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A CLÁUSULA DE HARDSHIP NOS CONTRATOS SOB A ÉGIDE DO DIREITO NORTE-

No documento A cláusula de Hardship numa visão comparada (páginas 152-159)

CAPÍTULO I: A INTRODUÇÃO DA CLÁUSULA DE HARDSHIP NOS CONTRATOS SUJEITOS

1.4. A CLÁUSULA DE HARDSHIP NOS CONTRATOS SOB A ÉGIDE DO DIREITO NORTE-

É válida e eficaz a modelação de cláusulas de hardship (de adaptação) a fim de trazer soluções aos casos de desequilíbrios supervenientes em um contrato celebrado sob a égide da ordem jurídica norte-americana ou que, nalguma medida, deva a esta se submeter. No âmbito dos contratos sujeitos ao Direito estadunidense, conforme sobredito, impera o princípio do «freedom of contract». Para além de outras ideias que compõem este princípio, este consagra a liberdade contratual na sua máxima expressão603. O que, em termos de elaboração do plano contratual, significa que as partes têm quase que uma

601 VICENTE, Dário Moura. Direito Comparado…, 2017, p. 280 e ss.

602 Não obstante, quando se faz necessária a integração contratual, recorre-se as «cláusulas

implícitas por força da lei» (terms implied in law), as quais podem ser resultantes de disposições legais ou de precedentes judiciais. Entretanto, tem alcance muito mais estrito do que a integração que decorre com recurso a lei dos países romanistas. VICENTE, Dário Moura. Direito

Comparado…, 2017, p. 149 e ss.

liberdade absoluta no que toca à modelação dos seus contratos e, consequentemente, das cláusulas contratuais604.

Sagra-se, também nesta ordem jurídica, o princípio da atipicidade contratual. Este, mais uma vez, firma a ideia de que as partes detêm ampla liberdade na estruturação de seus contratos privados, eis que não haverá apenas contratos-tipo, contratos nominados.605

Noutro diapasão, as regras legais aplicáveis pela sistemática jurídica norte-americana aos casos de desequilíbrios supervenientes responsáveis por alterar as circunstâncias das contratações, não detêm caráter injuntivo/imperativo como regra.

Primeiro, este entendimento advém da regra geral de que as leis do sistema anglo-americano vinculam apenas e tão somente no domínio dos limites que dispõem606.

Segundo porque, para esta sistemática, as regras legais que têm o condão de imperar relativamente à vontade das partes são aquelas chamadas de «immutable rules». Quando não se tratarem, portanto, de regras imutáveis, tratar-se-ão de «default rules», regras estas que podem ser derrogadas. No âmbito das soluções trazidas por este sistema aos desequilíbrios contratuais supervenientes em decorrência de alterações das circunstâncias, pode haver afastamento destas por iniciativa das partes, eis que as regras se cuidam de «default rules».607

Poder-se-ia pensar que, não havendo solução pela lei e havendo através do «Restatement Second of Contracts», haveria de ser o caso de imperatividade da regra em virtude do «restatement». Contudo, conforme já referido, os «restatements» não têm caráter vinculativo, apenas persuasivo. Trata-se de compilações de regras consideradas na ótica dos seus redatores como as melhores para cada matéria, cuja ideia central poderá vir a se tornar vinculativa

604 TIMM, Luciano Benetti. Common Law…, 2012, p. 535. 605 TIMM, Luciano Benetti. Common Law…, 2012, p. 535. 606 ASCENSÃO, José Oliveira. Interpretação…, p. 913-941.

607 Acerca do preenchimento das lacunas contratuais em razão das immutable rules e default rules, cfr: AYRES, Ian; GERTNER, Robert. Filling Gaps…, 1989-1990, p. 87-130, p. 87 e ss.

e se operar aquando da integração do contrato se o common law trouxer nos precedentes através do ‘ratio decidenti’. Mas não é o caso.608

Terceiro porque as codificações existentes nos Estados Unidos da América (sobretudo o Código que trata a respeito dos contratos comerciais ou outras fontes de direito também aplicáveis no âmbito deste estudo), não comportam princípios estruturantes que possam se sobrepor à autonomia das partes (salvo raras exceções). Sendo assim as regras do Direito contratual estadunidense são consideradas supletivas à vontade das partes (default rule)609. Por esta razão, havendo, mediante o exercício da autonomia dos contratantes, afastamento das regras, deverão se operar aquelas pelas partes escolhidas.

Além das questões que se relacionam à validade e à produção de efeitos jurídicos da cláusula acima referida, a negociação destas nos contratos sujeitos ao Direito estadunidense, possibilita às partes trazer para o seio dos contratos privados a obrigação de, antes de desonerarem-se de suas prestações contratuais, renegociarem o plano contratual. Deste modo, esforçarem-se para promover a conservação do contrato, fazer valer valores de ordem moral superiores aos fatos e também fazer valer um pensamento de Direito mais justo. E ainda, desta forma, acabam por considerar a importância da base ética e axiológica do Direito, os fundamentos que se encontram subjacentes ao sistema e não o reduzem a um complexo de leis causais. 610

De mais, por meio desta oportunidade, uma vez que estejam vinculadas à renegociação contratual poderão os contratantes avaliar os melhores termos para o novo plano contratual, dado a expertise que possuem no setor de mercado em que atuam. Adequar a redistribuição dos riscos a fim de ceifar perdas vultosas a cargo de apenas um contratante. Mais uma vez atentos

608 Cfr: VICENTE, Dário Moura. Direito Comparado…, 2017, p. 326-327.; sobre a não

vinculatividade dos restatements, cfr: TIMM, Luciano Benetti. Common Law…, 2012, p. 560; FRANSWORTH, E. Allan. Contracts… 2004, p. 619;

609 TIMM, Luciano Benetti. Common Law…, 2012, p. 535.

610 Nos EUA verifica-se uma forte corrente que atribui bastante importância a análise económica

do direito. Não obstante a análise económica do direito possa contribuir de forma auxiliar ao Direito, não pode ser capaz de reduzir o direito a um complexo de normas e esquecer da base ética e axiológica do direito. Para além da economia, há exigências de outras naturezas que devem ser observadas, como o Direito. Diga-se mais, não é a realidade económica que conduz o Direito, e o Direito que deve conduzi-la. Neste sentido, cfr: VICENTE, Dário Moura. Direito

Comparado…, 2017, p. 334-338; A respeito do Direito justo, do papel dos princípios em uma

minimamente à boa-fé negocial, pois a teoria do hardship, e nesta mesma medida a cláusula de hardship, é filha da boa-fé611.612

Mediante a incidência da cláusula, primeiramente terão os contraentes a obrigação da renegociação do contrato de modo a modelar a melhor solução para aplicar-se ao seu contexto negocial. Em contratos comerciais de grandes vultos as partes acabam por ter maior flexibilidade em colaborar para se chegar a um novo plano para o contrato. Havendo uma situação em que os contraentes se deparem com grandes perdas, acabam despendendo maiores esforços para se chegar a um novo termo.613

Depois, no caso de não haver acordo, ficam terceiros (diga-se tribunais judiciais ou arbitrais) permitidos a proceder a adaptação do contrato nos termos pelas partes delineados em razão da cláusula. O farão sem levantar maiores problemas porque estarão apenas dando atenção àquilo que constou negociado. Ainda, neste momento, poderão nortear-se por aquilo que já foi manifestado pelos contraentes ao tempo das renegociações.

No caso de os contraentes incumprirem o dever de renegociar o contrato, do mesmo modo que ocorre frente à sistemática jurídica inglesa, frente ao Direito norte-americano terá lugar o «enforcement» contratual. Nesta medida, caberá arbitramento de indemnização, eis que não se trata a execução específica («specific performance») de direito potestativo do devedor e esta terá

611 VICENTE, Dário Moura. Direito Comparado…, 2017.

612 O princípio da boa-fé no Direito norte-americano deriva da legislação, mais especificamente

o UCC, § 1-304, o qual assegura: «Every contracto or duty withing [the Uniform Commercial

Code] imposes an obligation of good faith in its performance and enforcement». Neste contexto

ela significa honestidade de fato e impõem a observância de standards comerciais que são considerados razoáveis de agir e negociar. Podem ser categoriazados em quatro tipos os casos que se relacionam com a boa-fé. 1º) a falha na cooperação com a outra parte; 2º) exercício de direitos contratuais; 3º) alterações contratuais; 4º) extinção do contrato. De mais, não há boa-fé na fase da negociação contratual; a boa-fé não cria deveres de conduta às partes e ainda não traz consigo a necessidade de haver cooperação entre os contraentes. Outrossim, aplica-se aquando da interpretação do juiz. Outrossim, referido princípio também vem disciplinado no §205 do Restatement Seconf of Contracts, o qual diz: «Every contract imposes upon each party a duty

of good faith and fair dealing in its performance and enforcement.», a este respeito, confrontar:

RESTATEMENT (Second) of Contracts. [Em linha]. Disponível em: https://www.nylitigationfirm.com/files/restat.pdf,. Acesso em: 10 de fev. de 2018; TIMM, Luciano Benetti. Common Law… 2012, p. 536 ss; DIMATTEO, Larry A.; HOGG, Martin. Comparative…,

2016, p. 210-219; A boa-fé neste sistema jurídico cuida-se de immutable part of any contract, o que implica dizer que o dever de agir de boa-fé não pode ser derrogado pelas partes frente a esta sistemática jurídica. Neste sentido, cfr: AYRES, Ian; GERTNER, Robert . Filling…, 1989-

1990, p. 87 e ss.;

lugar apenas em casos muito específicos, quando o arbitramento de indeminização se mostrar inadequado para tutelar a posição do credor.614

À luz do retro exposto, vê-se que a despeito de haver maior proximidade teórica, notadamente dos requisitos teóricos à incidência, entre as doutrinas estadunidenses para resolver os casos de alteração das circunstâncias e a doutrina do hardship, não têm correspondência integral. Sobretudo em virtude de serem os tribunais norte-americanos mais conservadores para reconhecer a presença dos requisitos teóricos e mais ainda para viabilizar a eficácia destas doutrinas.615

Sendo assim possível, por através da negociação de cláusulas de hardship as partes darem primazia aos valores morais da sociedade, assim como a base ética e axiológica do Direito. Ainda, poderem redistribuir os riscos de forma mais justa de modo a viabilizar a manutenção do contrato, adaptando-o às novas circunstâncias. Resulta ser recomendável e, pode-se dizer, comum no tráfego jurídico comercial sujeito ao Direito norte-americano a modelação de cláusulas negociadas pelas partes para solucionar casos de alteração das circunstâncias.616

1.5. SÍNTESE COMPARATIVA

Da comparação empreendida nesta seção é possível perceber que a despeito das particularidades de cada um dos sistemas jurídicos analisados e também de particularidades das famílias jurídicas que estes integram, todos trazem a possibilidade de negociação, de forma válida e eficaz, de cláusulas de hardship de adaptação desenhada à luz dos Princípios UNIDROIT ou da cláusula-modelo da CCI. A razão de ser desta possibilidade encontra morada comum no princípio da autonomia privada e nos valores que estão subjacentes a uma cláusula de hardship que reflita a teoria do hardship trazida sobretudo pelos Princípios UNIDROIT.

O princípio da autonomia privada é consagrado por todas as jurisdições investigadas nesta parte. Em cada uma delas recebe delimitação própria, eis que

614 VICENTE, Dário Moura. Direito Comparado…, 2017, p. 280 e ss. 615 TIMM, Luciano Benetti. Common Law…, 2012, p. 560.

se relaciona de forma diversa com a heteronomia. As restrições impostas diante das sistemáticas jurídicas pertencentes à família jurídica romano-germânica, são deveras mais rigorosas que aquelas impostas aos sistemas que integram a família jurídica do Common Law.

Frente ao Direito português princípios como a boa-fé e a equivalência das prestações; regras injuntivas (imperativas) que compõem o sistema; a justiça social, a lei, a moral e limitações impostas pela natureza são, por vezes, capazes de delimitar a autonomia privada dos contratantes. Frente ao Direito brasileiro, este princípio sofre delimitações em razão da ordem pública, dos bons costumes, da função social dos contratos, da boa-fé objetiva, do equilíbrio económico no seio dos contratos, assim como de regras imperativas (injuntivas). Frente ao Direito inglês menor é a delimitação sofrida, sobretudo porque o princípio da autonomia privada é a trave mestra do Direito dos Contratos neste domínio. Entretanto, sofre delimitações ora pela lei, outrora pela moral, mas ainda assim é muito menos significativa em razão dos valores que dominam o sistema, quais sejam: a segurança jurídica e a liberdade individual. Por fim, diante da sistemática jurídica estadunidense a delimitação também se perfaz com menor amplitude, posto que impera o princípio da liberdade contratual na sua máxima expressão, o que inclusive justifica a consagração e dá força à incidência do princípio da atipicidade contratual, que possibilita as partes desenharem as soluções contratuais que melhor lhes atenda.

Entretanto esta dinâmica entre a autonomia e heteronomia não é capaz, em nenhuma das sistemática jurídicas aferidas, de impossibilitar a modelação da cláusula de hardship de adaptação a refletir a teoria do hardship referida. A resposta encontra abrigo no fato de uma cláusula desta natureza e nestes moldes desenhada refletir as ideias e valores fundamentais trazidos pelos princípios da boa-fé, da equivalência das prestações e equilíbrio económico do contrato, da função social dos contratos, os quais estão no cerne da estruturação dos sistemas jurídicos dos países investigados pertencentes à família jurídica romano-germânica (que são bastante mais restritivos617). Isto é o que corrobora a validade e eficácia de uma tal cláusula em todas estas ordens jurídicas.

617 Os países do Common Law são bastante mais permissivos no que toca a modelação de

cláusulas desta natureza. Eis que a autonomia privada, conforme dito, é a trave mestra destes e, por isto, tem imensa vazão.

De mais, da comparação empregada também se faz possível perceber que em todas as Ordens Jurídicas investigadas pode haver efetivo interesse na modelação de uma tal cláusula ainda que este interesse se faça mais expressivo nuns contextos jurídicos que em outros.

Nos países jurídicos romano-germânicos, notadamente Portugal e Brasil, o interesse se concentra no fato de ser de difícil comprovação cumulativa das exigências legais à eficácia dos institutos da alteração das circunstâncias e onerosidade excessiva superveniente, o que implica em uma reduzida aplicabilidade exitosa dos institutos pelos tribunais. De mais, porque deixar para terceiros interpretarem os conceitos e integrarem o contrato lacunoso pode aumentar as incertezas dos contratantes, relativamente ao que poderá vir a decorrer no seio dos seus contratos. E, por fim, porque ao negociarem uma tal cláusula retiram de um terceiro o dever de restabelecer o equilíbrio do contrato e assumem a obrigação de restabelecê-lo por meio da renegociação do contrato alterado. Entretanto, sobretudo em Portugal este interesse pode se vir reduzido porque é ainda deveras controvertida a possibilidade de derrogação da regra legal, mesmo quando houver a negociação de cláusulas de hardship, o que resulta em poder se virem aumentados os custos de negociação sem que se garanta o intento das partes, que é a resolução do problema da alteração das circunstâncias tão somente com recurso à cláusula de hardship.

Já nos países do Common Law, designadamente Inglaterra e Estados Unidos da América, a aplicabilidade das soluções trazidas por meio dos precedentes e incorporadas nos sistemas referidos à revelação das regras jurídicas aos casos de alteração das circunstâncias são mais restritivas. Mormente porque, em decorrência dos valores que estão no cerne destas jurisdições, a intervenção estatal no domínio dos contratos privados é diminuta e excecional, o que implica em maior atenção à vontade das partes manifesta através de clausulados contratuais, e também menor possibilidade de intervenção heterónoma neste domínio.

Destarte, a despeito das particularidades de cada um dos sistemas jurídicos sob investigação nesta Seção, quais sejam: Portugal, Brasil, Inglaterra e Estados Unidos da América, certa é a validade e eficácia da modelação de

uma cláusula de hardship de adaptação a refletir as regras trazidas pelos Princípios UNIDROIT e cláusula-modelo da CCI em todos os ordenamentos neste capítulo analisados. Ainda, certo é que em todas as jurisdições possível aferir o interesse que os contratantes podem ter em negociá-la. A despeito de poder ser distinta a medida do interesse, o modo da produção de efeitos e as consequências variadas que da modelação podem advir.

CAPÍTULO II: A CLÁUSULA DE HARDSHIP COMO EXPRESSÃO DA

No documento A cláusula de Hardship numa visão comparada (páginas 152-159)