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A cláusula de Hardship numa visão comparada

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE DIREITO

Carla de Calvo Dantas

A CLÁUSULA DE HARDSHIP NUMA VISÃO COMPARADA

LISBOA 2018

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE DIREITO

Carla de Calvo Dantas

A CLÁUSULA DE HARDSHIP NUMA VISÃO COMPARADA

Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa como parte da exigência para obtenção do título de Mestre em Direito – Perfil Ciências Jurídicas.

Orientação: Professor Doutor Dário Moura Vicente

LISBOA 2018

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Aos meus pais e a minha irmã Paula pelo amor, carinho, cuidado, oportunidade concedida e incentivo.

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AGRADECIMENTOS

A presente dissertação de mestrado, fruto de um trabalho intenso, não seria possível sem o apoio, confiança, incentivo, ensinamentos, compreensão de várias pessoas. Pelo que manifesto minha gratidão em nome de algumas das quais foram demasiado importantes nesta trajetória.

Ao meu orientador, Professor Doutor Dário Moura Vicente, que desde o início acreditou na minha capacidade e aceitou prontamente o convite para me orientar. Agradeço pelos brilhantes ensinamentos, pela disponibilidade, comprometimento, paciência, seriedade e preciosa orientação. Manifesto minha admiração e deixo consignado que me oriento, para além desta dissertação, na seriedade e brilhantismo que lhes são inerentes para guiar minha vida académica e profissional.

Aos Professores Doutor Fernando Araújo e Doutor José Fernando Simão pelos ensinamentos enriquecedores em variadas exposições, dedicação, estímulos constantes e diversas oportunidades diretamente concedidas a fim de viabilizar a inserção e desenvolvimento dos jovens investigadores no meio académico.

Ao Professor Doutor Frederico Glitz, profissional brilhante, dedicado, competente e profundo conhecedor do tema que me propus a investigar por sua disponibilidade e pronto auxílio nas variadas vezes que o solicitei.

Aos meus principais exemplos de amor incondicional, disciplina, integridade, seriedade: meus pais, Soraya e Raul, e minha irmã, Paula. Agradeço pela bênção de tê-los em minha vida, pelo amor, cuidado, paciência e compreensão.

Ao restante da minha família agradeço na pessoa do meu amado avô João Carlos Calvo falecido durante esta minha trajetória, pelo amor, apoio e encorajamento, de forma a garantir que mesmo nos momentos mais difíceis eu perseguisse meus intentos.

Aos meus amigos que estão no Brasil agradeço, na pessoa da minha grande amiga Maria Fernanda, por se fazerem sempre presentes mesmo com toda a distância que há entre nós.

Aos meus amigos Luisa, Pedro, Franklin, Oswaldo, Francyelle, Maria Luiza, Marcelo, Pedro, Gabriele e Carolina, agradeço pela companhia, amizade

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incansável, apoio por vezes incondicional, pelos momentos já compartilhados e os que ainda virão. Agradeço, principalmente, por terem se tornado minha família em Portugal.

Por fim, mas não menos importante, agradeço à Deus por me possibilitar manter-me saudável, nos mais amplos sentidos, e assim alcançar o objetivo à que me propus.

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INTRODUÇÃO E DELIMITAÇÃO DO TEMA ………1

PARTE I O PROBLEMA DA ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS PERANTE OS DIREITOS NACIONAIS ………4

CAPÍITULO I: DA CLÁUSULA (DOUTRINA) MEDIEVAL ‘REBUS SIC STANTIBUS’ ÀS SOLUÇÕES DOS DIREITOS NACIONAIS ROMANO-GERMÂNICOS ………..5

1.1. A SOLUÇÃO FRANCESA ………10

1.2. A SOLUÇÃO ALEMÃ ..………. 13

1.3. A SOLUÇÃO ITALIANA ………... 17

1.4. A SOLUÇÃO PORTUGUESA ………. 19

1.4.1. As exigências da solução positiva frente à sistemática jurídica portuguesa ……….22

1.5. A SOLUÇÃO BRASILEIRA ………. 30

1.5.1. As exigências da solução positiva em matéria de Direito do Consumidor ……….34

1.5.2. As exigências das soluções positivas em matéria do Direito Civil ………..38

CAPÍTULO II: AS SOLUÇÕES TRAZIDAS PELOS DIREITOS NACIONAIS DO COMMON LAW ……….49

1.1. A SOLUÇÃO INGLESA ……….………...51

1.2. A SOLUÇÃO NORTE-AMERICANA ………..59

CAPÍTULO III: SÍNTESE COMPARATIVA ……….……….67

PARTE II A CLÁUSULAS DE HARDSHIP NO DIREITO DO COMÉRCIO INTERNACIONAL…………...70

CAPÍTULO I: TEORIA DO HARDSHIP NO DIREITO DO COMÉRCIO INTERNACIONAL ……70

1.1. O CONCEITO DE HARDSHIP E OS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS …………. 73

1.2. A TEORIA DO HARDSHIP TRAZIDA PELOS PRINCÍPIOS UNIDROIT ……….81

CAPÍTULO II: A CLÁUSULA DE HARDSHIP NOS CONTRATOS COMERCIAIS INTERNACIONAIS ………..90

1.1. A REDAÇÃO E OS EFEITOS DA CLÁUSULA DE HARDSHIP (DE ADAPTAÇÃO) À LUZ DOS PRINCÍPIOS UNIDROIT E DA CLÁUSULA-TIPO DA CCI………...……..95

1.2. AS CARACTERÍSTICAS COMUNS DAS CLÁUSULAS DE HARDSHIP À LUZ DA FUNÇÃO E FINALIDADE ...…105

1.3. ENSAIOS CONCLUSIVOS SOBRE A TEORIA DO HARDSHIP NO CONTEXTO INTERNACIONAL ……….………..108

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PARTE III

A CLÁUSULAS DE HARDSHIP E OS DIREITOS NACIONAIS……….. 110

CAPÍTULO I: A INTRODUÇÃO DA CLÁUSULA DE HARDSHIP NOS CONTRATOS SUJEITOS AOS DIREITOS NACIONAIS………...………112

1.1. A CLÁUSULA DE HARDSHIP NOS CONTRATOS SOB A ÉGIDE DO DIREITO PORTUGUÊS ………..114

1.1.1. O interesse na modelação de cláusulas de hardship (de adaptação) nos contratos comerciais nacionais ...………...121

1.1.2. O papel da solução negociada e as suas implicações ………124

1.2. A CLÁUSULA DE HARDSHIP NOS CONTRATOS SOB A ÉGIDE DO DIREITO BRASILEIRO ………127

1.2.1. O interesse na modelação de cláusulas de hardship (de adaptação) nos contratos comerciais nacionais …...………...133

1.2.2. O papel da solução negociada e as suas implicações………..……….134

1.3. A CLÁUSULA DE HARDSHIP NOS CONTRATOS SOB A ÉGIDE DO DIREITO INGLÊS………..137

1.4. A CLÁUSULA DE HARDSHIP NOS CONTRATOS SOB A ÉGIDE DO DIREITO NORTE-AMERICANO ……….………..142

1.5. SÍNTESE COMPARATIVA……….………146

CAPÍTULO II: A CLÁUSULA DE HARDSHIP COMO EXPRESSÃO DA INTERAÇÃO DOS SISTEMAS JURÍDICOS……….………..149

1.1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES………..149

1.2. CAUSAS DO FENÓMENO……….………...150

1.3. APROXIMAÇÃO ENTRE SISTEMAS JURÍDICOS NACIONAIS……….152

1.3.1. Da validade, da eficácia, dos efeitos jurídicos a se produzirem a partir da cláusula de hardship (de adaptação) ……….152

1.3.2. Das consequências da desatenção ao dever de renegociação do contrato em razão de cláusula de hardship (de adaptação) ………159

1.3.3. O interesse na modelação de cláusulas de hardship (de adaptação) ……….161

1.4. ELEMENTOS CONCLUSIVOS………..………166

CONCLUSÃO……….168

REFERÊNCIAS………..171

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RESUMO

Esta dissertação tem por objetivo analisar como o problema da manutenção dos contratos desequilibrados em razão de alterações supervenientes das circunstâncias é resolvido adentro das diversas sistemáticas jurídicas. Para tanto o presente trabalho será dividido em três partes, assim consideradas na sequência dos traçados introdutórios e da delimitação do tema. A primeira é destinada à aferição das soluções adotadas para o problema da alteração das circunstâncias pelos sistemas jurídicos nacionais, cito: francês, alemão, italiano, português, brasileiro, inglês e norte-americano à luz das fontes de direito que se prestam à integração dos contratos quando houver lacunas. A análise dar-se-á desde a solução através da cláusula medieva ‘rebus sic stantibus’ até os dias atuais frente a estes contextos jurídicos e será concluída com uma síntese comparativa. A segunda é destinada a verificação das soluções do direito do comércio internacional até a modelação das cláusulas de hardship de adaptação que reflitam o conceito / teoria do hardship trazida pelos Princípios UNIDROIT. Esta será concluída com alguns ensaios conclusivos. A terceira tem como intento aferir a viabilidade e interesse na negociação de cláusulas de hardship de adaptação nos moldes referidos nos contratos sujeitos as ordens jurídicas portuguesa, brasileira, inglesa e norte-americana. Como também a cláusula de hardship como expressão da interação entre os sistemas jurídicos nacionais pertencentes a família jurídica romano-germânica e do Common Law e entre estes e o contexto internacional. Para tanto foram analisadas pesquisas bibliográficas, legislativas, jurisprudenciais dos ordenamentos jurídicos sob aferição, visando se obter melhor compreensão do tema.

Palavras-chave: alteração das circunstâncias, desequilíbrios supervenientes;

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ABSTRACT

This dissertation seeks to analyze in the national and international law systems the ability to solves the problem of how to discharge contractual parties in a civil contract because of the changed circumstances. It is divided into three sections. The first section focuses on the specific solutions adopted by French, Germany, Italy, Portuguese, Brazilian, English, and North American systems for the changed circumstances specific when the Court needs to fulfill the gaps in a civil contract. In this section, the evolution of the medieval clause named ‘rebus sic stantibus’ will be analyzed and the relation between this clause and the national rules. The second section focuses on analyzing the solution adopted by the international commerce law for the same problems referred: how to discharge the parties in a contract when it is affected by changed circumstances. In this section we will analyze how the problem is solved by the soft law - UNIDROIT Principles. Furthermore, in this section we will analyze the negotiation solutions adopted by the contracting parties in an international agreement, named hardship clause. The last section seeks to analyze the proceed of introduction, the viability and interested in hiring the hardship clause in national civil contracts or in international contracts that are subject to the national law, specifically Portuguese, Brazilian, English and North-American law. Finally, this dissertation will analyze the hardship clause as an expression of the interaction between these referred law systems.

Keywords: changed circumstances; supervening disequilibrium; ‘rebus sic

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INTRODUÇÃO E DELIMITAÇÃO DO TEMA

Os contratos bilaterais, fruto da autonomia privada das partes, eis que insertos em uma dada ordem jurídica que estabelece padrões mínimos de comportamento1, correspondem a um ato de compromisso entre contratantes. Seus termos são estabelecidos com atenção à vontade das partes exprimida no momento do fechamento da contratação. Nesta medida, a vontade que fundamenta e vincula a contratação é aquela responsável por levar as partes a contratarem da forma que fizeram. Diga-se, esta vontade não é considerada puramente subjetiva, mas leva também em consideração elementos objetivos que se relacionam com a contratação em causa.

Uma vez vinculados aos termos do contrato firmado, terão os contratantes de cumprir com as obrigações assumidas no momento da execução contratual, a qual pode decorrer de forma instantânea ou duradoura/continuada. Designadamente os contratos de execução continuada ou execução instantânea, contanto que diferida, carregam consigo a característica de terem o momento do fecho contratual, bastante distante daquele correspondente à sua execução. Por esta razão, encontram-se mais suscetíveis às incertezas e riscos trazidos pelo tempo do que contratos de execução puramente instantânea.2

Em decorrência das incertezas que se podem colocar durante a execução do contrato de modo a desequilibrá-lo, há muito se discute como reaver o equilíbrio inicialmente pretendido pelas partes, mas alterado em decorrência de acontecimentos novos. A busca pela solução deste problema vem, indubitavelmente, desde a Idade Média, tendo a solução inicialmente sido trazida a partir da chamada cláusula (ou doutrina) ‘rebus sic stantibus’, notadamente quando aposta à cláusula (ou doutrina) ‘pacta sunt servanda’.

A despeito da importância que teve na altura do seu desenvolvimento e ter sido deixada de lado por largo espaço temporal, anos mais tarde, seus ensinamentos ganharam força através de novas soluções trazidas pelos contextos jurídicos nacionais, mormente os de matriz romano-germânicas. Eis que passaram estas sistemáticas jurídicas a desenvolver teorias a fim de coibir

1 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado: critérios para a sua aplicação. São

Paulo: Marcial Pons, 2015. p. 591.

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injustiças dadas em razão da alteração das circunstâncias. Era dada, então, nova expressão à cláusula ‘rebus sic stantibus’. Ainda que partindo de outros fundamentos, sistemas jurídicos do Common Law também se viram motivados a arranjar soluções para o problema da manutenção do vínculo dos contratantes aos contratos desequilibrados face a alterações supervenientes das circunstâncias. E mais, em virtude das incertezas que o recurso aos sistemas jurídicos nacionais gerava as contratações internacionais, neste contexto jurídico internacional também passou a ser sentida a necessidade de se arranjarem soluções aos casos de alterações das circunstâncias responsáveis por gerar excessiva onerosidade a uma das partes no cumprimento do contrato.

No que respeita aos sistemas jurídicos nacionais, as soluções trazidas a partir das fontes de direito não foram de todo suficientes para esta temática. Em suma porque difícil a eficácia das regras em decorrência da necessidade de se comprovar uma série de elementos para tanto. Também porque, havendo sua eficácia, a solução, em regra, acaba por ser passada para que um terceiro intervenha no seio do contrato a fim de reaver o equilíbrio, tirando das mãos dos contratantes a solução. Daí porque continuaram a ser buscadas formas de solucionar este problema: de manter as partes dos contratos civis vinculadas aos seus termos e, nesta medida obrigadas a cumpri-los, diante de alterações supervenientes das circunstâncias contratuais. A rigor, é este o problema central da presente investigação.

Nesta medida o que se pretende com a investigação que segue é aferir as soluções adotadas pelos sistemas jurídicos nacionais, francês, alemão, italiano, português, brasileiro, inglês e norte-americano aos contratos civis desequilibrados de forma superveniente em razão de fatos novos, com recurso às fontes de direito usadas à revelação de regras jurídicas nestes contextos. Importa destacar que a investigação que se pretende fazer neste domínio relativamente aos sistemas jurídicos francês, alemão e italiano é devida à relevância histórica que os desenvolvimentos assumiram para o tema em atenção. Entretanto, não se quer, como se pretende com relação aos sistemas jurídicos português, brasileiro, inglês e norte-americano, aferir com maior profundidade as exigências para eficácia das regras jurídicas. Daí porque a atenção àqueles assume maior brevidade e ligeireza. De mais, quer-se ainda aferir a solução trazida para os contratos internacionais por instrumentos

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internacionais, designadamente os Princípios UNIDROIT relativos aos contratos do Comércio Internacional, doravante referidos como Princípios UNIDROIT, bem como a solução neste tocante trazida pela Câmara do Comércio Internacional, doravante CCI, o que também será feito com maior afinco e profundidade.

Depois, pretende-se avaliar as nuances da cláusula de hardship inicialmente modelada para os contratos do comércio internacional, bem como a viabilidade e interesse em se negociar soluções para os casos referidos nos contratos civis sobre a égide das jurisdições portuguesa, brasileira, norte-americana e inglesa, através de uma tal cláusula. Tal delimitação tem como justificativa a impossibilidade de investigar de forma exitosa tantas especificidades de contextos jurídicos distintos. Finalmente, concluídas as fases anteriores que se dispõem a investigar, tratar-se-á da cláusula de hardship como expressão da interação entre o contexto do comércio internacional e os sistemas jurídicos nacionais retro referidos.

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PARTE I

O PROBLEMA DA ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS

PERANTE OS DIREITOS NACIONAIS

A procura de soluções para o problema de se virem alteradas, de forma superveniente, as circunstâncias em que as partes fundaram a contratação, assumiu relevância jurídica, indubitavelmente, durante a Idade Média. No contexto sociopolítico medieval, a solução fora ensinada através da conhecida cláusula ‘rebus sic stantibus’, a qual era entendida como uma cláusula inerente ao contrato, mesmo que não tivesse sido negociada pelas partes. Não obstante ter sido bastante importante nesta altura, os contextos sociais, histórico, político, económico e jurídico que seguiram a Idade Média acabaram por afastar o uso da referida cláusula.

Anos depois, mas, mais uma vez pautando-se nos traçados inaugurais desta, diversos sistemas jurídicos nacionais, novamente motivados pelas necessidades sociais, históricas, políticas, económicas e jurídicas se viram compelidos a encontrar soluções para problemas semelhantes àqueles resolvidos através da incidência da cláusula ‘rebus sic stantibus’. Disto resultou o desenvolvimento de teorias diversas pelos mais variados sistemas jurídicos nacionais, as quais teriam de ser invocadas quando o Direito nacional em causa tivesse de se prestar a integrar os contratos civis. Teorias estas que, a despeito de intentarem de um modo geral solver os mesmos infortúnios, carregam especificidades que lhes são próprias.

Em razão de terem as diversas teorias particularidades capazes de as individualizar por vezes, se vislumbrava uma série de inseguranças no que diz respeito às soluções a se operarem no caso de um ou outro Direito nacional ter de se prestar a integrar os contratos. E mais, por vezes se acabava por serem as teorias desenvolvidas insuficientes neste âmbito. Daí porque os juristas, mormente operadores no tráfego jurídico comercial internacional, viram-se compelidos a desenvolver soluções que, atentas às necessidades desse domínio, pudessem, de forma mais segura, a ser colocadas. Daí surgiu a teoria do hardship, que deu corpo à chamada cláusula de hardship.

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É sobre o desenvolvimento da cláusula (ou doutrina) ‘rebus sic stantibus’, desenvolvida na época medieval e que ganhou expressão sobretudo em decorrência das consequências danosas que o modelo liberal dos contratos ocasionava ao âmbito dos contratos frente às diversas ordens jurídicas nacionais, até as vestes atribuídas pelo comércio jurídico internacional que se intenta elucidar de agora em diante.

CAPÍTULO I: DA CLÁUSULA (DOUTRINA) MEDIEVAL ‘REBUS SIC STANTIBUS’ ÀS SOLUÇÕES DOS DIREITOS NACIONAIS ROMANO-GERMÂNICOS

Por muito vigorou no contexto doutrinário do comércio, nacional e internacional, de forma bastante expressiva, a impossibilidade de mitigação do princípio ‘pacta sunt servanda’ em razão do princípio ‘rebus sic stantibus’. Este era considerado o entendimento doutrinário clássico a respeito do tema3. A razão de ser desta impossibilidade encontra justificativa na história da evolução da chamada cláusula ‘rebus sic stantibus’, a qual reflete a teoria por volta desta.

O termo inicial da cláusula ‘rebus sic stantibus’ suscita alguma divergência. Entretanto, são cognoscíveis duas exposições distintas que merecem destaque. A primeira, identifica os traçados inaugurais da referida cláusula, ainda que de forma embrionária, aquando da vigência do Direito Romano. Reconhece, já naquele contexto, elementos que levam a supor a existência de uma regra geral no sentido de que a relação obrigacional somente se fazia válida no caso de permanecer no mesmo estado que se tinha no momento em que se estipulou. Uma vez alterado este estado, deixava, então, de ser válida.4

Já a segunda, reconhece que os romanos admitiam, a nível filosófico-literário e jurídico, adentro das relações humanas, a importância das

3 PRADO, Maurício Almeida. Novas Perspectivas do Reconhecimento e Aplicação do Hardship na Jurisprudência Arbitral Internacional. RBAr – nº 2 – Abr-Jun/2004 – Doutrina Nacional. p

32-33.

4 FERNANDES, Luís A. Carvalho. A Teoria da Imprevisão no Direito Civil Português. Lisboa:

Quid Juris, 2001. p. 17; LYNCH, Maria Antonieta. Da cláusula rebus sic stantibus à onerosidade

excessiva. In: Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 46, n. 184, 2009. p. 8.; AGUIAR

JUNIOR, Ruy Rosado de. Comentários ao Novo Código Civil. v. 6. Tomo 2. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 840-843.

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modificações fáticas. Reconhece que as razões que justificam estas ideias, encontravam-se fincadas em questões morais. Contudo, afasta a concepção dos traçados da doutrina referida, neste momento, enquanto princípio5. Assume, somente ter vindo a produzir efeitos jurídicos a doutrina da cláusula ‘rebus sic stantibus’ no Direito medieval, com a primeira solução ensaiada por Bártolus. Como também admite que foi neste momento em que a sobrevivência do contrato fora condicionada à manutenção do estado de coisas existentes no momento de sua celebração.6

Inobstante a divergência apontada, indubitavelmente, durante a Idade Média com os canonistas medievais, legítimos representantes do cristianismo, houve, pelos Tribunais Eclesiásticos, relativamente aos contratos de longa duração, a aplicação da cláusula ‘rebus sic stantibus’7/8. Esta primava pela

manutenção dos contratos, desde que se mantivesse o estado de coisa em que foram estipulados9. Ainda, em virtude da cláusula, se permitia, para quem o

5 Leciona CORDEIRO, António Menezes. Da boa fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 2015.

p. 940-94, que o aparecimento da cláusula somente se deu na vigência do Direito medieval, porque enquanto perdurou o pensamento romano não se podia considerar a modificação das circunstâncias enquanto princípio, mormente porque os romanos não possuíam um brocardo sistemático. De mais, conforme ensina LARENZ, Karl. Derecho Justo: Fundamentos de ética

jurídica. Traducción y presentación de Luis Díez-Picazo. Editorial Civitas, S.A. Madrid. 1985. p

32 e ss, os princípios jurídicos são os pensamentos que dirigem uma regulamentação jurídica. Não são, em si, regras perfeitamente acabadas, mas os fundamentos iniciais de uma regulação jurídica. Podem, no entanto, transforarem-se em regras materiais, quando remeterem a um conteúdo intelectual capaz de conduzir a uma regulamentação. Neste caso, serão considerados princípios materiais.

6 No sentido de considerar a cláusula prender-se à doutrina e prática forense medieval

posicionam-se: COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das Obrigações. 12ª ed. Coimbra: Almedina, 2009. p. 324; LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direito das Obrigações. v. II. 11ª ed. Coimbra: Almedina, 2017. p. 123-124 e ss; VICENTE, Dário Moura. Direito Comparado. v. I. 3ª ed. Coimbra: Almedina. 2015. p. 114-115; FONSECA, Arnaldo Medeiros da. Caso Fortuito

e Teoria da Imprevisão. 3ª ed, Revista Forense, 1958. p. 197 e ss.

7 A doutrina da cláusula ‘rebus sic stantibus’ exigia, para a sua aplicação, que houvesse uma

prévia estipulação a este respeito pelas partes, de modo que, se não houvesse clausulado prevaleceria o cumprimento das obrigações nos moldes assumidos na contratação, ou seja, vigorava então o princípio da ‘pacta sunt servanda’. (Cfr. LEITÃO, Direito das Obrigações…, vol. II, 2017. p. 124). Ensina, no entanto, PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil:

Contratos. v. 3. 17. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2013. p.143-144, que a cláusula ‘rebus sic stantibus’ consistia em presumir, nos contratos comutativos, uma cláusula, a qual não se lê

expressa, mas se considera implícita, e assegura a adstrição dos contratantes ao contrato, desde que as circunstâncias ambientes permaneçam as mesmas que vigoraram aquando da contratação. Neste mesmo sentido: GOUVEIA, Alfredo José Rodrigues Rocha de. Da teoria da

imprevisão nos contratos civis. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

Lisboa, 1958. p. 9 e ss.

8 PIRES, Cândida da Silva Antunes. A teoria da imprevisão no Direito Civil Francês. Faculdade

de Direito de Lisboa: curso complementar de ciências jurídicas. 1960-1961. p. 20 e ss.

9 FERREIRA, Durval. Erro negocial: objecto – motivos – base negocial e alteração das circunstâncias. Coimbra: Almedina, 1995. p. 8; COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das Obrigações…, p. 324.; ASCENSÃO, José de Oliveira. Alteração das circunstâncias e justiça

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cumprimento do contrato se tivesse tornado demasiadamente gravoso, requerer a resolução da relação contratual10, o que mostra a ligação da referida com a justiça do conteúdo11. 12.

Dentre as razões da formulação da cláusula ‘rebus sic stantibus’ naquele contexto destacam-se duas. A primeira, porque não se podia admitir que os contratos valessem apenas pela sua forma, nada significando a vontade dos contratantes. A segunda, porque se considerava contrário à moral cristã o enriquecimento de um contratante às custas do outro13. E esta tendência, fora almejada pelos canonistas como medida jurídica para eliminar as injustiças morais que pudessem ocorrer nas relações obrigacionais14.

Destarte, na época do Direito medieval, a cláusula ‘rebus sic stantibus’ era considerada, portanto, uma cláusula com um cariz claramente subjetivista e voluntarista15. E fora, designadamente nos séculos XIV e XV, que houve a transposição para o campo jurídico, notadamente no período dos pós-glosadores e bartolistas, momento em que se pode assumir ter esta passado a produzir efeitos jurídicos16.

Em que pese as razões e os esforços que se deram em torno do seu desenvolvimento, durante largo período a chamada cláusula ‘rebus sic stantibus’ deixou de ser considerada diante das diversas sistemáticas jurídicas. Referido desuso, para além de ter sido verificável nos contextos comerciais internos, viu-se refletir também no contexto do comércio internacional, mormente devido à principiologia contratual subjacente às sistemáticas jurídicas desta altura.17

Neste momento em que se passou a não ser mais verificável a incidência da cláusula ocorreu que, inspirados nos movimentos liberais burgueses do

contratual no novo Código Civil. 2004. [Consult. em 10 out. 2017] Disponível em:

<http://www.fd.ulisboa.pt/wp-content/uploads/2014/12/Ascensao-Jose-Oliveira-ALTERACAO-DAS-CIRCUNSTANCIAS-E-JUSTICA-CONTRATUAL-NO-NOVO-CODIGO-CIVIL.pdf>.

10 FERREIRA, Durval. Erro negocial…, 1995. p. 8; COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito…,

2009. p. 324.

11 Eis que a conceção cristã via no comércio uma atividade humana não indiferente à busca e

conquista do bem eterno (Cfr: VICENTE, Direito Comparado…, 2015. p. 112).

12 ASCENSÃO, José de Oliveira. Alteração das circunstâncias…,2004. 13 LYNCH, Maria Antonieta. Da cláusula…, 2009, p. 9.

14 CORDEIRO, António Menezes. Da boa fé…, 2015, p. 943 e ss.

15 VASCONCELOS, Pedro Pais. Teoria Geral do Direito Civil. 8. ed. Coimbra: Almedina, 2015. p.

359.

16 PIRES, Cândida da Silva Antunes. A teoria…,1960-1961. p. 19 e ss.

17 GLITZ, Frederico Eduardo Z. Anotações sobre a cláusula de Hardship e a Conservação do Contrato Internacional. In: Jus Navigandi, v. 2769, p. 18378, 2011. p. 4.

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século XVII (Idade Moderna), o contrato passou a ser um mecanismo para o exercício da autonomia da vontade e da liberdade. Especialmente porque resultava dos movimentos liberais forte destaque às ideias prevalentes no liberalismo e individualismo, as quais refletiam a ambição burguesa por certeza e previsibilidade na condução dos negócios. Na ocasião, o comércio somente poderia prevalecer em um ambiente no qual fosse possível prever os custos e calcular os lucros. De mais, o contrato era tido como o meio seguro e justo para a circulação de riquezas, especialmente porque era capaz de garantir a estabilidade, segurança e dinamicidade da vida mercantil.18

Então, como consequência desta perspectiva, passou-se a se atribuir claro destaque à vontade das contratantes. Desta vontade que decorria a vinculatividade do contrato. Por isto, tentava-se evitar, quando não impedir em absoluto, qualquer intervenção estatal na relação contratual. Deste modo que a cláusula ‘rebus sic stantibus’ acabou por perder o seu vigor, sobretudo no fim do século XVIII e início do século XIX.19

Todavia, no final do século XIX20, mas principalmente a partir do século XX, nos planos social, político, econômico, internacional e negocial, passaram a ser aferíveis as consequências prejudiciais que decorriam do exercício da autonomia da vontade21, o que motivou a retomada de discussões a respeito da possibilidade de modificar ou extinguir o vínculo entre os contratantes, em razão de alterações supervenientes das circunstâncias. A retomada destas discussões se deveu à percepção do fato de que o modelo liberal do contrato, até então prevalente, possibilitava o abuso e a exploração de um contratante com relação

18 Fora este cenário o responsável por motivar a inexistência, ao menos em termos gerais, de

regras positivas que objetivassem promover o restabelecimento do equilíbrio contratual nas relações afetas por forças supervenientes capazes de transformar o “sinalagma genético” estabelecido no momento da conclusão contratual (Cfr: MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé…, 2015. p. 591). À época, as raras hipóteses para revisar o conteúdo de um contrato pela via judicial após sua conclusão, referiam-se aos casos em que a vontade das partes encontrava-se viciada - erro. (Cfr: GLITZ, Frederico Eduardo Z. Contrato e sua conservação: Lesão e Cláusula de

Hardship. Curitiba: Juruá Editora. 2008, p. 3-4/28-31; GLITZ, Frederico Eduardo Z. Anotações…,

2011, p. 4-5; ASCENSÃO, José de Oliveira. Alteração das circunstâncias..., 2004, p. 3-5).

19 GLITZ, Frederico Eduardo Z. Anotações…, 2011. p. 4.; GLITZ, Frederico Eduardo Z. Contrato… 2008, p. 3-4 / 28-31; FONSECA, Arnaldo Medeiros da. Caso Fortuito…, 1958. p. 199

e ss; ASCENSÃO, José de Oliveira. Alteração das circunstâncias..., 2004, p. 3-5

20 Aponta, PIRES, Cândida da Silva Antunes. A teoria…, 1960-1961, p. 73 e ss, decisões

jurisprudenciais em França, a partir do ano de 1843, que vieram a tratar de questões relativas a cláusula medieval ‘rebus sic stantibus’.

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ao outro22.

Assim sendo, aquando da contemporaneidade contratual o modelo liberal do contrato entrou em crise. Isto em razão do forte apelo social e intervencionista deste contexto. Também em virtude das transformações sociais relacionadas às consequências da Revolução Industrial, a qual se iniciou no século XVIII e teve sua segunda etapa no século XIX23. Igualmente, por consequência dos desequilíbrios monetários e econômicos decorrentes da Primeira Guerra Mundial (1914 - 1918), sobretudo na Alemanha, país que teve sua economia devastada em razão da inflação24. Ainda, por se ter percebido que o processo de contratação estava sujeito à ocorrência de descontentamentos, contrariedades, riscos e da possibilidade de inadimplemento. Fora, então, em decorrência da crise desencadeada que a busca por meios seguros para se garantir o equilíbrio entre os contratantes, coibir abusos e preservar os interesses sociais foram elevadas.25

Diante do novo momento que se viu à altura prevalecer, passaram, então, a ser tentadas novas construções que visavam solucionar os problemas originados no seio dos contratos em consequência de alterações supervenientes das circunstâncias contratuais. Nesta medida se tinha a intenção de conter os excessos ocasionados em razão da manutenção de um contrato desequilibrado26. As tentativas se firmaram pela doutrina, que muitas vezes fora

22 GLITZ, Frederico Eduardo Z. Contrato e sua conservação… 2008, p. 138.

23 GLITZ, Frederico Eduardo Z. Contrato e sua conservação…, 2008, p. 31-33; CORDEIRO,

António Menezes. Da boa-fé... 2015, p. 978.; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições..., 2013, p. 144.

24 Importa referir que a Primeira Guerra Mundial acabou por devastar a economia alemã,

sobretudo em razão da alta da inflação que neste período decorreu. Por esta razão, muito embora o Código Civil alemão, à época vigente, fosse explícito ao permitir que as partes viessem a se desobrigar do cumprimento de suas obrigações apenas em casos de impossibilidade, pautados no princípio da boa-fé, igualmente presente na sistemática jurídica alemã daquela altura, os tribunais alemães começaram a permitir a desobrigação relativamente ao cumprimento da obrigação em casos de dificuldade. Isto porque, consideraram contrário ao referido princípio, exigir o cumprimento do contrato alterado e nesta medida desequilibrado, que estivesse a causar dificuldades para o seu cumprimento. (Cfr: PERILLO, Joseph. Force Majeure and Hardship under

the UNIDROIT Principles of International Commercial Contracts. p. 1-9. [Em linha]. Disponível

em: https://www.cisg.law.pace.edu/cisg/biblio/perillo3.html Acesso em: 19 jun 2017. Também no sentido de referir-se que entre 1914 a 1918 os países beligerantes voltaram a desenvolver teorias a este respeito: PIRES, Cândida da Silva Antunes. A teoria…, 1960-1961, p. 12 e ss.

25 Cfr: GLITZ, Frederico Eduardo Z. Anotações..., 2011, p. 5.; GLITZ, Frederico Eduardo Z. Contrato e sua conservação..., 2008, p. 31-33.

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acompanhada por entendimentos jurisprudenciais e desenvolveram-se adentro dos sistemas jurídicos nacionais.27

As teses explicativas que foram à época concebidas comportaram inicialmente, assim como a cláusula quando de suas origens, índole subjetiva, eis que, conforme marca daquele tempo, somente poderiam abancar os defeitos do consentimento. Apenas em um segundo momento assumiram caráter objetivo. Dentre as concepções desenvolvidas nos planos nacionais, de forma sintética, destacam-se as teorias de matriz francesa, alemã e italiana. De forma mais aprofundada destacam-se as teorias desenvolvidas em Portugal e no Brasil. Sobre estas teorias se passa a expor. 28

1.1. A SOLUÇÃO FRANCESA

A primeira teoria desenvolvida cuida-se da teoria da imprevisão de matriz francesa, a qual fora introduzida em França pela via jurisprudencial, diga-se, administrativa. Muito embora tenha havido esforços no sentido de demonstrar que algumas leis de aplicação temporária à altura legisladas29 tenham trazido os traçados do princípio da imprevisão para esta sistemática jurídica, não se pode apontar ter existido providência de alcance geral pela via legislativa nem no domínio do Direito Administrativo, tampouco do Direito Civil. Em França, a forma encontrada para esquivar a higidez dada ao princípio da estabilidade das convenções positivado através do artigo 1134 do Code Civil, no século XIX, se

27 Portanto, vislumbra-se que a pretensão dos novos mecanismos era a de estabelecer

conformidade entre o Direito, a justiça e a equidade (Cfr: SERRA, Adriano Paes da Silva Vaz.

Resolução ou modificação dos contratos por alteração das circunstâncias. In: Boletim do

Ministério da Justiça, Lisboa, nº 68, 1957. p. 16).

28 Algumas das teorias à época desenvolvidas acabaram por se confirmar apenas como teses,

entretanto outras foram mecanismos consagrados pelo legislador, conforme ocorreu, por exemplo no que toca a teoria da alteração das circunstâncias do Direito Português. (Cfr: ANTUNES, José A. Engrácia. Direito e Justiça: contratos comerciais, noções fundamentais. Vol especial da Universidade Católica. 2007. p. 215).

(21)

deu através de produção jurisprudencial. É, portanto, na jurisprudência que se encontram os traçados inaugurais da teoria dita da imprevisão.30/ 31

Não obstante, na fase em que se iniciava o movimento de remodelação da cláusula ‘rebus sic stantibus’, através da teoria da imprevisão, tenha havido algumas decisões dos tribunais no sentido de liberar as partes dos contratos civis em razão de alterações supervenientes que acabaram por tornar o seu cumprimento demasiado difícil, passando a, de certa maneira, admitir a eficácia desta cláusula neste domínio, esta possibilidade fora logo obstada frente ao contexto jurídico francês. Isto porque, quando levada a questão ao tribunal de Cassação francês, responsável por firmar a jurisprudência, este definiu a sua doutrina relativamente à cláusula ‘rebus sic stantibus’. Determinou, portanto, a impossibilidade de os tribunais levarem em consideração o tempo e as circunstâncias para modificar, sobretudo contratos civis, ou mesmo substituir cláusulas que tivessem sido livremente aceitas pelas partes. Esta impossibilidade referida, no domínio dos contratos civis, perdurou até o ano de 2016, eis que até este momento, dava-se rígido cumprimento ao artigo 1134 do até então Code Civil, o qual ressaltava o princípio da vinculatividade ou obrigatoriedade dos contratos neste domínio. 32

Entretanto, a despeito de ter havido por largo período rejeição da teoria da imprevisão para os contratos referidos e ter o presente trabalho estas relações contratuais por objeto, não se pode olvidar a aceitação que se teve em

30 Neste sentido, vale citar o caso de um contrato de transporte por estrada entre Paris e Ruão,

em que, no ano de 1843, o tribunal de Ruão sentenciou no sentido de liberar as partes das obrigações assumidas. Esta decisão decorreu porque estes contratos foram celebrados no momento em que se iniciavam as construções de linhas de caminho de ferro. Entretanto, de forma surpreendente, as obras referentes as estradas de ferro foram concluídas demasiado rápido. Deste modo, os comboios passaram a circular pelos mesmos trajetos, fato este que gerou concorrência entre aqueles que operavam pelas rodovias e aqueles que operavam pelos caminhos de ferro. Por não ser o objetivo, à altura da contratação, haver concorrência entre aqueles que operavam por estradas e os operados através da linha de ferro. E ainda, por ter sido alterado o estado de coisas que fora levado em consideração aquando da contratação. O tribunal de Ruão entendeu por bem liberar os contratantes, parte dos contratos de transporte entre Ruão e Paris, das suas obrigações. Todavia, o fez de forma a fundamentar a decisão no alargamento no conceito de força maior. (Cfr: PIRES, Cândida da Silva Antunes. A teoria…, 1960-1961. p. 73 e ss).

31 Cfr: PIRES, Cândida da Silva Antunes. A teoria…,1960-1961, p. 73 e ss / 85-95.

32 Cfr: HONDIUS, Ewoud / GRIGOLEIT, Hans Christoph (Edit.) - Unexpected Circumstances in

European Contract Law, Cambridge University Press, 2011, ISBN 978-1-107-00340-8, p. 144-150; PIRES, Cândida da Silva Antunes. A teoria…,1960-1961, p. 75 e ss; SANTOS JÚNIOR, Eduardo dos. A imprevisão ou alteração das circunstâncias no Direito privado francês e as

perspectivas. In: Estudos em homenagem ao professor Doutor Jorge Miranda. Vol VI, Faculdade

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França da teoria da imprevisão no seio do Direito Administrativo. Isto porque desta seara é possível extrair importantes elementos que se prestam a definir a teoria da imprevisão de matriz francesa, que importa ao estudo das soluções aos casos de alteração das circunstâncias.

No âmbito do Direito Administrativo, desde o ano 1862 o Conselho de Estado desenvolveu uma teoria da imprevisão. Fora esta confirmada e pormenorizada sobretudo nos anos de 1914 e seguintes, por ocasião da guerra. Neste período aconteceu de algumas concessionárias de obras públicas pleitearam em face da Administração indemnizações compensatórias em razão de prejuízos advindos de fatos imprevisíveis. Pedidos que foram julgados de forma favorável.33

Dos casos havidos vale citar, haja vista a relevância dada pelos juristas, o caso do aresto do gás em Bordéus. Em suma, este resultou de um conflito entre a Companhia Geral de Iluminação de Bordéus e a cidade de Bordéus, em virtude da alteração do preço do gás, que por sua vez deveu-se ao aumento demasiado do preço do carvão. Mais uma vez por ocasião da guerra, o aumento do preço do carvão desencadeou uma alta excepcional nos custos de produção da Companhia de Iluminação. E, por se ter ficado demonstrada a ocorrência de fatos imprevisíveis, assim como outros requisitos à altura considerados relevantes, o pleito, notadamente de liberação das partes com relação ao contratado, fora julgado procedente pelo Conselho de Estado.34

Na sequência disto, especialmente por se ter verificado a inclinação do Conselho de Estado pela aceitação da teoria da imprevisão, a doutrina passou a reunir esforços para delimitar os requisitos para a incidência e a abrangência desta teoria. Nesta medida, em resumo, segundo a teoria referida, o pleito de resolução contratual em razão de alteração das circunstâncias seria possível no domínio do Direito Administrativo quando, para além de haver uma modificação profunda da situação de fato, fosse o caso de advir uma alteração, por

33 PIRES, Cândida da Silva Antunes. A teoria…, 1960-1961, p. 99 e ss.

34 Cfr: SANTOS JÚNIOR, Eduardo dos. A imprevisão…, 2012, p. 479 e ss; PIRES, Cândida da

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circunstâncias imprevisíveis e excepcionais no seio do contrato, de modo a desequilibrá-lo. Passou-se esta a ser chamada de teoria da imprevisão. 35

A despeito de perdurar por longos anos o entendimento de impossibilidade de incidência da doutrina da imprevisão no domínio dos contratos civis, a partir do ano de 2016, em razão da reforma do Code Civil, o artigo 1195 trouxe a possibilidade de, frente a uma alteração das circunstâncias que tenha tornado o cumprimento destes contratos excessivamente onerosos para uma parte que não tenha assumido o risco, pedir tal parte a renegociação do contrato ao seu cocontratante. Sendo infrutífera a renegociação, as partes, nos termos da lei, poderão: i) acertar pela resolução do contrato; ii) pedir, de comum acordo, à sua adaptação por intervenção judicial; iii) na falta de acordo entre os contratantes, pode a parte prejudicada, pedir ao juiz para que reveja o plano contratual ou ponha-lhe termo. Esta regra tem caráter supletivo nos termos da Ordonnace nº 2016-131.36

1.2. A SOLUÇÃO ALEMÃ

Na sequência merecem destaque as teorias que foram desenvolvidas na Alemanha para o fim de solucionar o problema da manutenção do vínculo entre as partes de um contrato, mesmo quando houvesse sido alterado o estado de coisas em que se fundou a contratação. Primeiro, importa referir a teoria da pressuposição, de autoria de Windscheid. Ainda que ao tempo de suas lições e construção não tivesse o intento de tratar da cláusula ‘rebus sic stantibus’ - eis que fora pensada para embasar a impugnação do negócio, assim como fora desenvolvida a fim de conduzir ao desvio do princípio da estabilidade dos contratos37 - fora considerada neste domínio.

A teoria da pressuposição comportava a ideia de que quem manifestava uma declaração de vontade o fazia sob um certo pressuposto. Segundo esta

35 Cfr: COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito..., 2009, p. 325; SANTOS JÚNIOR, Eduardo dos. A imprevisão…, 2012, p 479 e ss; PIRES, Cândida da Silva Antunes. A teoria…, 1960-1961, p.

107-112.

36 Cfr: VICENTE, Dário Moura. Direito Comparado. Vol II. Almedina: Coimbra, 2017, ISBN

9789724071206, p. 228-232; ORDONNANCE nº 2016-131 du 10 février 2016, texte nº 26.

Disponível em:

https://www.legifrance.gouv.fr/eli/ordonnance/2016/2/10/JUSC1522466R/jo/texte;

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teoria a pessoa que viesse a manifestar a sua vontade teria como intento, da mesma forma que uma pessoa que viesse a emitir a sua vontade condicionada a algo, que o efeito jurídico da relação somente passasse a existir no caso de certas situações se verificassem. Se o estado de relação, também chamado de estado de coisas, sobrevivesse sem que o pressuposto tido por base se verificasse ou se o estado deixasse de existir, não haveria de se falar em correspondência entre a relação com a vontade manifestada. Nesta hipótese a relação acabava por ser ineficaz e o prejudicado, nos termos da teoria, poderia, com relação ao beneficiado, defender-se através de uma exceção ou de ação objetivando resolver a relação.38

Por esta razão a pressuposição funciona como uma «autodelimitação da vontade, que não se desenvolveu a ponto de construir uma condição»39 para o negócio. Significa dizer que, consoante esta teoria, a pressuposição se cuida de uma condição não desenvolvida no negócio, tácita ou expressamente manifestada, porém cognoscível pela outra parte. De mais, a incidência da doutrina da pressuposição era reconduzida à vontade humana. Daí porque considerada uma teoria de cariz subjetivista e voluntarista. Na vontade do(s) sujeito(s) que se deveria procurar a razão de ser das posições jus subjetivas e que se justificaria a modificação do contrato. Embora tenham sido bastante importantes os traçados desta teoria, não encontrou abrigo na lei civil alemã. 40

Para além de não ter encontrado morada na lei civil alemã, também não fora suficientemente aceite pela via jurisprudencial para solucionar os casos de alteração das circunstâncias no âmbito contratual. Disto resultou o desenvolvimento da teoria da base do negócio. Diferente da teoria anteriormente citada, esta fora desenvolvida para resolver o problema da alteração das circunstâncias na Alemanha desde o seu momento inicial. Diz-se isto porque a teoria da base do negócio fora aprimorada com o decorrer dos tempos, veja-se.

No ano de 1921 fora definido por Paul OERTMANN a teoria da base do negócio em com seus traçados subjetivos. Na altura restou especificada a base do negócio como sendo a base que comportava a representação de uma das

38 FONSECA, Arnaldo Medeiros da. Caso Fortuito…, 1958, p. 209 e ss. 39 LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direito... vol. II, 2017, p. 124 e ss;

40 Cfr: LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direito..., vol. II, 2017, p. 124; CORDEIRO,

António Menezes. Da boa-fé... 2015, p. 978; FONSECA, Arnaldo Medeiros da. Caso Fortuito…, 1958, p. 209 e ss.

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partes, representação esta manifestada, reconhecida e não rejeitada pela outra parte na ocasião da conclusão do contrato. Ainda, seu conceito poderia englobar as representações de ambos os contratantes acerca da existência ou da verificação de determinadas circunstâncias, as quais foram responsáveis por dar fundamento à vontade de negociar. Colocava a teoria da base do negócio que, a base do negócio, se referia ao negócio como um todo. A representação tomada por base para o fechamento do negócio exigia um conhecimento positivo da outra parte e tinha como elemento relevante a boa-fé. Na época de sua elaboração, esta teoria recebeu expressão jurisprudencial na Alemanha.41

Todavia, a difícil delimitação com relação aos motivos da declaração (motivos estes com cariz subjetivista) acabou por desencadear muitas críticas à teoria desenvolvida e levou a jurisprudência a afastar a sua incidência, não obstante a grande importância que teve, eis que fora com o referido autor que fora introduzido o conceito de base do negócio na Alemanha42. Como alternativa e por influência da doutrina, os tribunais passaram a fundamentar a mitigação do princípio ‘pacta sunt servanda’ nos §§157 e 242 – boa-fé – do BGB. Fora, primeiramente, deste modo que se passou a obstar a manutenção do contrato quando os resultados que se viriam a produzir nestas novas condições fossem incompatíveis com a boa-fé e a justiça. Depois, achando-se a solução apontada insuficiente, adveio o desenvolvimento da teoria da base do negócio objetiva, desenvolvida e precisada por Eugen LOCHER e LEHMANN.43

Referidos doutrinadores, ao defenderem que a delimitação da base do negócio não poderia depender da definição que se viesse a dar à representação das partes sobre dadas circunstâncias, ponderaram a necessidade de basear seu conceito e definição na causa das circunstâncias - causa esta responsável por se fazer chegar a um fim negocial. Deste modo, a base do negócio passou a ser concebida como uma componente das circunstâncias, necessárias para se chegar ao fim do negócio, através dos meios negociais. Daí adveio a teoria da base do negócio objetiva.44

41 LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direito… vol. II, 2017, p. 124-126.

42 Cfr: HONDIUS, Ewoud / GRIGOLEIT, Hans Christoph (Edit.). Unexpected Circumstances in European Contract Law, Cambridge University Press, 2011, ISBN 978-1-107-00340-8, p. 61-63. 43 LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direito… vol. II, 2017, p. 124-126.

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Na sequência disto, inspirado nas teses anteriormente desenvolvidas, como também nas decisões jurisprudenciais pautadas na boa fé, Karl LARENZ, formulou uma conceção mista da base do negócio. Para a eficácia da doutrina da base do negócio, consoante seus ensinamentos, necessário se verificarem alterações nas duas vertentes, eis que a referida base negocial abrange tanto a base do negócio subjetiva, quanto a base do negócio objetiva. 45

Enquanto a base negocial subjetiva corresponde a representação da expectativa comum a ambas as partes. Ressalta-se, a qual é responsável por, para além de exercer influência, levar à conclusão do negócio, de modo tal que, caso tivessem sido diferentes as representações dos contratantes, o negócio não se teria firmado consoante veio a firmar-se. A base negocial objetiva corresponde às circunstâncias objetivamente necessárias para que a conclusão do contrato tenha acontecido, consoante decorreu. Desta forma, para que o contrato possa subsistir a fazer sentido àquelas partes que contrataram, imperiosa a manutenção ou a verificação das circunstâncias objetivas levadas em consideração. Entretanto, frente à perturbação da equivalência das prestações ou frente à inexigibilidade do fim essencial do contrato, conforme inicialmente estabelecido pelos contraentes, a base negocial objetiva desapareceria.46

Os desenvolvimentos doutrinários na Alemanha a respeito da alteração das circunstâncias não cessaram aí. Na sequência, mas ainda antes da positivação da solução trazida por este sistema aos casos de desequilíbrios supervenientes no seio dos contratos cíveis, outras teorias que visavam solucionar o problema da alteração das circunstâncias foram desenvolvidas47. Entretanto, fora a doutrina Wegfall der Geschäftsgrundlage desenvolvida pela literatura jurídica, reconhecida e aplicada pelos tribunais alemães, bem como na sequência que deu causa a solução trazida pelo Código Civil Alemão (BGB) de 2002, com expressão normativa no contexto alemão através do §31348 e

45 CORDEIRO, António Menezes. Da boa fé… 2015, p. 1046-1048 e ss; LEITÃO, Luís Manuel

Teles de Menezes. Direito… vol. II, 2017, p. 126.

46 LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direito… vol. II, 2017, p. 126.; CORDEIRO, António

Menezes. Da boa fé… 2015, p. 1046-1048 e ss.

47 Cfr: LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direito… vol. II, 2017, p. 126.

48 «Subtitle 3 Adaptation and ending of contracts Section 313 Interference with the basis of the transaction (1) If circumstances which became the basis of a contract have significantly changed since the contract was entered into and if the parties would not have entered into the contract or would have entered into it with different contents if they had foreseen this change, adaptation of

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conhecida como Störung der Geschäftsgrundlage, que o problema da alteração das circunstâncias passou a ser resolvido49.

Em suma, a despeito de não haver a exata definição por meio do §313 do BGB acerca do alcance dos requisitos, a doutrina é aplicável com relação ao pressuposto básico à altura da contratação compartilhado pelos contratantes. Caso apenas uma das partes realize uma suposição relativamente ao contexto negocial, tem de ser esta suposição reconhecível para a outra e não pode ser contestada por ela. De mais, pode se referir a circunstâncias presentes ou futuras, mas desde que sejam relevantes para a vontade contratual manifestada. Outrossim, para que haja eficácia da regra, deve haver alteração no que toca a equivalência entre as prestações do contrato em causa e nesta medida a base do negócio deve ser substancialmente afetada. E esta situação referida deve sobrecarregar de forma injustificada uma das partes do contrato. Como efeito da incidência da regra, poderá o prejudicado pleitear pela adaptação contratual, sendo esta a medida primeira a ser operada pelos tribunais alemães. Inexistindo a possibilidade de readaptação contratual, diga-se, entretanto tentada, é que poderá vir a ter lugar a extinção do vínculo entre os contratantes.50

1.3. A SOLUÇÃO ITALIANA

Em Itália também se viu a preocupação em se trazer soluções para o problema das alterações das circunstâncias contratuais, as quais fossem responsáveis por desencadear dificuldades vultuosas no cumprimento do pactuado. Fora através da teoria da onerosidade excessiva superveniente, sistematizada e delimitada através do Codice Civile de 1942, que veio a solução

the contract may be demanded to the extent that, taking account of all the circumstances of the specific case, in particular the contractual or statutory distribution of risk, one of the parties cannot reasonably be expected to uphold the contract without alteration. (2) It is equivalent to a change of circumstances if material conceptions that have become the basis of the contract are found to be incorrect. (3) If adaptation of the contract is not possible or one party cannot reasonably be expected to accept it, the disadvantaged party may withdraw from the contract. In the case of continuing obligations, the right to terminate takes the place of the right to withdraw». GERMAN

Civil Code (BGB Bürgerliches Gesetzbuch), 18 August 1896. Reformado em 2002. [Em linha]. Disponível em: <http://www.fd.ulisboa.pt/wp-content/uploads/2014/12/Codigo-Civil-Alemao-BGB-German-Civil-Code-BGB-english-version.pdf>. Acesso em: 05 jan. 2018.

49 HONDIUS, Ewoud / GRIGOLEIT, Hans Christoph (Edit.). Unexpected Circumstances…, 2011

978-1-107-00340-8, p. 5-6 e p. 55 e ss.

50 HONDIUS, Ewoud / GRIGOLEIT, Hans Christoph (Edit.). Unexpected Circumstances…2011,

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neste domínio jurídico51. Ainda que a referência pela lei positiva tenha se dado somente neste ano referido, a jurisprudência vinha há muito admitindo, em algumas situações, a mitigação do princípio ‘pacta sunt servanda’ em razão do princípio ‘rebus sic stantibus’.

Tal se pode notar da sentença da Corte de Cassação de Turim, datada de 16 de agosto do ano de 1900. Na ocasião, este tribunal explanou sobre a aplicação da cláusula, estabelecendo que em decorrência de alteração do estado de coisas o vínculo jurídico entre os contratantes não mais se justificava, de modo a afetar a ideia de que o contrato fazia lei entre as partes.52

Não obstante, o tema veio a ganhar maior relevância após a Primeira Grande Guerra. Isto pelas mesmas razões já referidas: exposição aos efeitos nocivos que alterações económicas, políticas e outras, acabaram por desencadear no seio dos contratos, efeitos esses que foram, em sua maioria, estruturados em um contexto que imperava o modelo liberal dos contratos. Daí para frente, o estudo a respeito da temática passou a decorrer com maior interesse e engajamento e assim foi feito em Itália. Juristas começaram, então, a discutir o fundamento jurídico do instituto, os efeitos jurídicos que de sua incidência desencadeariam, assim como o campo de sua incidência.53

Os primeiros movimentos que se perfizeram de forma legislada para atender as situações anormais e graves decorrentes do contexto histórico referido, se deram através da promulgação de leis especiais, de exceção. Neste domínio destaca-se o Decreto nº 739 de 27 de maio de 1915 que, em seu artigo 1º, o qual fala das dilações aos pagamentos por causas derivantes do estado de guerra, estabeleceu que, para todos os efeitos do artigo 1226 do Codice Civile a guerra seria considerada um caso de força maior, não somente frente as situações em que houvesse impossibilitado o cumprimento da prestação, mas também quando a tivesse a tornado excessivamente onerosa (contudo, desde

51 Cfr: REGIO Decreto 16 marzo 1942, n. 262. Codice Civile. [Em linha]. Disponível em:

<http://www.studiocataldi.it/codicecivile/>. Acesso em: 17 jun. de 2018.

52 Cfr: MARTINI, Angelo de. L’eccessiva onerosità nell’ esecuzione dei contratti. Milano: Dott. A.

Giufrfrè Editore, 1950, p. 10-13; FONSECA, Arnaldo Medeiros da. Caso Fortuito…, 1958, p. 14

e ss.

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que a obrigação tivesse sido assumida antes da data do Decreto de mobilização geral). Depois disso outros movimentos legislados surgiram.54

Entretanto, de maior importância foi o advento da codificação Civil de 1942. Nesta, restou legislada a possibilidade de resolução ou modificação dos contratos de execução continuada ou instantânea, contanto que diferida, quando a prestação de uma das partes se tornasse excessivamente onerosa. A norma encontra-se nos artigos 1.463 a 1.469.55

À luz dos dispositivos referidos, em decorrência da eclosão de um evento extraordinário e imprevisível, orbitando fora da álea contratual típica, que gere desequilíbrio ao contrato, porque tornou o seu cumprimento excessivamente oneroso, poderá, a parte prejudicada, requerer a intervenção do tribunal para modificar ou colocar termo à contratação. Pese embora haja a possibilidade de modificação do contrato, esta terá lugar quando a parte demandada se oferecer para modificá-lo, com fundamento na equidade. O que está em causa frente a este contexto jurídico é uma alteração económica no seio do contrato. Esta poderá ser perceptível em razão do aumento do custo ou da perda do valor da contraprestação. De mais, quando estiver em causa um contrato em que somente uma das partes assumiu obrigações, pode esta requerer a redução ou a modificação do modus que se dará o cumprimento, também com fundamento na equidade. Em suma, é esta a solução que recebeu expressão normativa em Itália e que até os dias de hoje neste contexto vigora.56

1.4. A SOLUÇÃO PORTUGUESA

Os esforços para solucionar o problema também foram percebidos em Portugal já no princípio do século XX. Neste contexto iniciou-se o

54 «Art. 1. A tutti gli effetti dell’art. 1226 c.c. la guerra è considerata come caso di forza maggiore non solo quando renda impossibile la prestazione, ma anche quando la renda eccessivamente onerosa, purchè l’obbligazione sia stata assunta prima della data del decreto di mobilitazione generale.» REGIO Decreto 27 maggio 1915, nº 739. [Em linha]. Disponível em:

http://www.unife.it/giurisprudenza/giurisprudenza/iscriversi/piano-studi/storia-del-diritto-penale/materiale/clausola%20rebus%20sic.pdf. Acesso em: 17 de jun. de 2018; Sobre os demais movimentos, cfr: FONSECA, Arnaldo Medeiros da. Caso Fortuito…,1958 p. 14 e ss / 259 e ss. 55 VICENTE, Dário Moura. Direito Comparado…, 2017, p. 239-240; AGUIAR JUNIOR, Ruy

Rosado de. Comentários..., 2011, p. 872.

56 HONDIUS, Ewoud / GRIGOLEIT, Hans Christoph (Edit.). Unexpected Circumstances…, 2011,

p. 118-126; VICENTE, Dário Moura. Direito Comparado…, 2017, p. 239-240; AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado de. Comentários..., 2011, p. 872.

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desenvolvimento da teoria da alteração das circunstâncias. Esta desenvolveu-se também como resposta as condesenvolveu-sequências danosas do pós-guerra e do modelo liberal do contrato.

Por não haver, neste momento histórico, regulamentação própria para estas questões, designadamente através do Código de Seabra o qual vigorava na altura57, por vezes os tribunais portugueses foram chamados a se pronunciar sobre o problema material da alteração das circunstâncias. Diversos foram os moldes dos pronunciamentos dos tribunais, os quais se perfizeram através das manifestações jurisprudenciais. Entretanto, certo é que foram formulados a acompanhar os desenvolvimentos doutrinários daquele tempo.58

Cabe referir que, de partida, a possibilidade de resolução ou revisão contratual em decorrência da alteração das circunstâncias perante o contexto jurídico português deu-se com fulcro na teoria da pressuposição, de matriz alemã59, mencionada acima. Contudo, na sequência, passou-se a rejeitar a tese da pressuposição e passaram, os julgadores, mais uma vez acompanhando a doutrina, a basear-se ora na teoria da base do negócio60, também desenvolvida na Alemanha, outrora na teoria da imprevisão61, originária de França. Não obstante, nenhuma destas teorias recebeu expressão normativa frente a este contexto jurídico.

57 PINTO, Carlos da Mota. Teoria geral do direito civil. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2012. p.

606-607.

58 Manifesta-se COSTA, Mário Júlio de. Direito..., 2009, p. 335, no sentido de que a jurisprudência

dos tribunais superiores, antes do Código Civil de 1966, não era concorde quanto a possibilidade de resolver ou modificar os contratos por alteração de circunstâncias, com a exceção das situações em que tivesse um preceito legal a tratar do referido assunto. Ainda, cfr: CORDEIRO, António Menezes. Da boa fé... 2015, p. 918-922 e ss.

59 Pese embora a rejeição da teoria da pressuposição na Alemanha, muitos países, dentre eles

Portugal, passaram a contemplar os ensinamentos desta teoria. Designadamente em Portugal, tal entendimento fora defendido por Guilherme Moreira, José Gabriel Pinto e Coelho e Taborda Ferreira (Cfr: MOREIRA, Guilherme. Instituições do Direito Civil Português. v. 1. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1907. p. 496 ss.; COELHO, José Gabriel Pinto. Das cláusulas

acessórias dos negócios jurídicos. v. 2. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1910. p. 169 ss.;

FERREIRA, Vasco Taborda. Do conceito de causa nos actos jurídicos. Lisboa: [s.n.], 1946. p. 141 ss).

60 Dentre os autores que adotaram a teoria da base do negócio, cfr: MONCADA, Luís Cabral de. Lições de Direito Civil. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1995. p. 703 ss.; ANDRADE, Manuel de. Teoria Geral da Relação Jurídica: Facto Jurídico, em especial Negócio Jurídico. v. 2. Coimbra:

Almedina, 1974. p. 403; VARELA, Antunes. Ineficácia do Testamento e Vontade Conjectural do

Testador. Coimbra: Coimbra Editora, 1950. p. 263 ss. e 323 ss.; SERRA, Adriano Vaz. Resolução…, 1957, p. 15 ss.

61 Cfr: FERNANDES, Luís A. Carvalho. A teoria..., 2001. p. 17 e ss; GOUVEIA, Alfredo José

(31)

No seguimento dos desenvolvimentos doutrinários e jurisprudenciais referidos, adveio a codificação Civil portuguesa de 1966 que consagrou, no Livro II, sob o título de Direito das Obrigações, no Capítulo II, relativo às Fontes das Obrigações no âmbito contratual, designadamente em seus artigos 437º a 439º62, a eficácia da alteração das circunstâncias. Subjacente aos dispositivos mencionados encontram-se princípios de Direito, são estes os princípios da justiça contratual comutativa, que recepciona o princípio da equivalência das prestações, impõe o reequilíbrio das prestações e possibilita a mitigação do princípio ‘pacta sunt servanda’.63

Segundo a sistemática jurídica portuguesa, para a eficácia dos referidos dispositivos legais, caberá à parte lesada comprovar a existência de uma série de requisitos, bem como pressupostos de admissibilidade - e isto deverá decorrer judicialmente. Tal dar-se-á no caso de se fazer necessário proceder à integração do contrato. Referidos elementos, entretanto, não restaram delimitados pela letra da lei. Sobretudo porque aquando da positivação dos preceitos que se encarregam de cuidar da matéria em atenção, o legislador português entendeu preferível formular cláusulas gerais. Nesta medida, concedeu aos Tribunais a tarefa de solucionar situações de desequilíbrio contratual em decorrência de alterações supervenientes das circunstâncias e interpretar os casos de acordo com as suas particularidades.64

Embora não conste positivada a medida da delimitação de todos os requisitos e pressupostos de admissibilidade para a eficácia destes dispositivos,

62 Artigo 437º. (Condições de Admissibilidade). “1. Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiver sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato. 2. Requerida a resolução, a parte contrária pode opor-se ao pedido, declarando aceitar a modificação do contrato nos termos do número anterior”.

Artigo 438º. (Mora da parte lesada). “A parte lesada não goza do direito de resolução ou

modificação do contrato, se estava em mora no momento em que a alteração de circunstâncias se verificou”. O artigo 439º disciplina o regime da alteração de circunstâncias nas hipóteses de

resolução contratual, nesta medida dispõe: “Resolvido o contrato, são aplicáveis à resolução as

disposições da subsecção anterior.” DECRETO-Lei nº 47 344, de 25 de novembro de 1966.

Código Civil Português. (Actualizado até à Lei 59/99, de 30/06). [Em linha]. Disponível em: <http://www.stj.pt/ficheiros/fpstjptlp/portugal_codigocivil.pdf>. Acesso em: 17 jun. de 2017.

63 Consoante refere ASCENSÃO, Alteração..., 2004, p. 10, nota 11, cabe ter em atenção que o

princípio do equilíbrio contratual, mesmo substantivo, não é o mesmo que a justiça do conteúdo, porque esta valora as estipulações das partes contratantes; Ainda acerca do princípio da equivalência nos contratos sinalagmáticos, cfr: LARENZ, Karl. Derecho Justo…, 1985, p. 76 e ss.

Referências

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