescreve que “lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo”. Desde a promulgação da Constituição, não ocorreu de lei complementar autorizar os Estados-membros ou o Distrito Federal a legislar sobre matéria penal. Caso isto ocorra, certamente surgirão muitas discussões a respeito do tema, uma vez que o entendimento geral é de que as normas penais devem se aplicar igualmente a todos os cidadãos, em respeito ao princípio da isonomia. Deve-se frisar ainda que o citado art. 22, inc. I, não regula especificamente o Direito Penal, de forma que seria possível discutir se a autorização do § único também o abrange.

3.3. FONTES FORMAIS, DE CONHECIMENTO OU DE COGNIÇÃO

As fontes formais dizem respeito à forma de exteriorização do Direito Penal, o que corresponde ao exame das espécies normativas que podem exprimir normas penais. A doutrina brasileira comumente subdivide as fontes formais em diretas ou imediatas e indiretas ou mediatas.

3.3.1. FONTES FORMAIS IMEDIATAS

A única fonte formal imediata do Direito Penal é a lei em sentido estrito, pois se trata de uma exigência do princípio da legalidade. Em geral, a criminalização de condutas ocorre por meio de leis ordinárias.

Análise das demais espécies normativas:

a) leis complementares: podem regular matéria penal. A Lei Complementar 105/2001, por exemplo, institui em seu art. 10 que “A quebra de sigilo, fora das hipóteses autorizadas nesta Lei Complementar, constitui crime e sujeita os responsáveis à pena de reclusão, de um a quatro anos, e multa, aplicando-se, no que couber, o Código Penal, sem prejuízo de outras sanções cabíveis.”

b) emendas à Constituição: podem regular matéria penal. Embora possa parecer estranha a criminalização de condutas por meio de emendas à Constituição, é mais facilmente cogitável a possibilidade de instituir princípios ou direitos fundamentais em matéria penal. Deve-se atentar para o art. 60, § 4º, da Constituição Federal, segundo o qual emendas à Constituição não podem restringir direitos e garantias individuais.

c) leis delegadas: não podem regular matéria penal. O art. 68, § 1º, II, da Constituição Federal veda a delegação ao Presidente da República de legislação sobre direitos individuais. Tratando as leis penais sempre da liberdade (ou pelo menos com o patrimônio) do indivíduo, não podem ser delegadas.

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d) medidas provisórias: não podem regular matéria penal. Há expressão vedação no art. 62, § 1º, inc. I, b, da Constituição Federal, modificado pela Emenda Constitucional n.º 32/2001. e) resoluções e decretos legislativos: não podem regular matéria penal.

3.3.2. FONTES FORMAIS MEDIATAS

São comumente apontados como fontes mediatas do Direito Penal o costume e os princípios gerais de direito. É possível citar também como fontes mediatas os atos administrativos, o referendo e plebiscito. Importante: os costumes e os princípios gerais de direito são também considerados meios para a integração do ordenamento jurídico-penal.

a) Costumes: costumes são “regras não escritas, consideradas juridicamente obrigatórias e seguidas de modo reiterado e uniforme pela coletividade”14. Difere do hábito, porque

neste não há convicção da obrigatoriedade jurídica. O costume pode ser: (i) contra legem, quando contraria a prescrição da lei; (ii) praeter legem, quando preenche a lacuna ou a ausência de leis; e (iii) secumdum legem, quando esclarece o conteúdo de leis. Os costumes contra legem não revogam a lei, conforme disposição do art. 2º, § 1º, da LINDB (Decreto-Lei nº 4.657/1942). Os costumes praeter legem e secumdum legem são admissíveis no Direito Penal, desde que não contrariem a norma penal ou ampliem o conteúdo do tipo para além dos seus limites semânticos, servindo como importantes instrumentos de adaptação do conteúdo das leis penais às práticas sociais. Importante ressaltar que o costume não pode criar crimes ou cominar penas, em razão do princípio da legalidade.

b) Princípios gerais de direito: são normas éticas extraídas por indução do material legislativo, expressamente fixadas em lei ou consolidadas historicamente e que auxiliam na integração do ordenamento jurídico. Dispõe o art. 4º da LINDB (Decreto-Lei nº 4.657/1942) que: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. Em razão do princípio da legalidade, os princípios gerais de direito não podem criar crimes ou cominar penas, entretanto podem guiar a interpretação das leis penais existentes, inclusive ampliando as causas de exclusão da ilicitude e da culpabilidade. No caso da mãe que fura as orelhas da filha para colocar-lhe brincos, não obstante a concepção moderna indique uma causa de exclusão da tipicidade – em razão da adequação social –, alguns penalistas15 irão aplicar os princípios

gerais de direito para afastar a ilicitude do fato. Importante: embora o art. 4º da LINDB faça referência à analogia, sabe-se que no Direito Penal ela só é aceita em benefício do réu (in bonam partem), mas nunca em seu prejuízo (in malam partem).

c) Atos administrativos: leis penais em branco podem ser, em alguns casos, complementadas por atos da Administração Pública. Exemplo tradicionalmente citado é o do crime de tráfico de drogas (art. 33 da Lei 11.033/2006) em cujo tipo consta o termo “drogas”, cabendo à Anvisa, agência reguladora vinculada ao Ministério da Saúde (Poder Executivo), a listagem por meio de ato administrativo das substância que são considerados drogas. Deve-se repetir, entretanto, que a criação de crimes e a cominação de penas não pode ocorrer por meio de ato administrativo.

14 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral (arts. 1º a 120). v. 1. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 50. 15 Como Mirabete e Damásio de Jesus.

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d) Referendo e plebiscito: o Congresso Nacional pode autorizar referendo e convocar plebiscito (art. 49, XV, da Constituição Federal), instrumentos estes que podem ser utilizados para aprovar ou rejeitar lei penal a ser criada ou já materializada pelos parlamentares. Veja-se, por exemplo, o caso do art. 35 do Estatuto do Desarmamento (Lei n.º 10.826/03), que previa o referendo, ocorrido em 23 de outubro de 2005, para mera aprovação de dispositivo de lei, e não para criação desta. Vencido o não, a norma que tratava da proibição da venda de armas de fogo e munição no País não entrou em vigor, estando permitida, hoje, a sua comercialização.16

4.1. CONCEITO E DISTINÇÃO ENTRE NORMA PENAL E LEI PENAL

Norma penal é o imperativo ou comando dirigido ao cidadão para realizar (mandamento) ou deixar de realizar (proibição) uma determinada conduta. É diferente da lei penal, que se trata de um ato formal e escrito por meio do qual os legisladores criam, publicizam e tornam obrigatórias as normas. Percebe-se, portanto, que embora sejam distintas, norma e lei se relacionam. Por exemplo, no homicídio, a lei penal (art. 121 do Código Penal) dispõe “Art. 121. Matar alguém: Pena - reclusão, de seis a vinte anos”, já a norma penal implícita é “não se deve matar”. Note-se: a lei penal apenas descreve uma conduta e vincula a ela uma sanção, a norma penal dá um comando (“não se deve”).

4.1.1. ESTRUTURA DA LEI PENAL INCRIMINADORA

A lei penal estrutura-se em dois elementos:

a) Preceito primário ou disposição: descreve a conduta criminosa (ex: “matar alguém”). b) Preceito secundário ou sanção: fixa a sanção aplicável – sua espécie e os limites mínimo e máximo (ex: “reclusão, de seis a vinte anos”).

O imperativo derivado do preceito primário da lei penal (chamado de norma de

comportamento) dirige-se a todos os cidadãos, impondo o dever de realizar ou deixar de realizar

uma conduta.

O imperativo derivado do preceito secundário (chamado de norma de sanção), por outro lado, dirige-se aos julgadores, impondo o dever de punir aqueles que realizam a o preceito primário. São eles, portanto, os destinatários da norma de sanção. Este não pode se dirigir ao criminoso, pois inexiste dever de autopunição

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4.1.2. CARACTERÍSTICAS DA LEI PENAL

A lei penal possui as seguintes características17:

a) Imperatividade: a pena é imposta a todos que realizam a conduta descrita no preceito primário, independentemente da vontade ou concordância;

b) Generalidade: incide sobre todos os cidadãos – ou ao menos sobre todos os cidadãos com determinadas características objetivamente definida. Existem crimes que, por exemplo, só podem ser cometidos por funcionários públicos, como no peculato (art. 312 do Código Penal). Isto, entretanto, não viola a generalidade da lei, pois a definição de funcionário público é fixada objetivamente (art. 327 do Código Penal: “Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública”), incidindo a lei sobre todos os cidadãos que se encaixem nessa definição.

c) Impessoalidade: não pode se referir a pessoas determinadas. Como decorrência da impessoalidade também é possível extrair que a lei não pode se aplicar a casos passados, uma vez que seria possível criar lei buscando criminalizar condutas praticadas por certas pessoas ou grupos.

d) Exclusividade: somente ela pode definir crimes e cominar sanções.

4.2. INTERPRETAÇÃO

A interpretação ou hermenêutica é o método utilizado para compreensão do conteúdo da lei penal, de forma a extrair seu sentido e alcance. Pode-se dizer que, por meio da interpretação, extrai-se a norma penal a partir da lei penal.

4.2.1. CLASSIFICAÇÃO DA INTERPRETAÇÃO QUANTO AO

SUJEITO QUE A REALIZA OU QUANTO À ORIGEM

a) autêntica: é quando o próprio legislador cria dispositivo que interpreta disposição legal. Por ser legalmente definida, obriga o interprete judicial a segui-la (exemplo é a definição de funcionário público do art. 327 do Código Penal).

b) jurisprudencial: é a interpretação dada pelos julgadores (precedentes e súmulas) e, no Brasil, não obriga o interprete judicial a segui-la. Exceção são as Súmulas Vinculantes, que devem ser obrigatoriamente seguidas.

c) doutrinária: é a interpretação dado pelos professores e pesquisadores do Direito Penal. Não vincula o intérprete judicial.

17 MIRABETE, Julio Fabbrini; MIRABETE, Renato N. Fabbrini. Manual de direito penal: parte geral: arts. 1º a 120 do CP. 26 ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 32; ESTEFAM, André; GONÇALVES, Victor E. Rios. Direito Penal Esquematizado. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 190.

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4.2.2. CLASSIFICAÇÃO DA INTERPRETAÇÃO QUANTO AO MEIO

OU MÉTODO:

a) gramatical ou literal: examina-se o sentido literal das palavras e expressões constantes na lei penal.

b) sistemática: é a interpretação que leva em conta a totalidade do ordenamento jurídico, de forma a compreender a lei penal de forma coerente e não contraditória com outros dispositivos.

c) histórica: é a interpretação da lei penal a partir do contexto histórico em que foi criada, de forma a se compreender quais os problemas e necessidades que justificaram sua criação.

d) teleológica: é a interpretação que leva em conta os fins que a lei penal objetiva, de forma que deve ser compreendida de forma a realizar tal escopo.

4.2.3. CLASSIFICAÇÃO DA INTERPRETAÇÃO QUANTO AOS SEUS

RESULTADOS:

a) declarativa: ocorre quando o texto legal não é ampliado nem restringido, apenas esclarecendo-se o sentido de termos obscuros.

b) restritiva: ocorre quando o sentido de expressões ou termos legais é restringido. c) extensiva/ampliativa: ocorre quando o sentido de expressões ou termos legais é ampliado. A interpretação extensiva é comumente admitida em Direito Penal, pois mantém-se dentro dos limites semânticos da linguagem utilizada na descrição legal.

4.3. INTEGRAÇÃO

A integração é a superação de lacunas do ordenamento jurídico. Uma das características do ordenamento jurídico é sua completude, ou seja, ele deve poder dar uma resposta a qualquer fato social que aconteça. Portanto, quando existe algum fato social para o qual não há regulação expressa, utiliza-se das técnicas de integração. As técnicas de integração comumente citadas pela doutrina são a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. Todas essas técnicas são explicitamente citadas no art. 4º da LINDB (Decreto-Lei nº 4.657/1942): “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.

Os costumes e os princípios gerais de direitos são comumente apontados pela doutrina também como fontes formais mediatas do Direito Penal, de forma que já foram analisados em tópico acima. Portanto nos ateremos à analogia.

4.3.1. ANALOGIA

A analogia é a aplicação de regra prevista para caso semelhante ao caso para o qual não há expressa regulamentação legal. O fundamento é o brocardo ubi eadem legis ratio, ubi eadem legis

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Para que seja possível o recurso à analogia, exige-se dois requisitos: (a) que o fato não esteja regulado pelo legislador e (b) que haja norma regulando caso semelhante, cujo fundamento seja compatível com o caso não regulado18.

Importante frisar que, por ser a analogia um método de integração do ordenamento jurídico pelo julgador, a não regulação deve ser involuntária e não uma opção deliberada do legislador de dar tratamento diverso à matéria (STF, HC 94777, Direito, 1ª. T., u., 5.8.08).

4.3.1.1. ANALOGIA IN MALAM PARTEM

O recurso à analogia é vedado em Direito Penal sempre que prejudicial ao réu, seja para punir um fato que não está criminalizado ou para agravar a punição de crimes existentes (STF, Inq. 1145, Maurício Corrêa, Pl., u., 19.12.06). Isso é uma consequência do princípio da legalidade, que em seu corolário da reserva de lei determina que crimes e sanções só podem ser fixados por lei.

A 2ª Turma do STF declarou a atipicidade da conduta de condenado pela prática do crime descrito no art. 155, § 3º, do CP (“Art. 155 – Subtrair para si ou para outrem, coisa alheia móvel: ... § 3º - Equipara-se à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico”), por efetuar ligação clandestina de sinal de TV a cabo. Reputou-se que o objeto do aludido crime não seria “energia” e ressaltou-se a inadmissibilidade da analogia in malam partem em Direito Penal, razão pela qual a conduta não poderia ser considerada penalmente típica. Precedente: STF, HC 97.261, j. 12/04/2011. O STJ possui decisões em sentido contrário.

4.3.1.2. ANALOGIA IN BONAM PARTEM

O recurso à analogia, com aplicação de regra semelhante para caso não regulado expressamente pelo legislador, é admitida quando favorável ao réu, restringindo o poder punitivo do Estado. A analogia em benefício do réu é muitas vezes necessária para que não se chegue a soluções absurdas a casos semelhantes. Portanto, se não é punível a subtração de coisa comum fungível, cujo valor não exceda a quota a que tem direito o agente (art. 156 do CP), igualmente não poderá ser punível o dano de coisa comum fungível nas mesmas circunstâncias.

A admissão da analogia in bonam partem e a vedação da analogia in malam partem segue uma tendência geral do Direito Penal de sempre, no conflito entre a liberdade individual e o poder de punir do Estado, privilegiar a primeira.

4.3.1.3. APLICAÇÃO ANALÓGICA DA LEI PENAL

Admite-se, entretanto, a chamada “aplicação analógica da lei penal”, que ocorre quando a própria lei penal autoriza a aplicação de uma regra a casos semelhantes, normalmente após um rol exemplificativo. É o que ocorre, por exemplo, no art. 121, § 2º, inc. I, do Código Penal, segundo o qual o homicídio é qualificado se é cometido “mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe”. Ou seja, paga e promessa de recompensa são exemplos dados pela lei de motivos torpes, entretanto a lei autoriza o julgador a considerar qualificado o homicídio se houver outra motivação torpe, semelhante a essas duas.

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4.3.1.4. ANALOGIA E PROCESSO PENAL

A utilização da analogia é comumente admitida no processo penal. O art. 3º do Código de Processo Penal dispõe que “A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito”.

4.4. LEI PENAL EM BRANCO

A lei penal em branco é aquela na qual o preceito primário é incompleto, de forma que faz-se necessária a complementação por outra espécie normativa. O preceito secundário, entretanto, é determinado.

O fundamento para o uso da técnica da norma penal em branco é permitir a adequação da norma penal a outros ramos do direito, permitindo, assim, uma atualização automática da norma penal em caso de modificação da norma que a complementa. Além disso, a técnica confere maior agilidade em caso de necessidade de atualização da norma, que poderá ser feita por ato da autoridade administrativa, e não da lei formal, que demanda procedimento mais complexo e moroso, sujeito, ainda, às complexidades políticas inerentes ao parlamento.

Importante: somente serão consideradas criminosas as condutas praticadas depois da

entrada em vigor da norma complementar (STF, Inq. 1915, Pertence, Pl., m., 5.8.04).

4.4.1. LEIS PENAIS EM BRANCO HOMOGÊNEAS, EM SENTIDO

LATO OU IMPRÓPRIAS

São aquelas nas quais o complemento é feito também por lei em sentido estrito (lei ordinária, complementar etc.).

As leis penais homogêneas subdividem-se em:

a) homovitelínea: complementada por lei penal. Exemplo é o crime de prevaricação, do art. 319 do Código Penal, é complementado pelo art. 327 também do Código Penal, que define “funcionário público”.

b) heterovitelínea: complementada por lei extrapenal. Exemplo é o crime de “contrair casamento conhecendo a existência de impedimento que lhe cause a nulidade absoluta”, previsto no art. 237 do Código Penal que é complementado pelo art. 1.521 do Código Civil, que define as causas de impedimento.

4.4.2. LEIS PENAIS EM BRANCO HETEROGÊNAS, EM SENTIDO

ESTRITO OU PRÓPRIAS

São aquelas nas quais o complemento é feito também por espécie normativa distinta de lei em sentido estrito.

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Exemplo clássico é a Lei de Drogas (Lei n.º 11.343/06) que utiliza o termo “droga”. De acordo com o art. 1º, § único, da mesma lei, “consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União”. Portanto, trata-se de lei penal em branco, complementada por ato administrativo (Portaria SVS/MS 344/98, da Anvisa).

4.4.3. LEIS PENAIS EM BRANCO AO AVESSO, AO REVÉS OU

INVERTIDAS

Alguma doutrina penal19 cita uma terceira classificação, as chamadas normas penal em branco ao avesso ou ainda de “lei penal incompleta”20. É quando, ao contrário das outras hipótese, o preceito primário é completo, sendo o preceito secundário incompleto. Exemplo é a Lei de Genocídio (Lei n.º 2.889/56), que não traz pena específica para o genocídio, mas remete às sanções penais de outros crimes.

4.4.4. LEI PENAL EM BRANCO X TIPO PENAL ABERTO

Não se deve confundir lei penal em branco com tipo penal aberto. A lei penal em branco possui uma incompletude que é complementada sempre por ato normativo, já os tipos penais abertos possuem conceitos jurídicos indeterminados cuja complementação é realizada pela doutrina e pela jurisprudência, por meio de interpretação. Exemplos de tipos penais abertos são os crimes culposos (art. 18, II, CP), a rixa (art. 137 do CP) e o ato obsceno (art. 233 do CP).

5.1. LEI PENAL NO TEMPO

5.1.1. VIGÊNCIA DA LEI PENAL

Não há processo legislativo especial para a elaboração de leis penais, de forma que o procedimento é o previsto na Constituição Federal para a elaboração das espécies normativas (lei ordinária, lei complementar etc.). De forma geral, a vigência da lei é regulada “a lei começa a vigorar em todo o País quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada”, conforme disposição do art. 1º da LINDB. Nos Estados estrangeiros, a obrigatoriedade da lei penal, quando admitida, inicia-se três meses depois de oficialmente publicada. O prazo existente entre a data da publicação da lei e a

19 Por exemplo, Luiz Flávio Gomes.

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data da sua efetiva produção de efeitos é denominado vacatio legis, e possui dupla finalidade: possibilita o conhecimento da norma antes de ela tornar-se obrigatória e, às autoridades incumbidas de fazê-la executar, bem como às pessoas a que se endereça, a oportunidade de prepararem-se para a sua aplicação. Entretanto a vacatio legis não obrigatória, podendo as leis entrar em vigor na data da sua publicação, assim como ser fixado prazo maior ou menor do que 45 dias, desde que haja disposição expressa nesse sentido.

A lei penal se aplica aos fatos ocorridos durante a sua vigência, não podendo retroagir quando prejudicial ao réu, mas retroagindo sempre que em benefício deste.

5.1.1.1. A REVOGAÇÃO DA LEI PENAL

A lei permanece em vigor até que seja revogada. A revogação pode ser (a) por derrogação: revoga parte da lei; e (b) por ab-rogação: revoga a lei em sua totalidade.

Conforme o art. 2º, § 1º, da LINDB, a lei posterior revoga a anterior: (a) “quando expressamente o declare” (revogação expressa), (b) quando seja com ela incompatível (revogação tácita, implícita ou indireta) ou (c) “quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior” (revogação global). Não há óbice à revogação de uma lei antes que entre em vigência, isto é, antes do término do período de vacância (vacatio legis).

A lei pode trazer no seu respectivo texto o período de sua vigência. Há duas possibilidades: (a) lei temporária: traz expressamente disposição sobre o período de sua vigência; (b) lei excepcional: não menciona expressamente o período de vigência, mas condiciona a sua eficácia à duração das certas circunstâncias (epidemia, guerra, estado de sítio etc.). Nesse caso foge-se à regra geral, pois o término de vigência dessas leis não depende de revogação por lei posterior – há uma autorrevogação.

5.1.2. CONFLITO DE LEIS PENAIS NO TEMPO

O conflito de leis penais no tempo ocorre quando há sucessão de leis penais regulando a mesma matéria. O art. 2° do Código Penal dispõe que:

“Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória. Parágrafo único. A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.”

No conflito entre leis penais, como já visto quando da análise do princípio da legalidade, vige o princípio da irretroatividade da nova lei penal mais severa (lex gravior), mas da retroatividade da nova lei que de qualquer forma beneficiar o réu (lex mitior). O fundamento está no art. 5º, incs. XXXVI (“a lei não prejudicará o direito adquirido”) e XL (“a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”), da Constituição Federal. Retroatividade significa a aplicação da lei a fatos ocorridos antes da sua vigência.

Da mesma forma, diz-se que há ultra-atividade da lei mais benigna (lex mitior) e não-ultra-atividade da lei mais severa (lex gravior). Ultra-não-ultra-atividade é a qualidade da lei de manter a sua eficácia mesmo depois de cessada a sua vigência.

Retroatividade e ultra-atividade são espécies de extra-atividade, que significa aplicação da lei fora do período de vigência.

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5.1.2.1. LEX MITIOR

5.1.2.1.1. ABOLITIO CRIMINIS

É quando a lei nova torna atípico fato antes incriminado. A abolição do delito constitui fato jurídico extintivo da punibilidade, nos termos do art. 107, III, do CP. Além disso, segundo o caput do art. 2º do CP cessam, em consequência da abolitio criminis, a “execução e os efeitos penais da sentença condenatória”. A lei que descriminaliza conduta retroage, excluindo todos os efeitos jurídico-penais da conduta antes considerada delituosa.

Consequências: a) se ainda não houve oferecimento de denúncia: o processo não pode ser iniciado; b) se a ação penal está em andamento: deverá ser trancada mediante decretação de extinção da punibilidade; c) após a prolação de sentença condenatória com trânsito em julgado: a pretensão executória não pode ser efetivada, ou seja, a pena não poderá ser executada; d) se o condenado está cumprindo a pena: deverá ser solto, mediante decretação da extinção da punibilidade.

Efeitos extrapenais da condenação: de acordo com art. 2º, caput, do Código Penal, cessam os “efeitos penais da sentença condenatória”, perdurando, por isso, os de natureza civil. Assim, a sentença condenatória transitada em julgado continua valendo como título executivo na esfera cível e o condenado continua obrigado a reparar o dano causado pelo delito (art. 91, I, do CP). Confrontando-se com a abolitio criminis, o juiz do processo deve, de ofício, declarar extinta a punibilidade, depois de ouvido o Ministério Público. Se os autos, em virtude de recurso, estiverem em segundo grau, o próprio tribunal competente para apreciar a inconformidade deverá declarar extinta a punibilidade. Caso já exista sentença condenatória transitada em julgado, a declaração de extinção da punibilidade competirá ao juízo da execução, conforme art. 66, I e II, da LEP e Súmula 611 do STF.

Importante:

a) Princípio da continuidade normativo-típica: caso haja mera revogação formal de determinado tipo penal, com mera readequação típica e modificação do nomen iuris (nome do crime), não há abolitio criminis, pois fato continua previsto no ordenamento jurídico-penal como crime. 1º exemplo: o rapto violento (art. 219 do CP) foi revogado pela Lei n.º 11.106/05, mesma legislação que criou a figura do sequestro ou cárcere privado qualificado porque praticado com fins libidinosos (art. 148, § 1º, V, do CP). Portanto, não há abolitio criminis de rapto violento, já que a conduta ainda é prevista como delituosa dentro do Código Penal. Nesse sentido: STF, HC 101035, j. 26-10-2010, noticiado no Informativo 606. 2º exemplo: também em respeito ao princípio da continuidade normativa típica, não há que se falar em abolitio criminis de atentado violento ao pudor, já que a Lei n.º 12.015/09 apenas revogou formalmente o art. 214 do CP, passando a modalidade delituosa ali prevista para dentro do art. 213. O crime, portanto, continua existindo, hoje com o nome de estupro.

b) Abolitio criminis indireta ou temporária: “A 'abolitio criminis' temporária, prevista na Lei n. 10.826/2003, aplica-se ao crime de posse de arma de fogo de uso permitido com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado, praticado somente até 23/10/2005” (Súmula 513 do STJ).

Referências

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